• UM DEUS QUE NÃO CRIA
    - ateísmo e/ou religiosidade no pensamento de  Espinosa

    Maria Luísa Ribeiro Ferreira
    Universidade de Lisboa, Fac.Letras, Dep.Filosofia

Ateu de sistema” ou “ébrio de Deus”? 

Aos vinte e quatro anos de idade  Espinosa é expulso da comunidade hebraica sob a acusação de impiedade e ateísmo. O texto do “herém” é implacável e perturba-nos, tanto mais quanto é escrito em português " [1] “Com sentença dos Anjos, com dito dos Santos, excomungamos, apartamos, amaldiçoamos e praguejamos a Baruch de Espinosa ... com todas as maldições que estão escritas na Lei. Maldito seja de dia e maldito seja de noite, maldito seja em seu deitar e maldito seja em seu levantar, maldito ele em seu sair e maldito ele em seu entrar...” [2]. E a condenação prossegue, estendendo-se a todos aqueles que se atrevam a manter contactos com este ex estudioso da Torah.

A entrada  num universo cultural dominado pelo cristianismo não o liberta da acusação de hereje. A atitude de desconfiança por parte de  indivíduos de outras confissões religiosas, acompanha permanentemente a  curta vida do autor da Etica. O único texto que ousa publicar em seu nome  é um comentário a Descartes – Renati Des Cartes principiorum philosophiae pars I & II – seguido de umas brevíssimas Cogitata Mataphysica. O Tratado Teológico Político, surgido com uma mera referência   editorial deu azo a reacções violentíssimas que remeteram o seu autor a um prudente silêncio. A devisa Caute, gravada no anel de sinete, norteou sempre as suas actuações. A reputação do ateísmo espinosano foi-se paulatinamente consolidando. É uma interpretação que muito deve a   Pierre Bayle, um maître à penser hoje esquecido mas que dominou o universo cultural europeu setecentista, fazendo e desfazendo reputações filosóficas. No seu Dictionnaire Philosophique et Critique, o longo artigo que dedica a Espinosa classifica o filósofo como “um ateu de sistema” [3] e foi deste modo que ele ficou conhecido pela maior parte da inteligentzia europeia da modernidade. Assim, no século XVIII, Voltaire, dá-nos, com a malícia que o caracteriza, a visão de um filósofo pusilânime que de um modo dissimulado nega Deus: 

“Alors, un petit juif, au long nez, au teint blême,
Pauvre mais satisfait, pensif et retiré,
Esprit subtil et creux, moins lu que célébré,
Caché sous le manteau de Descartes, son maître,
Marchant à pas comptés, s’ approche du grand être;
Pardonnez-moi, di-t-il, en lui parlant tout bas,
Mais je pense, entre nous, que vous n’ existez pas.” [4]

Anos mais tarde, a leitura de um Espinosa ateu caminhará a par de outras que se colocam num polo oposto, entendendo-o como uma espécie de santo laico, por vezes mesmo de um místico. O movimento da Spinoza Renaissance ocorrido na Alemanha em finais do século XVIII revela-nos o filósofo luso-judeu como um quase santo. Jacobi, o grande responsável por tal recuperação, emite expressões como esta: “Eu te abençoo grande Benedito, sim Santo Benedito...” [5]. Goethe classifica-o de “theissimus” e de “christianissimus” [6] Novalis apresenta-o como “o homem ébrio de Deus” [7] O que acabamos de referir (e muito mais poderia dizer-se quanto às diversas interpretações quer sobre a religiosidade quer sobre o ateísmo do filósofo judeu) dá-nos bem a ideia das controvérsias provocadas por uma obra que no entanto pretendeu ser escrita more geometrico, com a objectividade de quem trata de “linhas, superfícies e corpos” E no entanto a literatura espinosana inclui uma pluralidade de leituras díspares. Há linhas que valorizam o materialismo do filósofo e outras há que enfatizam o seu idealismo; há interpretações que vêem nele o  primeiro ateu dos tempos modernos e, contrastantemente, há  comentadores que o aproximam dos místicos. Que orientação seguir no imbricado de todos os argumentos aduzidos? Como situar Espinosa nesta polémica? Será que ela tem sentido para a compreensão do pensamento do autor? Numa tentativa de  responder a estas questões, percorreremos um caminho em duas etapas. Na primeira, indispensável para todo o hermeneuta,  confrontaremos estas acusações com o próprio texto espinosano, verificando até que ponto ele as permite. O objectivo é verificar se o autor dá algum contributo  directo ou indirecto para o problema em causa.  Na segunda, tentaremos  perceber o porquê das acusações. Partindo do princípio que não houve nelas apenas má vontade, analisaremos  como foi possível ser rotulado de incréu um homem que  terminou a sua obra maior, a Ética, falando do amor a Deus como o sumo bem, pelo qual todo o homem se realiza. 

Uma defesa ambígua 

Espinosa responde explicitamente às acusações de ateísmo e fá-lo de um modo inequívoco. Numa carta a Oldenburg, correspondente da sua confiança, afirma peremptoriamente: A opinião que o público tem de mim, não cessando de me acusar de ateísmo, sou obrigado a contestá-la o mais possível” [9]. Curiosamente, não se trata de um desabafo mas de uma entre as três razões que na epístola são apresentadas para justificar a produção do Tratado Teológico Político [10]

Os ataques continuam. O médico Velthuysen, cartesiano notório escreve uma longa carta a Jacob Ostens,  amigo do filósofo. Nela examina detalhadamente a perigosidade das posições espinosanas expostas no TTP. Não iremos analisar os seus argumentos mas tão só a tese que recorrentemente defende e com a qual o documento em causa termina: a denúncia do autor enquanto ensinando subrepticiamente o ateísmo puro e simples por uma via deturpada [11] Confrontado pelo seu amigo Osten  com as acusações de Velthuysen,   Espinosa  nega ser ateu ou ensinar o ateísmo. Mas a defesa que empreende na carta XLIII é algo ambígua, não no que o filósofo pretende demonstrar mas sim no modo como o faz.  Seria de esperar que para rebater os argumentos do seu opositor o terreno escolhido fosse o da  teologia ou o da  filosofia. Contudo,  o registo em que o filósofo deliberadamente se coloca é de outra natureza.

A primeira razão aduzida é de carácter moral. Na sequência de uma tradição bíblica na qual o ateu não é  identificado por aquilo que diz ou pensa mas sim pelo modo como age e se situa na vida, Espinosa demarca-se da  busca de honras e riquezas, chamando a atenção para a regra de conduta que observa, em tudo conforme com os mais nobres princípios éticos.

O desenrolar da carta supreende-nos. Em lugar dos clássicos argumentos esperados, fáceis de buscar na própria Etica (as provas da existência de Deus que enuncia no livro I)  ou mesmo no TTP onde classifica de brutos todos os que duvidam da divindade, Espinosa levanta questões.  É agora a sua vez de interrogar, demonstrando a  má fé do interlocutor, ou seja, pondo a descoberto a malícia das acusações pela comparação das mesmas com as teses do filósofo. E pergunta: “Assim pergunto se  abandona toda a religião aquele que afirma Deus estabelecendo que é preciso conhecê-lo como   sendo o supremo bem e  amá-lo, como tal de uma alma livre? e que acredita que a nossa felicidade suprema e a nossa maior liberdade consiste neste amor? E que a recompensa da virtude é a própria virtude e que o castigo reservado à estultícia e o suplício da impotência  é a própria  estultícia?” [12] Segue-se a discussão   de uma das teses espinosanas que mais celeuma provocou entre os pensadores seiscentistas – a da necessidade divina, que Velthuysen clasifica como fatum. Mas, contrariamente ao que seria de esperar, a defesa do filósofo  é breve, terminando sinteticamente com a afirmação de que “Essa necessidade inelutável das coisas não suprime de resto, nem as leis divinas nem as humanas” [13]. Como se o filósofo quisesse abandonar rapidamente o jogo a que se prestara ao responder ao libelo acusatório.

É uma carta reveladora, na qual Espinosa se distancia do ateísmo mas onde sobretudo demonstra a estupidez preconceituosa dos seus detractores. A impaciência que nela manifesta mostra a zanga sentida de um homem que se sente incompreendido, bem como o desejo de alguém  que  pretende relacionar-se com Deus, liberto das peias da religião positiva, por ele apelidada de superstitio. E daí o desabafo: “que  eu ame Deus por uma livre decisão ou pela necessidade de um decreto divino, de qualquer modo amo a  Deus e é desse modo que serei salvo”

Um Deus que não cria

As afirmações de Espinosa que acabamos de considerar parecem à primeira vista tornar fantasiosas e destituídas de sentido as acusações de ateísmo. Resta-nos enveredar pela segunda via que nos propusemos no início: analisar as acusações feitas, numa tentativa de determinar a pertinência das mesmas. Já vimos que o filósofo não nega Deus. Mais, sabemos que dele fala do começo ao fim da Ética. A interrogação que agora se coloca é: “Quem é esse Deus?”, ou, melhor, “que Deus é esse?” já que não visamos uma  pessoa nem um sujeito.

Pelo livro  I da Ética,  constatamos quão diferente é o Deus espinosano do Deus da tradição judeo-cristã. Na constelação das definições iniciais, Deus é  apresentado na definição VI como “um ser absolutamente infinito, quer dizer uma substância constituída por uma infinidade de atributos dos quais cada um exprime uma essência eterna e infinita” [15]. É um tópico  nuclear pois nele convergem e ganham consistência as definições anteriores, perdendo o carácter de autonomia e estranheza que inicialmente provocam em qualquer  leitor. Por ele percebemos que este Deus é permutável com os conceitos de “causa sui” e de “substantia”  apresentados respectivamente nas definições  I e  III. Com ele as definições IV e V que nos falam dos atributos e dos modos adquirem um novo sentido. Na definição VI, Deus começa a ganhar corpo, e corpo aqui nada tem de metafórico. Constituem esse Deus/Substância/Natureza,  infinitos atributos, dos quais apenas dois nos são acessíveis: o pensamento e a extensão.

Tomada em si mesma, a definição VI não parece diferenciar-se muito  de outras definições de eminentes teólogos. Só que o termo “exprime” (“exprimit”) não é de modo algum inocente. Por ele começamos a perceber que o  Deus espinosano se manifesta, exprimindo-se, em todos os seres que existem – os modos – e que estes são afecções (afectiones) da Substância, não só revelando-a mas também constituindo - a. Um Deus / Substância sem modos seria algo de absurdo, um mero conceito vazio, incompreensível. Deus é a Natureza,  é a totalidade do  que existe. Corpos e mentes, ideias e organismos decorrem do dinamismo próprio de uma Substância que se expande, são determinações da Natureza,  são Deus quatenus, ou seja, um Deus que se concretiza das mais variadas maneiras, sejam elas um pássaro, uma árvore ou uma teoria. A proposição XV do livro I recorda algo que parece familiar para quem habita a tradição judeo-cristã, estabelecendo que “Tudo o que é, é em Deus e nada pode ser nem ser concebido  sem  Deus” [16]. Mas as proposições que se seguem retomam o caminho da dissidência. A proposição XVI recorda-nos a imperiosa necessidade da potência divina que, enquanto essentia actuosa, necessariamente produz modos: “Da necessidade da natureza divina devem seguir numa infinidade de modos uma infinidade de coisas, quer dizer tudo o que pode cair sob um entendimento infinito” [17]. E a proposição XVIII, uma das mais reveladoras da ontologia espinosana, nega a transcendência divina, apresentando-nos um Deus/Substância que ao revelar-se e conhecer-se produz os modos, as actualizações necessárias da sua essência. O Deus da Ética é  um Deus imanente, um Deus que não cria: “ Deus é causa imanente mas não transitiva de todas as coisas” [18].

O Deus de Espinosa é impessoal, impassível,  determinado, necessário. São essas características que o tornam absolutamente perfeito. A perfeição divina consiste na sua imediatez e completude mas também  na sua organização e estruturação, por Espinosa designada de necessidade ou eternidade. A criação por amor é algo de gratuito, impensável num Deus Substância sumamente racional. A Substância espinosana caracteriza-se pela imediatez, colocando-se desde sempre com todas as suas determinações. Deus não é prévio aos modos. A supremacia que detém sobre eles é a mesma que existe entre  o Todo e as partes.

A ideia de um Deus que não cria é acompanhada de uma crítica profunda a qualquer ordem finalizada , a qualquer plano patente na Natureza. O Apêndice do livro I desconstrói a perspectiva teleológica, classificando-a como uma das superstições maiores e mais comuns de toda a humanidade. A “vontade de Deus, esse asilo da ignorância”, é a expressão encontrada pelo filósofo para a pretensão de justificar os acontecimentos cujas verdadeiras causas desconhecemos [19]. Ao recorrermos à vontade divina, substituímos a ordem do Todo por uma ordem comum da natureza. Mas esta não é mais  do que a projecção dos nossos anseios e objectivos.

O antropomorfismo e antropocentrismo estão presentes  na superstição e a maior parte das religiões nada mais é do que superstitio cujos preconceitos (praejudicia) importa combater. A vera religio deverá despojar-se dessas projecções e centrar-se numa forma de viver que nos permita entrar em sintonia com o Todo.  Daí o seu carácter propedêutico no que respeita à relação gratificante com Deus, à qual todos podemos pretender mas  que, na realidade, só alguns conseguem alcançar.As relações homem /Deus.

Poderíamos dizer da Ética que ela é o desenrolar de todas as características de um Deus sive substantia sive Natura, construindo-se numa circularidade que vai da Substância aos modos (livro I) e destes (particularmente o modo humano) a Deus (livro V). Se o livro I parte de Deus, e nos agride com a aparente arbitrariedade das definições iniciais, o livro V chega a Deus. Estabelecida a ponte entre infinito e finito, percorre-se agora o caminho inverso, tentando que o homem alcance o Todo. É tempo de redireccionar a interrogação já feita relativamente a Deus e perguntar agora “Que homem é este?”. Sabemos que  o universo espinosano é descentrado, colocando o homem a par dos outros modos e deles apenas o distinguindo por uma maior complexidade do seu corpo, consequentemente da sua alma [20]. O conatus, o esforço para se manter na existência e  aumentar o ser próprio, não só é algo de comum a todas as coisas como é aquilo que as define, a cada uma e a todas. É verdade que Espinosa diz do homem que ele pensa – Homo cogitat – mas fá-lo de passagem, num axioma  de importância secundária [21]. O que define cada ser humano não é o pensamento mas o desejo de ser e de aumentar o ser. É enquanto desejo que o homem se vai progressivamente realizando. O desejo é a consciência do conatus, essa essência que todos os seres pretendem viver plenamente,  dado que a perfeição de cada coisa nada mais é do que a sua natureza [22]. É pelo desejo que o homem se constrói e nessa construção se vai distinguindo dos outros modos pois o seu caminho é diferente do deles. Na verdade é um caminho do qual  podemos ganhar consciência reflexiva. Enquanto homens temos possibilidade de descobrir os diferentes elos que se entretecem entre os diferentes conatus que são os outros modos. São esses elos que permitem o estabelecimento de uma ligação com Deus. O desejo humano coloca-se assim como mediação para Deus e culmina na descoberta da especificidade do  estatuto do humano enquanto manifestação da potência divina.

O homem está no mundo e consequentemente é afectado pelos outros modos. Estabelece relações com os restantes corpos e desse modo vai aumentando ou diminuindo o poder próprio. Quando se limita a sofrer passivamente a actuação dos objectos, sem a compreender, é causa parcial do que lhe acontece, é passivo. Quando procura ser causa adequada daquilo que o afecta, ou seja, quando compreende, então é activo. A razão  corresponde à obtenção de autonomia, portanto de actividade.

A autonomia do desejo é o objectivo procurado por Espinosa. Trata-se de um caminho difícil, a via perardua de que nos fala a Ética [23] cuja meta é a coincidência/união com toda a Natureza. O processo de ordem intelectual, ontológica e ética que leva ao encontro com esse Deus/Natureza não é uma deificação mas tão só uma procura do lugar de cada um no cosmos. Nele os homens não detêm uma posição privilegiada pois são modos entre modos, expressões como as demais do dinamismo da Substância. Note-se que este aparente nivelamento de toda a Natureza não anula nem diminui  a especificidade de um projecto que só aos homens pertence. Na verdade, só eles são livres. Mais do que de liberdade, termo que aliás Espinosa usa constantemente, deveríamos falar de libertação. O homem liberta-se pela conquista de uma individualidade que se vai construindo ao longo do livro V da Ética. E é nesta parte final que o conceito de Deus é revisitado. É conhecendo as coisas em Deus, como Deus conhece, que alcançamos o amor intellectualis Dei que nos traz a suma felicidade e que nos salva. O homem é o único agente que desencadeia a sua salvação, uma salvação imanente, ligada ao conhecimento e ao amor. Uma etapa que, quando alcançada nos faz mergulhar na eternidade: “O amor intelectual de Deus, que nasce do terceiro género de conhecimento, é eterno” [24]. Uma etapa que exige uma revisão do Deus / Natureza traçado no início da obra. De facto, como conciliar um Deus impessoal, impassível, imanente e necessário com o conceito de um Deus que se ama a si mesmo e ama os homens, tal como aparece nas proposições XXXV e XXXVI do livro V?  Contradições/ conciliações . É na parte terminal  da Ética, o livro V, que muitas questões  da ética e ontologia espinosanas encontram resposta. Mas é também aqui  que outros problemas se levantam, de tal modo que há comentadores que  prescindem deste capítulo para manterem do espinosismo uma visão coerente [25]. Não iremos tratar aqui da aparente incompatibilidade entre um conceito de alma como ideia do corpo e o registo enfatizado neste livro que considera a alma “sem relação com a existência do corpo” [26] . Tão pouco nos preocupa estabelecer conciliações  entre a oposição  filosofia e teologia, empreendida no TTP e a utilização de um vocabulário impregnado de religiosidade, patente neste final da Ética. Limitamo-nos a relevar três pontos que inicialmente nos pareceram polémicos: Um Deus impessoal que ama os homens; uma salvação sem transcendência; um combate à religião em nome de Deus.

O conteúdo deste passo situa-nos no género mais alto de conhecimento, a ciência intuitiva, apontando para a dimensão amorosa que nele ocorre, dimensão essa que distingue este género cognitivo do conhecimento de segundo género, ao nível da razão. Por ele se estabelece uma fronteira entre o mero cientista e o sapiens. Só a este é dado gozar a suprema beatitude, a felicidade máxima que nos faz participar de Deus, coincidindo com ele na medida que nos é, enquanto  humanos,  possível. Dá-se portanto  nesse grau de conhecimento uma identificação da nossa alma com Deus. É um Deus quatenus, ou seja, um Deus que não é tomado na sua absoluta infinitude, mas apenas na parte em que a  potentia divina coincide com a humana. A ideia que nós somos (a alma humana) e a ideia que nós temos de Deus são feitas coincidir, devido a um esforço intelectual que satisfaz totalmente o nosso desejo. E assim podemos dizer que o conhecimento supremo nos leva a participar do amor infinito com que Deus se ama a si mesmo. É um amor que não implica sujeito, nem consciência, nem qualquer relação personalizada visto que decorre do puro gozo de uma existência plena. O corolário da proposição XXXVI reitera a explicação deste amor em que não há sujeito/amante  nem objecto/ amado mas apenas a coincidência de duas ordens que se descobrem idênticas: “ Segue-se daí que Deus, enquanto que se ama a si mesmo, ama os homens, e consequentemente que o Amor de Deus para com os homens e o Amor intelectual da alma para com Deus são uma e a mesma coisa” [28]. Não se trata de  uma relação amorosa personalizada mas da fruição de um mesmo amor, diferentemente experimentado pelo Todo e pelas partes, estabelecendo uma sintonia  entre um e outras.  A segunda dificuldade encontrada diz respeito à  importância que o filósofo concede à salvação, ao mesmo tempo que nega qualquer espécie de vida depois da morte. Mantendo-nos ainda nas implicações decorrentes da proposição XXXVI seleccionámos o escólio da mesma onde nos é dito: “Por aqui inteligimos claramente em que consiste a nossa salvação, ou seja, a nossa Beatitude ou a nossa Liberdade; quer dizer num amor constante e eterno para com Deus, ou no Amor de Deus para com os homens. Esse Amor ou essa Beatitude é chamado nos livros sagrados Gloria, não sem razão (...)” ">Com este escólio  percebemos que para o filósofo a salvação é um processo natural e que simultaneamente   é descrita mediante a utilização de uma linguagem religiosa: salus, seu beatitudo,seu libertas,seu gloria.

Em que consiste então essa  salvação que se processa no mundo? Ela é tão só a descoberta do nosso lugar no cosmos bem como da vivência adequada a essa descoberta. É  pelo conhecimento do terceiro género que nos  situamos, aqui e agora, sob a perspectiva da eternidade, ou seja, que entendemos as coisas do ponto de vista de Deus, do Todo e não de nós próprios. O homem comum vê as coisas no tempo, a partir das suas percepções, recordações e imagens, visando objectivos egoístas.  O sapiens abdica do carácter fortuito das coisas e interpreta-as a partir de Deus, na necessidade e eternidade que lhes são próprias. Para o fazer, é-lhe necessário trilhar um caminho árduo. Ajuda-o nesse trabalho não só a integração na cidade como também o conhecimento científico. A boa organização da Civitas favorece a realização dos homens e agiliza a salvação, até porque : “O homem que é conduzido pela razão, é mais livre na cidade onde vive segundo o decreto comum, do que na solidão onde apenas obedece a si mesmo” De igual modo, o exercício de um pensamento rigoroso e objectivo, facultado pela prática científica, é uma etapa indispensável para quem pretenda salvar-se. Ninguém pode fazê-lo sendo ignorante ou limitando-se a um conhecimento ex auditu  pois “O esforço ou o Desejo de conhecer as coisas pelo terceiro género de conhecimento não pode nascer do primeiro género de conhecimento mas sim do segundo” [31]. A salvação é um caminho trabalhoso que não está à mão  (in promptu) da maioria pois como diz o filósofo  nas últimas linhas  da Ética: “omnia praeclara tam difficilia quam rara sunt” [32]. Mas é um convite que é feito a todo o homem ao qual cabe decidir se o aceita ou recusa. Resta-nos analisar a última incompatibilidade referida, ou seja, o combate à religião que o filósofo empreende em nome de Deus. Espinosa é crítico relativamente às grandes religiões do seu tempo inserindo-as naquilo que genericamente designa como superstitio. O judaísmo é por ele severamente analisado no TTP  que  ataca o  espírito estreito e elitista dos judeus, denunciando a rudeza e ignorância dos seus profetas e ridicularizando as suas práticas. O cristianismo, perante o qual o filósofo demonstra alguma complacência pela abertura que lhe reconhece e pelo papel que confere a Cristo como modelo ético, também não escapa ao iconoclastismo espinosano. O corpo dogmático do catolicismo é recusado como incompreensível, os mistérios são reduzidos a erros, as verdades fundantes da criação, encarnação  e ressurreição são consideradas ofensivas à lógica [33]. Perante o islamismo é o posicionamento é igualmente duro. Embora não dedique ao credo islâmico a mesma atenção que prestou ao judaísmo e ao cristianismo, o filósofo é peremptório em considerar Maomé um impostor, denunciando-o como um falso profeta [34] Por este quadro brevissimamente traçado percebemos a pertinência das críticas feitas a Espinosa por parte da intelligentzia religiosa do seu tempo que o reconheceu na classificação já por nós referida de “ateu de sistema”. E no entanto o filósofo fala da religião verdadeira  – vera religio. Esta, caracteriza-se em primeiro lugar pela sua universalidade. O homem pode encontrá-la no seu íntimo, pela descoberta da lei que nele habita. Esta não implica  uma relação íntima com Deus, apenas exige  uma atitude de docilidade perante as suas leis, as leis da Natureza, às quais podemos aceder por diferentes vias. O caminho que leva à religião não é racional dado fundamentar-se na imaginação. Mas não ofende a lógica pois a fé para a qual  Espinosa apela não é totalmente destituída de razão – há motivos racionais para  acreditar. A vera religio não tem a dimensão imponderável e misteriosa que acompanha a superstitio. A sua crença justifica-se pelas consequências benéficas que dela resultam [35]. Ela transforma-se num credo mínimo de verdades morais para todo o homem que pretenda viver bem. Para além desta recuperação do que é eticamente aproveitável em todas as religiões, o filósofo que recusou um Deus criador e transcendente, e como tal foi considerado ateu, transferiu para a filosofia os conceitos, elementos e expressões que considerou mais válidos nos diferentes credos, fazendo desta um caminho para a salvação e para Deus. Se, como diz Paul Ricoeur o ateísmo é a rejeição da imagem de Deus como Pai 36], teremos que considerar Espinosa ateu pois ninguém melhor do que ele libertou Deus de um rosto humano, identificando-o com a totalidade impessoal de um Ser sujeito a leis eternas, cuja obra é mera expressão necessária da uma  potência que se revela. Sem dúvida que Espinosa contribuiu para a secularização iniciada na modernidade [37]. Mas ao fazê-lo não abdicou da categoria de divino, antes a transferiu para a Natureza, mantendo face a esta a mesma atitude de respeito, recolhimento e beatitude que se reserva à divindade. O mundo posto que não criado por Deus é sua expressão,  sua manifestação e fala. Compreendê-lo é compreender Deus, algo que no dizer de Espinosa nem a religião nem a teologia conseguem fazer mas que à filosofia se coloca como um desafio permanente. 

Ignoramos se  Espinosa alguma vez teve  consciência das aparentes contradições que nele detectámos face ao Amor Dei, à salvação e à “religiosidade”. Também não estamos seguras da adequabilidade da hermenêutica que empreendemos.  Apenas sabemos com certeza que o percurso feito ao longo deste texto nos foi pessoalmente útil para melhor percebermos o Deus de Espinosa, esse Deus que não cria. 


[1] A língua utilizada pela comunidade luso-judaica de Amsterdão era o ladino, uma mistura de português com termos espanhóis e hebraicos.

[2] Livro dos Acordos de Naçam, Folio 408. A obra mais acessível onde podemos consultar parte deste texto é a de Yirmihahu Yovel, Espinosa e Outros Herejes, trad. do inglês por Maria Ramos e Elisabete Costa, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1993, p. 13.

[3] “(...) il a été un athée de systhème”, Pierre Bayle, Dictionnaire Historique et Critique, Amsterdam, 1740, t. IV, p. 253.

[4] Voltaire, Les Systèmes em Oeuvres, Paris, ed. Moland, 1883, t. X, p. 170.

[5] “Und sey du mir gesegnet, grosser, ja heiliger Benedictus. Wie du auch über die Natur des hochsten Wesens philosophiren und in Worten dich verirren mochtest: seine Wahrheit war in deiner Seele, und seine Liebe war dein Leben.” F.H. Jacobi, “Über die Lehre des Spinoza” in Briefen an den Herren Moses  Mendelssohn, Werke, herausgegeben von F. Roth und F. Köppen, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1976, t. III, pp. 46-47.

[6] Vj. Xavier Tilliette, “Spinoza Préromantique. Aspects de la Première Rennaissance” em Archivio di Filosophia, Padova, 1978, 1, pp. 217-229 (p. 227).

[7] “(...) der Gottbetrunkener Mensch.”, Novalis, Schriften, Leipzig, Paul Kluckhon, 1928, t.III, p. 318.

[8] “(...) ac si quaestio de lineis, planis, aut de corporibus esset”, Ethica III, Praefatio, G. II, p. 138.

[9] “Opinio, quam vulgus de me habet, qui me atheismi insimulare non cessat: eam quoque  averruncare, quoad fieri potest, cogor.” Ep. XXX a Oldenburg, G.IV, p. 166.

[10] As outras duas razões   são o combate aos preconceitos dos teólogos e a liberdade de filosofar.

[11] “ (...) si denunciem eum tectis, et sucatis argumentis merum Aheismum docere.” Ep. XLII de Lambertus de Velthuysen a Jacob Ostens, G.IV, p. 218.

[12] “An quaeso, ille omnem religionem exuit, qui Deum summum bonum agnoscendum statuit, eundemque libero animo ut talem amandum? Et quod in hoc solo nostra summa felicitas, summasque libertas consistit? Porro quod praemium virtutis sit ipsa virtus, stultitiae autem et impotentiae supplicium sit ipsa stultitia?” Ep. XLIII de Espinosa a Osten, G.IV, p. 220.

[13] “Porro haec inevitabilis rerum necessitas neque leges divinas, neque humanas, tollit” ibidem, p. 222.

[14] “(...) et sive Deum amem libere sive ex necessitate Dei decreti Deum tamen amabo, et salvus erro.” Ibidem, p. 224.

[15] “Per Deum intelligo ens absolute infinitum, hoc est, substantiam constantem infinitis attributis, quorum unumquodque aeternam et infinitam essentiam exprimit”. Et. I, def. VI, G.II, p. 45.

[16] “Quicuid est, in Deo est, et nihil sine Deo  esse neque concipi potest” Et.I, prop. XV, G.II, p. 56.

[17] “Ex necessitate divinae naturae infinita infinitis modis (hoc est omnia, quae sub intellectum infinitum cadere possunt) sequi debent.” Et.I, prop. XVI, G.II, p. 60.

[18] “Deus est omnium rerum causa immanens, non vero transiens”. Et. I, prop. XVIII, G. II, p. 63.

[19] (...) ad Dei volutatem, hoc est ignorantiae asylum, confugeris.” Et. I, Appendix, G. II, p. 81.

[20] De facto, para Espinosa a alma é a ideia do corpo como fica bem expresso em Et.II, prop. XIII.

[21] “Homo cogitat”, Et.II, ax.II, G.II, p. 85.

[22] Et.IV, Praefatio.

[23] Et. V, prop. XLII, schol.

[24] “Amor Dei intellectualis, qui ex tertio cognitionis genere oritur, est aeternus”. Et. V, prop. XXXIII,  G.II, p.300.

[25] É o caso de Bernard Rousset, na obra La Perspective  Finale de l’ Éthique et le Problème de la Cohérence du Spinozisme, Paris, Vrin, 1968.

[26] “(...) ad Mentis durationem sine realtione ad Corporis existentiam...” Et.V, prop. XX, schol. G.II, p. 294.

[27] “Mentis Amor intellectualis erga Deum est ipse Dei Amor, quo  Deus se ipsum amat, non quatenus infinitus est, sed quatenus per essentiam humanae Mentis, sub specie aeternitatis consideratum, explicari potest, hoc est, Mentis erga Deum Amor intellectualis pars est infiniti amoris, quo Deus se ipsum amat.”

[28] “Hinc sequitur, quod Deus, quatenus seipsum amat homines amat, et consequenter, quod Amor Dei erga homines, et Mentis erga Deum Amor intellectualis, unum et idem sit.” Et. V, prop. XXXVI, cor., G.II, p. 302.

[29] “Ex his clare intelligimus, qua in re nostra salus, seu Beatitudo, seu Libertas consistit, nempe in constanti et aeterno erga Deum Amore, sive in Amore Dei erga homines. Atque hic Amor seu Beatitudo in Sacris codicibus Gloria apellatur, nec immerito (...)” ibidem, schol., p. 303.

[30] “Homo qui ratione ducitur, magis in civitate, ubi ex communi decreto vivit, quam in solitudine, ubi sibi soli obtemperat, liber est.” Et. IV, prop. LXXIII, G. II, p. 264.

[31] “Conatus seu Cupiditas cognoscendi res tertio cognitionis genere oriri non potest ex primo, at quidem ex secundo cognitionis genere.” Et.V, prop. XXVIII, G.II, p. 297.

[32] Et. V, prop. XLII, schol.

[33] Veja-se sobretudo as Cartas LXXIII e LXXV a Oldenburg e a Carta LXXVI a Albert Burgh.

[34] Ep. XLIII a Jacob Osten.

[35] Os tópicos relativos à superstição e religião reproduzem parte do que já foi por mim focado noutra obra. Vj. Maria Luísa Ribeiro Ferreira, A Dinâmica da Razão na Filosofia de Espinosa, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, pp. 167 e segs.

[36] Paul Ricoeur, Le Conflit des Inteprétations, Paris, Seuil, 1969, p. 475.

[37] Veja-se a este propósito o artigo de Miguel Baptista Pereira “Bento Espinosa na Modernidade Europeia”, na obra do mesmo autor Modernidade e Secularização, Coimbra, Almedina, 1990, pp. 65-108.