LUÍS COELHO
Fisioterapeuta e escritor
O que diferencia genuinamente a Fisioterapia das outras práticas de saúde ligadas à motricidade é o toque. O contacto manual funde-nos com o paciente, laborando um objecto comum. O caminho é racional e idiossincrático. A multiplicação do Coronavírus não mata a racionalidade ou a individualidade, antes exponencia a sua necessidade. Porque uma situação inédita implica medidas criativas. E porque uma condição de “excepção” obriga à coragem moral de estar “com”, sem o desabrigo da quarentena tácita.
Muitos “modernos” gostariam que a Fisioterapia fosse progressivamente massificada e desindividualizada. Conseguiram, sim, que o número exponencial de pacientes nas clínicas colocasse todos em risco. Não há higiene manual possível quando se tratam dezenas de doentes em simultâneo. Há, apenas, a pertinência da higiene dos comportamentos, que se vendem como receitas a pacientes desinvestidos e sem o necessário acompanhamento ciente. A individualidade possibilita encadear ciência de “grupo” e racionalidade personalizada. Mesmo em contexto de pânico, em “estado de sítio”, é possível e recomendável “parar” para que uma estratégia seja esboçada com coerência.
É verdade que algumas tarefas “fisioterapêuticas” podem ser consideradas adiáveis. O que, de mais a mais, convida ao desemprego dos profissionais precários. Mas é também verdade que certas necessidades irão urgir, obrigando ao encadeamento de uma nova dinâmica. Necessidades “respiratórias” e de exercício não podem deixar de recrutar os terapeutas num novo contexto “de banco”, e até nocturno. Os cuidados de enfermagem, per se muito respeitáveis, não são “Fisioterapia respiratória”. E “Cinesiterapia respiratória” é um conceito esquivo, e não exclusivo aos fisioterapeutas. O método específico destes profissionais possui um alcance único, “evidente” e, mais do que nunca, imprescindível.
Paciente e o próprio terapeuta são os agentes de um processo que não se inicia ou finaliza no imediato. O imediato é o inerente espaço terapêutico em que o tempo se esgota na fusão de um caminho, do qual deve sobressair um equilíbrio contagioso. A crise é a oportunidade de melhorar capacidades e de desenvolver novas valias. Um vírus é, bem vendo, uma proa de (re)acção onde se devem deslocar todas as sinergias. Só isto pode repudiar o clima de morte e apreensão. Doutro modo, já estamos mortos e a luta é iníqua. A atitude terapêutica é uma potência de “vida”, e a morte é vencida quando se vence o próprio medo. Para este objecto não há zona de quarentena, há, sim, zona de guerra “libidinal”, onde o contacto é seguro e aprovável. Zona de Eros, em que o poder e a “luta pela sobrevivência” se fazem de uma só bênção.
Não deixemos, portanto, que a “potência” estrague o objecto do sofrimento, que é o de crescer e redimir os erros do passado. Se não estivermos à altura, sobreviveremos de esquecer o pretérito e de varrer os destroços para debaixo de um tapete “vermelho” por cima do qual caminharemos com o orgulho e um falso arrependimento. O actual “estado de excepção” também desperta passados ressentidos e “ajustes de contas”. Compete aos profissionais dar o exemplo da acção objectiva, altruísta e equitativa.
Ninguém pode ser subtraído ao contacto. A própria equipe de saúde vai ter de aligeirar as antigas querelas. As luvas não são para ser tiradas só num momento de duelo. Podem ser mantidas e permitir que as mãos se façam presentes. Por sua vez, as máscaras consentem muitas vezes que as outras que usamos sempre se façam de fragilidade. Num país onde o papel higiénico se esgota, devemos, cada vez mais, tirar as fraldas. Para que o sol nasça para todos, na praia dos hóspedes divinos.
É por isso que exorto os terapeutas a darem o máximo de si, num paradigma de segurança e dignificação. As regras e a ciência só fazem sentido num clima de razoabilidade e abnegação. Para que não acabemos a escolher os pacientes mais “produtivos” e a negar-nos à velhice. Para que nós mesmos nos tornemos velhos realizados e contaminados de “boa vontade”.
Luís Coelho