ALEJANDRO VENTURA
ALEJANDRO VENTURA (México, 1986). Jornalista e viajante independente. Nasceu em Tuxtla e ainda jovem, após um período de retiro espiritual na região do Cañón del Sumidero, decidiu se tornar um viajante, buscando conhecer e entrevistar artistas, artesãos, escritores, de toda a imensidão americana, movido pela ideia de reunir todo esse material em um livro que pretende chamar de Rota Selvagem da Cultura. Atualmente mora em Piracuruca, no Piauí, em uma pequena casa alugada perto das áridas savanas do Brasil.
Hoje existe uma iniciativa de grande valor cultural no Brasil chamada Rede de Aproximações Líricas. Quatro intelectuais, responsáveis pela criação de projetos editoriais com forte ligação com a cultura da América Latina, decidiram unir forças em um propósito comum que se soma ao trabalho que realizam há pelo menos duas décadas, publicando revistas e livros. A mais antiga delas é a Agulha Revista de Cultura, que também é pioneira, pelo menos no Brasil, entre os periódicos virtuais dedicados aos estudos críticos sobre arte e cultura. Logo foi a vez de uma editora bastante inusitada no país, a Sol Negro Edições, especializada em livros artesanais. Por fim, outra revista, a Acrobata, que começou como publicação impressa e logo migrou para o mundo virtual. Falarei com seus editores sobre esta valiosa união de forças.
ALEJANDRO VENTURA | Primeiramente quero dizer que acho muito bonita a iniciativa de criar uma rede de cumplicidade entre poetas, além de agradecer ao Demetrios Galvão, que me permitiu esta oportunidade de falar com vocês. Minha pergunta inicial será justamente sobre o despertar dessa consciência, dessa luz que fez com que todos sentissem a importância do trabalho de produção compartilhada. Quem teve a ideia? Como surgiu esse lindo projeto?
DEMETRIOS GALVÃO | Alejandro, é um prazer responder essa entrevista, juntamente com essas parcerias maravilhosas… Eu preciso dizer que tudo que está sendo feito passa pelo maestro incansável chamado Floriano Martins. Já fazem algumas décadas que Floriano dialoga com a produção literária hispânica e, mais recentemente, nos aproximamos para desenvolver um projeto chamado “Atlas Lírico da América Hispânica”. Esse projeto fez com que passássemos a conversar constantemente e em uma dessas conversas, aqui em Teresina, minha cidade natal, percebemos que existiam algumas iniciativas que passavam pelas revistas Agulha e Acrobata, bem como a editora Sol Negro, que estabeleciam um forte diálogo com a literatura latino-americana. Essas ações passavam pelo poder de articulação do Floriano e em uma conversa durante o Salão do Livro do Piauí (SALIPI, 2023), tivemos a ideia de juntar essas três peças soltas e montar a rede. Percebemos que as energias já circundavam o mesmo núcleo e só precisávamos formalmente, juntar as forças e dar um nome. Então, a rede surge de três iniciativas independentes que se aproximam pelo campo de interesse em comum, no qual, um vira suporte para o outro, um fortalece o outro, construindo a rede.
ELYS REGINA ZILS | Meu contato inicial foi com Floriano para uma entrevista relacionada ao surrealismo no Brasil para um projeto pessoal. Ele foi tão receptivo que mantivemos contato praticamente diariamente desde então. Nossos interesses comuns levaram Floriano a inicialmente me convidar para dividir com ele a direção da Agulha Revista de Cultura, cujas publicações ele já acompanhava e admirava pelo comprometimento com a divulgação da cultura latino-americana.
Mais tarde, Floriano me convidou para compartilhar com ele as traduções do “Atlas Lírico”, e atualmente a querida Gladys Mendía também está lá. Completando o trio surgiu a proposta de colaborações com a Sol Negro, o que foi natural já que a editora publica poetas de grande relevância que eu já havia lido e outros nomes que venho pesquisando em meus trabalhos acadêmicos estão ausentes em seu catálogo. Então, quando Floriano e Demetrios propuseram a Rede para unir forças e ampliar um panorama de divulgação sistemática da tradição lírica latino-americana, fez todo o sentido para mim.
FLORIANO MARTINS | De algum modo a ideia da rede sempre esteve na pauta da Agulha Revista de Cultura e de minhas preocupações como pesquisador, ensaísta e tradutor. Talvez até mesmo por excesso de trabalho não havíamos pensado ainda em formalizar a sua criação, muito embora já de algum tempo vimos trabalhando com base em cumplicidades valiosas. Evidente que a reunião de forças, da forma como agora configuramos a rede, nos dá uma perspectiva maior, de sequência do que já fazemos, uma mais ampla difusão, e o estímulo para ousar mais, para realizar novas ideias. Até o momento, nosso quinteto vem sendo muito frutífero: Márcio Simões, através da Sol Negro, já publicou muitos livros meus e agora começa a publicar livros da Elys Regina Zils. Para ela eu passei a direção geral da Agulha Revista de Cultura e com ela realizamos as traduções do “Atlas Lírico da América Hispânica”, editado pela revista Acrobata. O Atlas conta ainda com as traduções de Gladys Mendía, que se reuniu a nós este ano, mas que anteriormente já me havia publicado dois livros, ao mesmo tempo em que eu mesmo traduzi um livro dela. Demetrios Galvão completa esse quinteto que vive no maior jazz. Sua preciosa revista é um ponto de equilíbrio para todos nós, por sua dedicação intensa à poesia.
MÁRCIO SIMÕES | Creio que a ideia veio de Floriano Martins, que foi/é o elemento agregador desta Rede, uma vez que todos nós, em separado, já colaborávamos com ele de diferentes formas há algum tempo.
AV | Sei que o pioneirismo de uma concentração de esforços como esta não tem maior valor, pois o ideal é que haja cada vez mais experiências desta natureza. Existem muitas revistas de poesia no Brasil e imagino que publiquem traduções de poetas latino-americanos. ¿Vocês mantém contato com essas outras publicações?
DG | No Brasil existem muitas revistas literárias impressas e eletrônicas, porém poucas dão atenção à literatura hispânica feita no continente. Via de regra seguem uma perspectiva colonizada e publicam com mais frequência traduções de escritores europeus e americanos. A Agulha Revista de Cultura é pioneira nessa ponte com os países vizinhos. Até recentemente essa lacuna era maior, nos dias de hoje existem editoras atentas à literatura hispânica feita no continente e posso citar a Moinhos e a Sol Negro, como editoras que vêm fazendo a diferença. Os projetos que desenvolvemos hoje de forma conectada, promovem uma novidade no cenário literário brasileiro, pois abrem um largo horizonte de integração e aproximação. Só o “Atlas Lírico” conta já com mais de 300 poetas publicados, abrangendo 19 países, e todo esse material está disponível em nossa página web. A Agulha – que já está no número 240 – tem um acervo gigante de publicações ao longo de 23 anos. Acredito que nossa iniciativa com a Rede, seja inédita no país.
ERZ | Como tradutora e com especial interesse pela tradução de poesia, já havia colaborado esporadicamente com outras revistas brasileiras, mas nada se compara ao grande projeto como o “Atlas Lírico”, que conta com a presença de mais de 300 poetas. Com o objetivo de unir esforços na divulgação da poesia latino-americana, mantenho sempre as portas abertas para possíveis alianças. Em geral, o Brasil carece de poesia latino-americana, por isso todo esforço para contribuir para a circulação de mais poesia é importante, bem como tornar o que estamos fazendo atualmente no Brasil conhecido para outros países latino-americanos. Há várias cumplicidades.
FM | Um marco bastante expressivo dessa concentração de forças vem do princípio do século, quando Soares Feitosa, do Jornal de Poesia, me convida para organizar ali o que chamamos de “Banda Hispânica”, um vultoso projeto que reunia ensaios, entrevistas e poemas acerca da tradição lírica hispano-americana. Atuante por mais de uma década, este projeto – que hoje se encontra fora do ar – foi distribuído em dois outros: “Conexão Hispânica”, que integra a Agulha Revista de Cultura, e o “Atlas Lírico”, publicado pela Acrobata. Na época da “Banda Hispânica” eu também publiquei traduções de poetas hispano-americanos em muitos jornais e revistas do país, além de haver publicado uma antologia de poetas dessa região relacionados com o Surrealismo, um livro que foi bastante comentado. De algum modo aí estava dado o estímulo para que se desdobrasse, de modo sistemático, esse interesse cultural. No entanto, ainda que poemas tenham sido publicados em alguns veículos, nada houve de mais relevante. Paralelo ao nosso projeto no Jornal de Poesia surgiu, em 2004, o “Portal de poesia ibero-americana”, criado e dirigido por Antonio Miranda, que até hoje pode ser consultado. Lembro ainda que a revista Poesia Sempre, da Fundação Biblioteca Nacional, dedicou alguns de seus números a países como México e Peru – este último eu tive o prazer de organizar e traduzir, juntamente com seu então editor, Marco Lucchesi. Também o Memorial da América Latina deu início a uma coleção intitulada “Memo”, de livros de bolso, que publicou alguns volumes organizados e traduzidos por mim. Esta também foi projeto que não teve continuidade. Agulha Revista de Cultura e Acrobata mantêm boas relações com todos os diretores de revistas brasileiras, independentemente de suas pautas.
MS | Não tenho certeza se há tantas, mas as que conheço acompanho como leitor e observador atento. Contato pessoal, no entanto, apenas com a Agulha, [n.t.] Revista Nota do Tradutor e agora a Acrobata.
AV | Uma coisa que noto é que as três publicações que agora ingressam são da mesma região do país, o Nordeste. Houve alguma intenção de demarcação territorial ou essa origem foi apenas uma coincidência?
DG | Esse detalhe foi mero acaso; no entanto, estamos fora do grande eixo editorial, econômico, do cartel semiótico que domina o país e isso, talvez, nos dê a condição de ter um olhar diferenciado. Não olhamos para o próprio umbigo e essa é uma questão política importante. Buscamos estabelecer contato com outros cenários poéticos. Particularmente, tenho me alimentado com sensibilidades decoloniais e buscado diálogos com outras matrizes culturais e poéticas. A aproximação com a literatura latino-americana virou uma questão decisiva para o meu trabalho como editor, poeta, professor e sujeito que habita esse continente. Como historiador de formação e provocado pelas leituras do giro decolonial e do sociólogo peruano Anibal Quijano, comecei a levantar algumas questões que passam pelo debate da colonialidade do poder e da crítica ao eurocentrismo: por que não temos o espanhol como segunda língua? Por que sabemos pouco sobre os nossos vizinhos e, por outro lado, estudamos tanto sobre história da Grécia e da Europa? Por que buscamos sentar à mesa com os colonizadores e desprezamos aqueles que têm uma história colonial parecida com a nossa? Por que formamos nosso imaginário com imagens de mundos distantes ao passo que tornamos estranhas as experiências originárias, ancestrais, de nosso continente? Esses detalhes começaram a me incomodar demais nesses últimos anos e a implicarem no meu fazer como editor, leitor, escritor.
ERZ | Floriano é o centro vital das nossas cumplicidades. Conhece pessoalmente Demetrios Galvão e Márcio Simões. No entanto, até agora não houve nenhum encontro pessoal entre nós. Falo do Sul, Santa Catarina. A virtualidade já faz parte de nossas vidas em tantos aspectos que está incorporada neste projeto sem nenhum prejuízo. Agulha, Acrobrata e Sol Negro têm origem no Nordeste brasileiro, mas acredito que essas três instâncias tenham obras que rompem fronteiras. Então estamos juntos com um propósito comum, eis o que dizemos com a Rede – independentemente da localização geográfica.
FM | Evidente que o Nordeste do Brasil é um grande polo de criadores artísticos, que alimenta o país de modo valioso e pouco recordado. No entanto, não cabe em circunstância alguma dar motivos ao preconceito ou à presunção. O país precisa entender que é uma unidade, vastíssima, problematiza tanto pelo seu gigantismo territorial quanto pelo astuto e criminoso desmonte político de sua cultura. A rede – como consequência natural do trabalho de seus integrantes – é um passo nesse sentido de integração. Independente do fato da Elys Regina Zils será catarinense, o essencial é que não há entre nós nenhuma mentalidade regionalista.
MS | | A meu ver, pura coincidência. A ideia é justamente estreitar distâncias e abolir fronteiras.
AV | Por que especificamente a poesia e a poesia feita na América Hispânica?
DG | Acho que fomos na direção da poesia por uma questão natural, os envolvidos na rede somos poetas e leitores assíduos de poesia. Mas a Agulha não publica só poesia e nem a Sol Negro. O “Atlas Lírico”, sim. A diferença/novidade está na escolha de ser poesia hispano-americana. E isso já expus um pouco na resposta anterior. Acredito que já passamos muito tempo nessa ponte do Atlântico e precisamos virar o olhar para outros lugares/sensibilidades. Povoar nosso horizonte com experiências literárias que foram propositadamente distanciadas de nós, por um projeto político, cultural e – por que não? – editorial, de formação da própria Nação brasileira e que, nos tornaram o vizinho arrogante, aquele que deu as costas para os iguais e cresceu olhando para longe. Isso gerou a formação de um povo que olha para longe e não enxerga o que está perto. Este é um tema que exige permanente retorno à sua reflexão.
ERZ | Tanto a categoria da poesia como a América Hispânica no sentido mais amplo são interesses pessoais que tenho há muito tempo. Nos últimos anos tenho dedicado meus estudos à poesia de modo mais formal. Tanto no mestrado como agora na pesquisa de doutorado me dedico à poesia hispano-americana. Mas por que poesia? Para transfigurar a realidade através da linguagem, para melhorar e enriquecer a percepção emocional e estética, para levar a linguagem para além da linguagem condicionada da vida quotidiana. Destaco aqui o desejo do Surrealismo de emancipação do sujeito através da libertação da linguagem. Nesse sentido, a linguagem poética apresenta um aspecto único que a situa no universo da liberdade, um gesto de reescrever o mundo. De qualquer forma, a proposta aqui é não divagar sobre isso, até porque as paixões não são explicadas.
FM | Com admirável precisão e abrangência Elys como que responde por todos nós. A poesia é um veio cósmico que nos revela intimamente o que somos e nos conduz a um diálogo fecundo com a humanidade. Lembro aqui a longeva revista espanhola Hora de Poesía, surgida ao final dos anos 1970, que publicava poetas de todos os recantos do mundo. Eu tive a fortuna de acompanhá-la por quase 60 de seus 100 números publicados. Uma grande fonte de sabedoria poética, de uma riqueza em sua diversidade que torna hoje medíocre essa retórica midiática de uma pluralidade baseada mais na quantidade do que na qualidade. A tradição lírica hispano-americana é outro exemplo de uma riqueza estética raramente alcançada em outras regiões do planeta. Mesmo que compartilhe o idioma, essa tradição se desdobra por 19 países, com suas singularidades históricas, de modo que amplia ainda mais a heterogeneidade de estilos e ousadias estéticas.
MS | A poesia sempre foi o foco da linha editorial da Sol Negro Edições, devido a uma paixão pessoal minha. À medida que fui conhecendo melhor a poesia hispano-americana, em parte a partir do convívio com Floriano Martins e a editorial da Agulha, foi natural querer traduzir e publicar uma poesia tão forte e diversa, e que infelizmente circula muito pouco no Brasil.
AV | Os quatro já estão planejando um próximo passo? A Rede convidará outras publicações? Vocês pretendem ampliar o universo editorial em relação à poesia hispano-americana? Enfim, quais são seus planos futuros?
DG | Inicialmente precisamos fortalecer a rede e aprimorar as conexões, mas tudo está em expansão. As atividades das três iniciativas (Agulha, Acrobata, Sol Negro) seguem em uma onda crescente e logo mais teremos mais publicações, mais pessoas colaborando dentro e fora do país e isso é incrível. Nesse momento, além de Floriano e Elys Regina Zils, temos a tradutora venezuelana Gladys Mendía colaborando no projeto do Atlas e pode ser que, logo mais, tenha mais gente. Estou animado e esperançoso em relação ao futuro.
ERZ | A Agulha tem dedicado cada vez mais suas páginas a levar aos nossos leitores conteúdos literários principalmente de expressão poética hispano-americana. Sol Negro tem diversas traduções em seu currículo e Acrobata continua com energia e vigor, adicionando combustível à fornalha, ainda mais agora com a colaboração de Gladys. As cumplicidades são muitas e novos contatos e associações estão em constante crescimento. Estamos a todo vapor.
FM | Na verdade, não paramos nunca de projetar e realizar coisas. O esforço maior, ao menos neste primeiro momento de criação da rede, é nos ocuparmos de sua difusão, para que todos saibam de sua existência, que percebam que esta é uma experiência que pode ser imitada por todos. Criar novos mundos, novas perspectivas de vida, com base na alteridade.
MS | Em termos de Rede ainda estamos iniciando e conversando, se concentrando em tentar apresentar aos meios de circulação de cada um o trabalho do outro, neste primeiro momento. Ao mesmo tempo, vamos tocando nossos próprios projetos. Pela Sol Negro estamos trabalhando numa série de livros de poesia hispano-americana traduzidos pela Elys, prefaciados por Floriano e editados por mim, em que certamente teremos um espaço de divulgação na Acrobata. Para este projeto já temos confirmado livros de Eunice Odio, Marosa di Giorgio e Enrique Gomez-Correa e é um trabalho de deve entrar pelo próximo ano.
Setembro de 2023