Contra todas as censuras, velhas e novas

Por PEDRO CORREIA


Livros suprimidos, filmes mutilados,
palavras interditadas


Reproduzo aqui o essencial da minha intervenção na sessão de lançamento de TUDO É TABU, a 2 de Julho, na Livraria Almedina (Atrium Saldanha, Lisboa). Pedro Correia


1

A ideia de escrever TUDO É TABU foi germinando a partir dos múltiplos casos de “cancelamento cultural” ocorridos no início desta década. Acentuaram-se nos meses iniciais de 2023, com notícias quase simultâneas de purgas a livros de Ian Fleming, Agatha Christie e Enid Blyton. Trechos inteiros das obras destes autores foram alvo da tesoura censória, por vezes de forma absurda. Os «adoráveis dentes brancos», num romance de Agatha Christie, tornaram-se «bonitos dentes». Um «rosto moreno», num dos livros dos Cinco, passou a «rosto bronzeado». O 007 deixou de visitar um clube de strip tease, o que poderia perturbar as almas mais sensíveis. Pouco faltará para vermos este célebre espião, mulherengo e copofónico, trocar o bife em sangue e o dry martini por um prato de tofu com água das Pedras.

Investiguei casos similares. Aprofundei o que havia. Fui indagando outros temas, noutras latitudes. Confirmei informações, seleccionei o que estava comprovado, pondo em prática a minha experiência de quatro décadas no jornalismo.

Pensei inicialmente reunir algumas dezenas de exemplos de novas censuras. Afinal foram mais de cem. Tenho uma pasta com muitos casos que sobraram: optei pelo número redondo, tão emblemático.

Múmia tornou-se palavra proibida no Museu Britânico: agora só há «pessoas mumificadas».

Proliferam apelos públicos ao «cancelamento de Gauguin», exigindo até a remoção de quadros nos museus franceses, porque o pintor terá praticado indecorosos actos sexuais quando vivia no Taiti, na década final do século XIX.

Lincoln é suspeito de racismo, daí o seu nome ter sido banido pela direcção de uma escola no distrito de São Francisco, na Califórnia.

Num agrupamento escolar do Canadá dezenas de livros considerados «imorais» foram reduzidos a cinzas: o auto-de-fé, testemunhado por alunos e familiares, ficou registado em vídeo para putativos efeitos pedagógicos. Entre as obras incineradas incluíam-se álbuns de banda desenhada, como Astérix Conquista a América.

2

Vivemos num eterno presente: o passado começa no dia de anteontem, tudo quanto ficou para trás é um poço obscuro de trevas, dominado por práticas esclavagistas ao serviço do heteropatriarcado tóxico, de inevitável raça branca. Todo esse período deve ser revisto à luz da ideologia dominante nos nossos dias e convenientemente higienizado. Para «proteger o público», que deve ser mantido puro e casto.

Surgem «gabinetes de sensibilidade» nas mais poderosas editoras do mundo ocidental. Com a missão exclusiva de expurgar livros inteiros ou segmentos de obras literárias de conteúdo pernicioso. Podem ser clássicos da ficção, como os romances de Mark Twain: todos são submetidos à guilhotina.

O mesmo se passa nos estúdios de Hollywood e nas grandes plataformas norte-americanas de produção de séries televisivas. Cada vez mais produzidas segundo os mesmos cânones e os mesmos moldes, sob o olhar vigilante de poderosas «assessorias» atentas ao menor indício de racismo, misoginia, homofobia. Qualquer pretexto serve para a mutilação. Voltamos ao tempo das «cenas eventualmente chocantes». Com a diferença de que estas eram exibidas, embora com bolinha vermelha no canto superior do ecrã. Hoje não chegam a ver a luz do dia.

A higienização em curso não se limita aos títulos contemporâneos: ambiciona reconfigurar todo o passado. No limite, será reescrito até o Mein Kampf: o déspota que vomitava ódio anti-semita irá transfigurar-se em Miss Universo, divagando sobre a beleza das flores, o canto dos passarinhos e a venturosa paz universal.

3

Estou convicto de que havia muito mais liberdade entre 1970 e o ano 2000 do que existe nos nossos dias. Filmes que foram enormes sucessos de bilheteira na década de 80, como Atracção FatalNoites EscaldantesNove Semanas e Meia e O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes nem chegariam hoje a estrear-se. Entre acusações de sexismo, patriarcado mórbido e sei lá que mais. A antiquada censura e as novíssimas censuras abraçam-se em nome da virtuosa abstinência sexual.

«É proibido proibir», revolucionário lema dos estudantes parisienses em 1968, foi lançado ao caixote do lixo da História. Hoje não seriam possíveis séries satíricas produzidas nos anos 70 e 80 pela BBC, como Monty Python Yes, Minister. Hoje a carreira humorística de um Herman José seria muito abreviada, sujeita a um extenso cardápio de interdições. O próprio Gato Fedorento, bastante mais recente, ficaria sujeito ao crivo censório, amplificado pela berraria das redes sociais que insiste em sustentar: «A minha liberdade termina onde começa a tua.» Como se ambas fossem incompatíveis.

Confirma-se: Maio de 68 ficou muito lá para trás.

 4

Beckett é hoje cancelado nas universidades. Motivo: o seu À Espera de Godot só tem personagens do sexo masculino.

Brecht, fugido dos nazis e exilado na América, é alvo de censura na antiga pátria que lhe concedeu asilo. Motivo: a sua peça A Boa Alma de Sichuan, desenrolada na China, revela «insensibilidade social» e pode provocar «desconforto» no auditório feminino.

French Connection [Os Incorruptíveis Contra a Droga] filme que em 1972 recebeu vários Óscares, é exibido com menos 9 segundos de duração: o facto de ser película premiada nem foi levado em consideração.

Qual a cena suprimida? Breve diálogo, à entrada de uma esquadra de Nova Iorque, entre dois agentes da autoridade – o “polícia bom”, interpretado por Roy Scheider, e o “polícia mau”, interpretado por Gene Hackman. Diz este para o parceiro: «Never trust a nigger» [«Nunca confies num preto»]

Há meio século, era assim que dois polícias brancos falavam em Nova Iorque. Hoje continuam a falar assim. Linguagem realista, reflexo do mundo autêntico. Mas imprópria para as patrulhas da correcção política: a tesoura entrou em cena. Nigger é vocábulo que ninguém ousa pronunciar, há que suprimir o seu rasto até aos confins dos tempos, para a frente e para trás.

Neste caso – louve-se a honestidade intelectual – originou um brado de revolta, em forma de editorial, na revista The Atlantic«Não censurem o racismo do passado.»

Porque a palavra é mesmo essa: censura.

5

Não há censuras perniciosas e censuras virtuosas: todas são más.

Esta pesquisa de longos meses levou-me a concluir que estamos cada vez mais ameaçados: a liberdade de expressão prossegue em regressão acelerada. Perante o silêncio cúmplice de muitos de nós.

Remo na direcção oposta. Sou fiel ao lema angular do liberalismo clássico: «Tudo quanto não é expressamente proibido, é permitido.» Infelizmente, este saudável princípio anda a ser reconvertido no seu oposto: agora, tudo quanto não é expressamente autorizado torna-se interdito.

O problema maior é que isto não ocorre apenas em ditaduras. Acontece nas sociedades democráticas, como a nossa. Os exemplos são tantos que reuni já material para um livro equivalente a este. Péssimo indício.

Devemos rebelar-nos contra as mordaças que nos pretendem impor. Combater todas as censuras, velhas e novas, é um imperativo moral.

E é também um inadiável exercício de cidadania. Foi o que tentei fazer com este livro. É o que tenciono continuar a pôr em prática. Não me resigno, não me conformo.


Do Blog “Delito de Opinião”