SIMONE MARQUES
O Trigal
Compreender, amar, no meu amor jamais
coubera uma retirada, ainda que
em nome de alguma consciência.
Sergio Faraco, “Sesmarias do Urutau Mugidor”
Ela fazia o tipo garota comum, não fosse o olhar risonho e o corpo de formas generosas sempre a balançar devido às risadas. Era uma mulher divertida, mas simples como nenhuma poderia ser. Conversamos algumas vezes no bar, mas nunca estive sóbrio o suficiente para entendê-la. Além disso, ou talvez exatamente por eu estar sempre grogue, sua dicção me dava a impressão de ser péssima, ela parecia falar mastigando a língua. Para não magoá-la eu fingia entender o que ela dizia. Havia também muito barulho em volta de nós, pessoas a grunhir, gargalhadas, gritos, garçons berrando um pedido, homens sendo espancados, socos, choro de crianças, buzinas, derrapagens e batidas de carros; sangue, suor, sêmen, cuspe, alimentos espezinhados, cervejas derramadas, gente pedindo comida, drogas, dinheiro; guitarras distorcidas, teclados azucrinantes a zumbir intermitentes: o inferno.
Ela parecia uma garota facilmente domesticável. Justamente como você acabou de pensar, ela parecia um cão, um brocoió, o rabinho sempre a abanar. Toda graúda, tinha um par de coxões suntuosos à moda das garotas fortes do campo. Não creio que um machado fosse lhe quebrar uma unha.
Então, depois de vários encontros que aqui vou deixar ao tempo, a minha hora chegou.
Não foi nada fácil erradicar daquele corpanzil toda a roupa que usava. Era inverno, e enfrentei ao todo sete camisetas, quatro blusões e um casaco de couro. Achei que estava delirante, como podia alguém usar tanta roupa? É o frio, ela dizia. Mas, em compensação, apenas uma calça jeans e uma calcinha. Daí foi fácil. Foi uma delícia.
Mas ela ainda guardava uma surpresa. Era uma mulher rústica, simples, sem os vícios da civilização. Fui tragado por toda a humanidade num grito rouco que vinha de dentro da sua floresta capilar.
Ela possuía uma juba no ventre. Debaixo de cada um dos braços, outra macega de pêlos. E em toda a extensão daquelas melenas me perdi, me enrosquei, por todo lado havia medusas de fino fio cor de trigo; um narcotizante cheiro animal exalava da pele que acolhia aquela cultura opiácea. Onde ela me levou não há dores, nem fuzis, crianças chorando, garçons ou guitarras distorcidas. Só havia um horizonte onde o azul se unia com o campo amarelo, nada além do silêncio do vento, o roçar interminável de uma cachopa na outra.
Depois... depois nada. O tempo parou, sobrou apenas aquele trigal que me abrigava, que emitia o som de um vento distante; impregnava minhas narinas, como se trazido por uma brisa, o cheiro dos confins da Terra, território perdido entre os campos da Mongólia e os paraísos contidos no fumo de ervas especiais.
Embriagado por todos os sentidos, me neguei a voltar para o mundo, me encasulei com esta mulher dentro do meu quarto por dias, talvez anos tenham se passado. Resumimos nossa existência entre a cama e a mesa, sexo e vinho tinto, um pouco de música e sono para recobrar a força e novamente partir para dentro do outro; cada vez novas descobertas, vias e territórios inexplorados atraem-nos como ímãs. Agora é tarde demais para retornar, perdemos o caminho de volta, o tempo evaporou-se, gastamos o dinheiro e esgotamos a saliva, pelas orelhas escorreu todo o cérebro, engordamos, e como se não bastasse perdi todo o interesse pelo futebol.
[080100]
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PORTUGAL
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