SIMONE MARQUES. CONTOS

 

.O tesão do til

.

Em resumo, esta é uma das teorias que se bifurcam por aí. O til é um galho minúsculo que balança uma folha de cada lado, já disse um poeta crustáceo, digo, cretáceo, antigo. Esse negócio de folha é da época e que ainda havia mulheres virgens. Afirmo, ou reafirmo, que o til é uma concupiscência, uma esbórnia entre o palato, as cordas vocais e o nariz. Tal proeza só é conseguida pelos povos que falam Português, principalmente os brasileiros (aqui não vem ao caso o ingênuo til espanhol, que paira sobre o n). Seja pelo fato de que brasileiro vive com tesão (clima tropical, mulheres com pouca roupa, etc.) ou deve ter nisso alguma herança do tupi-guarani, Ponta Porã, paulinho panhacã essas coisas (o que acaba dando na mesma, já que e o Paulinho Panhacã fez papel de devasso, índio também fala tupi-guarani e vive com pouca roupa).

Os suecos, por exemplo (1), não conseguem dizer o til (clima frio, mulheres com muita roupa, etc.), e quiçá nem imaginam para que serve um cedilha. Os americanos então nem se fala, para eles o cedilha é um aborto léxico e o til – que torna qualquer palavra deliciosa – vira um acento agudo, pois eles têm a língua mole, e as palavras como maçã , por exemplo (2), viram massá , com a maior naturalidade. Eles não fazem nenhum esforço. Quer dizer, façamos justiça, o embaixador dos Estados Unidos, outro dia, disse não , e não náo , mas se via o percalço, as dolorosas ondulações que a língua fazia lá dentro dele, tanto que seu nariz se encheu de rugas e eu quase poderia jurar que vi lágrimas em seus olhos. (Não é implicância, mas os suecos também não conseguem dizer unha . Se você duvida, mande um sueco dizer unha . Acredite, não é engraçado, sueco quase põe um ovo, mas a unha não sai de jeito nenhum. Eu sei que não é em qualquer esquina que se encontra um sueco, mas quando conhecer um, aproveite e faça o teste. É uma experiência incrível. Eu só conheço suecos e americanos, mas também pode ser interessante fazer essa experiência com russos (ou eslavos em geral) e japoneses (ou chineses) por exemplo (3). Gregos, nem imagino, acho que eles nem têm língua na boca, essa gente deve ter deve um elástico lá dentro que auxilia a pronunciar as palavras. Não é à toa que se diz falou grego , uma metáfora para “entendi bulhufas”. Em compensação, eu não digo nem água e sueco, contudo, isso não vem ao caso.) Mas chega de exemplos, chega de parênteses. Palavras, palavras, palavras, desesperava-se Hamlet (meu último parêntese: tenho certeza de que Shakespeare emitia um suspiro a cada vírgula, para dar a perfeita entonação da agonia e do prazer sentidos pelo escriba).

Era exatamente sobre a relação sexual do escriba com as palavras que eu e o Borges conversávamos certa vez, lá em casa. Ele estava mui feio, com aquele clássico olho meio fechado, o velho problema que ele tinha com suas persianas, ou pestanas. Era noite morta, bebíamos a última garrafa de vinho de uma série de seis e nesse ponto até eu já não enxergava direito.

– Por que você acha que as palavras devem ser domadas, sodomizadas, paridas e adoradas? – ele me perguntou, tragando uma palomita.

– Só assim se pode inventar novos sentidos para elas – falei. – Ora, Borgito, sempre pensei que tu também fazias algo assim! me parece que esculpias o texto!

Me dei ao luxo de declinar o verbo na segunda pessoa no pretérito, afinal, o Borges é dos pampas, e para ele, como aos gaúchos, isso soa quase natural.

– Nada disso, garota.

Esperei a explicação. Tempo, silêncio, goles e tragadas. Quando achei que o Borges havia se esquecido do assunto, coisa muito comum na sua idade, ele prosseguiu sem pressa:

– Sempre tive tendência para engordar, sabe?

Me surpreendi com a mudança brusca de assunto. Ele parecia estar mesmo gagá. Puxou mais uma tragada, olhou ao longe, ou talvez para dentro de algum labirinto:

– Vou te contar um segredo. Agora que sou famoso não tem mais importância mesmo.

– Que é, Borgito? – fingi naturalidade, mas segurei a respiração, afinal, era o Borges me contando algo íntimo, e servi mais um gole para nós. Ele revelou:

– Eu fazia com as palavras o que gostaria de fazer com a comida. Nunca tive tendência para ser bêbado, fumava com certa moderação, a mesma coisa com as mulheres, mas a comida, ai ai, e especialmente os doces. Ah, então descobri as palavras... não sabes o tesão que me dava visualizar algumas, isso na minha mocidade, quando eu tinha olho bom, porque depois eu só conseguia imaginar a forma delas, como se fossem mulheres nuas. Não sei se me entendes – corrigiu o Borgito, tateando a sua taça –, mulher pelada nunca me chamou tanto a atenção como uma palavra despida pelos olhos, acariciada pela língua e transformada em corpo no papel. Ah, o doce tom do cedilha derretendo sob a minha língua...

– E tu eras diabético?

– Nada disso. Apenas guloso, como o Hitchcock. Então, eu me afundei no vício, comia palavras às toneladas.

– Mas o cedilha é coisa do Português, na tua língua não tem, como isso te ocorria?

– Explorei vários idiomas, inclusive o Português, embora escrevesse em espanhol. E ao me deparar com uma palavra, especialmente algumas de língua estrangeira, lambia, metia sua silhueta mentalmente em mim, e depois a comia. Acabava empanturrado, e com isso, regurgitava o que tu conheces, aqueles contos.

– Hm. Algo sexual, talvez?

– Não sei, não sei. Mas admito que era orgástico – Borges falou, acrescentando, com um dedo fálico em riste, cortando o ar delicadamente: – E não engordava!

Desse papo com o Borges surgiu a teoria concupiscente do til. Na ocasião foi somente uma idéia pervertida. Mas hoje, depois de tantos anos, faço minhas as surubas verbais do falecido mestre e reconheço: o til, essa cobrinha safada, me excita.

(2000)(2003)

.
.