SIMONE MARQUES Um ato bobo pode estragar toda uma vida. No meu caso a tragédia teve dois atos, uma briga conjugal trouxa e uma faxina doméstica. Prefiro começar pelo segundo ato. Após anos de desleixo e certo apego com os fungos, retirei todas as teias de aranha dos cantos, varri, lavei, deixei tudo uma beleza. Então, simplesmente apaguei. Sucumbi logo depois de terminar de limpar o banheiro. Tenho rinite das mais violentas, espirrei feito um porco, contei mais de trezentos espirros um atrás do outro, os pulmões pareciam debater-se dentro do meu peito feito asas, queriam escapulir do corpo e voar janelas afora. Então, senti como que uma pontada ou picada , não no peito, mas na cabeça. Caí. Na queda bati com a cabeça e entrei em coma, no estágio três. (Para se ter uma idéia da gravidade da coisa, o quarto estágio do coma é irreversível a pessoa fica bilu para toda a vida. Passei perto.) Devo ter ficado estatelado sobre o piso do banheiro por dias. A princípio os médicos acharam que tentei suicídio, devido à baba branca e já seca que encontraram aninhada nos cantos da minha boca. Após me examinarem, porém, droga alguma acharam no sangue, e fui para uma Unidade de Terapia Intensiva, da qual saí somente hoje. Acham que em uma semana posso receber alta. Ganhei de minha mãe um livro de presente, para passar o tempo. Ao abrir o pacote, quase desmaiei de susto: na capa sintética havia uma enorme aranha, desenhada em alto relevo com tanto requinte que parecia natural; o rosto de um homem com uma teia de rugas me fitava em segundo plano. Sempre gostei de aranha, bicho pernalta de movimentos leves, discretos e precisos, nunca me incomodou cultivar várias em casa. As aranhas ficavam lá, na sua, e eu levava minha vidinha normalmente no meu espaço. A gente se respeitava. Mas acho que o acidente no banheiro o desmaio ou seja lá o que tenha acontecido comigo causou algum estrago no imaginário e passei a associar o episódio à figura dos aracnídeos. O coma me trouxe conseqüências sociais e físicas que terei de recuperar. Estou desatualizado; vou sair do hospital deficiente de contato com o mundo, com as pessoas. A maioria dos meus amigos nem sei onde foram parar. Meu corpo ficou flácido. Minha mãe vai morar comigo, quer cozinhar, me cuidar e contratou uma mulher para limpar a casa. Me sinto um bebê. Ninguém sabe explicar direito o que aconteceu com minha cabeça após a faxina no apartamento. Talvez eu seja epilético, mas a saliva fossilizada que encontraram nos cantos da boca nada provou; outros exames foram feitos, tomografias, eletroencefalogramas, raios-X. A tia Berenice, irmã de minha mãe, foi a um babalorixá que falou, através do espírito de meu avô, que uma aranha havia me picado. Pode ser que estivesse correto, afinal, metáforas são um modo de explicar o inexplicável. Talvez, naquela tarde de faxina, eu tenha sofrido uma picada de aracnídeo, sim. Recordo que estava obcecado em destruir as teias e matar as aranhas, e que, justamente na hora do acidente, vamos chamá-lo assim, eu comparava a mulher que eu amava a uma aranha. Ela seria daquelas do tipo mortal. Há no Brasil espécies venenosas, que podem ser fatais ao homem. É o caso da aranha armadeira e da aranha marrom. Destas duas, só a marrom segrega de seu abdome a seda, que utiliza para confeccionar o casulo que envolve seus ovos, a teia para a captura de presas e o fio que sustenta seu corpo e a impede de cair. Julia era do tipo marrom. Tinha pernas longas, macias como o veludo; era esguia, com olhos discretamente puxados e uma boca faminta. Havia partido na noite anterior, alegando que não poderia prosseguir numa relação sem elã, que precisava sentir-se enleada como num casulo. Mas principalmente esse foi o ponto mais forte de sua argumentação, enquanto beliscava salgadinhos junto à cama, junto com uma taça de vinho , que não suportava mais estar com um homem que passava todo o dia e a noite inteira sem lhe dar atenção, sem largar aquele maldito 386 que eu havia comprado. Sim, eu havia comprado um computador modelo 386 há alguns meses, e estava repleto de trabalhos para entregar. Trabalhava com produção de textos para um jornal da cidade, e ganhava por lauda. A verdade é que uma máquina não enche tanto o saco como a tua mulher. Ao contrário de te exigir atenção, suga docemente teus olhos e cérebro. E ajuda a ganhar uma grana. Além do mais, diverte e instrui. Foi por isso que brigamos naquela noite, depois de dois anos de comunhão. Eu disse que minha vida estava uma bagunça e que precisava pagar o aluguel antes de pensar em brincar de casinha. Que ela era ótima, mas às vezes me torrava a paciência com questões existenciais de personagens da novela das oito. Julia chantageou: era preciso escolher entre ela ou “ele”, referindo-se ao computador. Eu disse que preferia o computador, nessas horas a gente diz que mata até a própria mãe. Julia chorou, arrumou suas coisas e partiu. Era uma megera, mas eu a amava. E no outro dia, para esquecer o cheiro dela, limpei a casa, tive um troço e desmaiei, entrei em coma, perdi seis anos de vida e cá estou, lúcido ou louco nem eu mais sei, se é que algum dia soube. O que me incomoda é que eu disse que trocaria ela pelo 386, sim, mas era mentira. Me incomoda mais é saber que eu ligaria para ela naquele dia do acidente, mesmo que fosse para ouvir um balaio de besteiras; que a sua esperança de ser procurada foi morrendo ao longo de cada dia durante seis anos; que talvez ela jamais saiba o por quê do abandono. Mas o que me incomoda de verdade é saber que Julia casou-se com um guitarrista de uma bandinha de rock. Ela está iludida, o cara deve passar horas no lambe e lustra e limpa e afina a guitarra. Pelo menos comigo só havia nós dois e o 386, discreto como um peixe de aquário. Com o roqueiro deve haver miríades de fãs com quem disputar atenção, além de agüentar o cara masturbar a guitarra, instrumento exibido, até aquilo gemer e gritar horas a fio diante de uma platéia voyeur. Julia, se você quisesse voltar eu adoraria. Troquei o 386 por outro com Internet e tudo, agora você também poderia se divertir com o computador. Julia... Chegou meu fisioterapeuta, hora de mexer o que sobrou dos meus músculos.
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