SIMONE MARQUES. CONTOS

 

Gugupãs

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– Por que gugupãs? – perguntou Béti.

– Por que Béti? – respondi perguntando a Béti.

– Como assim, por que Béti? – ela devolveu.

– Se gugupã é uma palavra, Béti é o que? – resolvi tentar explicar pela lógica.

– Béti é o meu nome – ela me respondeu, como se aquilo fosse a resposta.

– Errado: Béti é UM nome, como o meu é Fredegunda.

– Mas o teu nome não é Fredegunda.

– Suponhamos que fosse. Béti, não torne uma coisa tão banal num colóquio de lingüística, em que ninguém se entende, mas faz de conta que entende só para não parecer burro.

– Vamos começar de novo então.

– Tudo bem, vamos recomeçar, Béti.

– Por que gugupã?

– É uma palavra.

– Puta que pariu, eu sei disso, mas não dá pra dizer por que gugupã e não por exemplo bacia, almôndega, sambaqui, miojo, sei lá, qualquer coisa?

– Pode ser qualquer coisa, Béti.

– Ai, tá bom então, eu desisto. Desisto de você.

– Não, Béti, não desista, vamos recomeçar.

– Tá certo, mais uma vez então. Mas eu não vou perguntar de novo.

– O que?

– Como assim, o que?

– O que é que você não quer perguntar, Béti?

– Gugupã, Geraldine.

– Ah, sim, o gugupã. Mas quem é a Geraldine?

– Não sei, você deve saber. Se você souber o que é gugupã, saberá quem é Geraldine.

– Está enganada, Béti. Eu não sei.

– Não sabe o que é gugupã?

– Não. Na verdade, acho que ninguém sabe. É apenas uma palavra, já lhe disse.

– Sim, mas por que ESTA palavra?

– Porque começa com G. Como gato, garganta, gorgomilo.

– Gorgomilo? O que é isso?

– Não é nada.

– Desisto. Assim não tem jeito de conversar.

– O que foi isso agora Béti?

– Nada. Foi um gorgomilo.

– Espero que não tenha sido dos efervescentes, foi?

– Efervescente?

– Sim, como um Sonrisal, sabe?

– Não, acho que não foi desses. Foi daqueles fedidos, mesmo.

– Você está equivocada, Béti. Não existem gorgomilos fedidos. Você peidou, consigo saber até o que você comeu no almoço: brócolis cozido com alho e batata souté. Talvez uma sobremesa como por exemplo um pudim ou algo assim, elaborado à base de leite.

– Deixe meu peido em paz, Béti.

– Não se preocupe, seu peido foi em paz, provavelmente agora está a caminho do céu e em seguida estará sentado à direita de Deus-Pai Todo-Poderoso, se ele fez por merecer, claro. E não me chame de Béti, isso me confunde.

– O que são gorgomilos? pelo amor de deus, apenas explique, não me faça de boba, isso enche o saco.

– Tudo bem, vou tentar explicar. Gorgomilos são gargantas, em princípio.

– E no fim?

– No fim se usa a expressão “gorgomilos efervescentes” quando alguém está a falar papo-furado, verborragia sem significado, catilinária de diplomata, no fundo são apenas palavras que saem da garganta sem que tenham uma conotação sólida ou séria. Ou ainda aforismos macios e sem sentido como “se vaca não voa, logo, avião não dá leite”.

Finalmente Béti ficou muda. Mas isso só durou o tempo necessário para eu piscar os olhos.

– E o gugupã?

– Pois é, eu dizia a você quando me interrompeu com os seus gorgomilos.

– Meus não. Eles vieram de você, Fredegunda.

– Quem peidou foi você, sua fedegunda.

– Não enrola, e o gugupã?

– Os fonoaudiólogos têm uns exercícios para a língua muito interessantes, Béti.

– Não enrola. O que tem o gugupã a ver com isso?

– Tem a ver tanto quanto a aranha arranha a jarra e a jarra arranha a aranha. Ou então tanto quanto três tigres tristes comem trigo, ou ainda tanto quanto o peito do pé de pedro é preto.

– Hm.

– Ótimo, então diga “gulosos guris gulosavam gulodices e a gurizada guturalizava nos gugupãs”.

– E você acha que os gringos vão entender isso? Você acha que os gringos vão conseguir pronunciar isso?

– Dos gringos eu não sei. Não sei nem se os gringos vão ler isso, não sei nem se isso vai chegar aos gringos, e se chegar não sei se os gringos vão se dar ao trabalho de ler até aqui. Mas acho que, se tudo isso acontecer, o que convenhamos, Béti, é muito difícil, principalmente se você perceber que isso primeiro teria de sair escrito, depois teria de ser impresso e depois, publicado, com vários outros issos junto, com uma ficha técnica e páginas numeradas, um índice, sem falar numa capa decente e na arte da capa, numa revisão e, o mais importante, no trabalho de marketing em cima. Sem marketing, nada existe, por mais que seja. E você há de concordar que até se chegar a isso, os gringos morreram.

– Eles vão pronunciar gugupá. E vão achar isso muito idiota.

– Pode me justificar por que, Béti?

– Porque eles não sabem pronunciar o til.

– Não, Béti, eu pergunto por que os gringos vão achar isso muito idiota?

– Porque isso É idiota.

– Não se pode levar alguém a sério, Béti, se ela não embaseia suas afirmativas.

– Antes, você disse que o gugupã era por causa do G. Mas depois disse que era por causa da fonoaudióloga aquela.

– Que fonoaudióloga, Béti? Não tem fonoaudióloga nenhuma, você não entendeu, Béti! Gaveta, gaivota, graveto, goela, gula, gostoso: é tudo com G. O G é minha letra preferida porque parece que, mais que qualquer outra, é o produto do carinho e também uma arte, a arte da língua que amorosamente acaricia o céu-da-boca, e desse envolvimento literalmente carnal nasce um G. O G é a prova de que somos civilizados, nenhum gato pode miar gorjeando, aliás, nenhum outro animal pode, nem os pássaros podem dizer que gorjeiam, isso é uma mentira, porque eles só cantam, jamais poderão elaborar um G. O G é um gaguejo que deu certo, Geraldine.

– Você se esqueceu de novo, Valdirene?

– Não, foi só para ver se você estava atenta – eu disse, finalmente aborrecida de tanto gorgolejar palavras em vão.

– Eu acho que você está gagá.

– Tudo bem, Béti. E eu nem expliquei por que gugupã. Vamos começar tudo de novo.

[nov/2002]

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