RINALDO DE FERNANDES
ROBERTO VENTURA BIÓGRAFO DE EUCLIDES DA CUNHA
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O indivíduo interessado em conhecer mais detalhadamente a vida e a obra de Euclides da Cunha deve começar lendo o que Roberto Ventura, intelectual carioca, falecido em 2002, produziu. Nesse sentido, a atenção deve se voltar, sobretudo, para Euclides da Cunha: esboço biográfico (São Paulo: Cia. das Letras, 2003), o principal trabalho de Ventura sobre o autor de Os sertões .

No início do esboço biográfico somos informados de que o avô paterno de Euclides traficava escravos para abastecer "os sobrados e solares de Salvador e as casas-grandes e senzalas dos engenhos de açucar do Recôncavo Baiano". Interessado em mostrar o pano de fundo histórico para melhor esclarecer o percurso desse antecedente de seu personagem, o biógrafo diz - o dado terminará tendo relação com o nascimento de Euclides - que, por pressões da Inglaterra, o tráfico é interrompido de vez no Brasil em 1850. Uma década depois, o pai de Euclides, Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha, e num momento em que o trabalho escravo está sendo substituído pelo assalariado, "percorria as fazendas de Cantagalo, para fazer a contabilidade dos livros-caixa e das contas correntes". É nesse trecho que Manuel conhece e se casa com Eudóxia Alves Moreira, tendo com ela Euclides (1866) e Adélia (1867). A trajetória de Euclides órfão (a mãe, como ele, teve tuberculose), que vive na casa de parentes, é narrada com detalhes, sendo que o mais importante desse passo inicial são as primeiras letras, os vários colégios por onde passa o escritor. No Colégio Aquino, no Rio de Janeiro, onde estuda com Benjamin Constant, Euclides terá uma experiência importante, publicando seu primeiro artigo e passando a ler os românticos franceses Victor Hugo e Jules Michelet (ambos escreveram sobre a Revolução Francesa - Hugo, o romance Quatre-vingt-treize , publicado em 1874; e Michelet, a famosa Histoire de la Révolution Française , que saiu entre 1847-53). Após abordar poemas que integram Ondas (escritos por Euclides entre os 17 e os 18 anos e que enfocam personagens da Revolução Francesa), o biografo passa a interpretar os ideais românticos e revolucionários de Euclides, mostrando que eles não marcaram apenas seus dias de estudante no Colégio Aquino - "fizeram-se presentes em sua obra". O romantismo de Euclides, dizendo melhor, vai "muito além de seus escritos", uma vez que na vida ele adotou "atitudes extremadas e gestos arrebatados, com atos de heroísmo e abnegação, em que colocou a defesa de princípios éticos e de crenças políticas acima dos interesses pessoais".

Muito interessante o capítulo em que é abordada a permanência de Euclides, a partir de 1886, na Escola Militar da Praia Vermelha, no Rio. A escola, informa o biógrafo, "era um centro de irradiação de idéias positivistas, evolucionistas e republicanas". No caso, o positivismo de Augusto Comte e o evolucionismo de Herbert Spencer - "as duas concepções científicas e filosóficas a que Euclides aderiu como cadete e jovem oficial do Exército". A Revolução Francesa é que irá servir de inspiração para Euclides e os republicanos investirem contra a Monarquia, "acusada de arbítrio político, sobretudo em suas relações com o Exército". Não perdendo nunca de vista o contexto histórico, sobretudo o momento que antecede e que sucede a aprovação da Lei Aúrea, Roberto Ventura aborda neste ponto o descontentamento dos cadetes com relação a promoções e narra com detalhes o episódio em que Euclides, num ato de indisciplina, e já bastante impregnado de idéias republicanas, desacata Tomás Coelho, ministro da Guerra, atirando-lhe aos pés o sabre. Ventura repassa os jornais da época, mostrando a repercussão do episódio, até chegar à própria versão de Euclides, manifestada, cerca de 20 anos depois, em conversa com o político e diplomata Gastão da Cunha. O principal da versão de Euclides se resume nesta passagem: "O meu plano era revoltar toda a escola, prender até o ministro e bater em marcha para São Cristóvão, onde prenderíamos o imperador. Tinha a certeza absoluta, plena, de que a República estava feita. Era questão de dias...".

Outro momento interessante é aquele em que Ventura mostra o vínculo de Euclides com Julio Mesquita e A província de São Paulo (transformado depois em O Estado de S. Paulo ). Diz o biógrafo que "a colaboração de Euclides servia aos propósitos do jornal, que fazia propaganda pela República". Euclides colabora quase vinte anos com o jornal: "Foram ao todo 114 artigos e ensaios, catorze na Província e cem no Estado , além de 57 telegramas sobre o conflito de Canudos e um poema". Publica seu primeiro artigo, em 22 de dezembro de 1888, assinando "E.C.". Em textos posteriores, põe o pseudônimo "Proudhon" (a quem o autor de Contrastes e confrontos admirava). Pelo que mostra o biógrafo, o que há de mais importante nos artigos que Euclides escreve antes da proclamação da República, em 1889, é mesmo "sua versão do ideal republicano". Os republicanos do período compunham duas vertentes: os "evolucionistas", que acreditavam na "transição pacífica para a nova forma de governo", e os "revolucionários", que queriam romper com a Monarquia através de um movimento armado, guiado pelo povo ou pelo Exército. Conclui o biógrafo que Euclides era a um só tempo "evolucionista e revolucionário".

No capítulo intitulado "Ruína dos ideais", Roberto Ventura aborda, entre outros assuntos, o encilhamento, as perseguições políticas do início da República e a Revolta da Armada, confronto entre a Marinha e o Exército ocorrido entre setembro de 1893 e março de 1894, do qual Euclides participa. Sendo um trabalho inacabado, faltando "o desenvolvimento das principais interpretações que Roberto fizera sobre a vida e a obra de Euclides", conforme anuncia em seu texto de apresentação Mario Cesar Carvalho, um dos organizadores do volume, o certo é que a "mera exposição de fatos e dados" - Ventura manifestou esta preocupação com relação ao gênero biográfico - não apaga o brilho desse texto claro, fluido, sem qualquer sestro acadêmico. Talvez a mais importante interpretação que Ventura se propunha a desenvolver se fizesse presente a partir dos capítulos centrais, notadamente no 5 ("O arraial maldito"), que narra a ida de Euclides a Canudos como correspondente de O Estado de S. Paulo , avaliando ainda o silêncio do escritor com as atrocidades da guerra, e no 6 ("Os sertões revisitados"), que mostra as relações de Euclides com a comunidade científica (Orville A. Derby, Teodoro Sampaio), detendo-se um pouco mais em Os sertões , no Conselheiro e na revisão crítica da República que Euclides empreende em seu "livro vingador". Neste ponto provavelmente o biógrafo faria uma avaliação mais funda das afinidades entre a vida de Euclides e a do Conselheiro, algo de que ele já vinha tratando em textos e revelando a amigos ou em entrevistas. Quanto a isso, dois aspectos importantes, anunciados por Ventura em entrevista a O Estado de S. Paulo meses antes de morrer - em agosto de 2002, em acidente de carro ao retornar da Semana Euclidiana, realizada anualmente em São José do Rio Pardo, no interior de São Paulo -, orientariam essa passagem da biografia, ou esboço biográfico, de Euclides. No primeiro, o biógrafo buscaria as afinidades existentes entre a trajetória do Conselheiro e a vida pessoal de Euclides; no segundo, e fugindo da biografia puramente "factual", vincularia à história da vida a avaliação da obra. As afinidades entre o personagem principal de Os sertões e o autor da obra, conforme apontou Ventura na entrevista ( O Estado de S. Paulo - 24/02/2002), seriam as seguintes:

a) o Conselheiro terá seu caráter formado a partir de violências envolvendo sua família no Ceará; Euclides troca tiros com Dilermando de Assis em ato que resultou na morte do escritor;

b) Conselheiro foi um construtor de cemitérios e igrejas; Euclides reformou pontes;

c) Conselheiro foi traído pela mulher no Ceará; Euclides, ao retornar em 1906 da Amazônia, encontra Ana, sua mulher, grávida de Dilermando de Assis (com quem, aliás, ela se casa após a morte de escritor);

d) Conselheiro e Euclides eram órfãos;

e) um e outro tinham muita fé: o primeiro se guiava pela religião; o segundo, pela ciência.

Ventura neste passo se apoiaria - e registrou isto numa nota - em Plutarco ou no "princípio das vidas paralelas" e ao conjunto integraria uma interpretação do Conselheiro como personagem inventado por Euclides, "que aponta em sua vida os componentes trágicos e arcaicos que acabaram se projetando sobre sua [própria] vida".

Já para a parte final da biografia, Ventura discorre sobre as primeiras edições e a repercussão de Os sertões , abordando ainda Um paraíso perdido , o "segundo livro vingador" que Euclides pretendia escrever, agora sobre a Amazônia. Neste livro Euclides "queria integrar, como em Os sertões , uma ampla interpretação histórico-cultural ao tom elevado do clamor por justiça social". Ventura mostra que a natureza amazônica é, do ponto de vista de Euclides, "um livro aberto" e a passagem do homem por ela, sendo efêmera, é também traumática: "São [os homens] 'construtores de ruínas', entregues ao extrativismo econômico e à devastação ambiental". A Amazônia, o sertão e o sertanejo esquecido são, na apreciação do biógrafo, interpretados por um narrador-viajante que os "insere na história" (Ventura já observara em outro passo que, para Euclides, o sertão é "aquilo que está fora da escrita da história"). O narrador euclidiano, assim, tanto nos textos sobre a Amazônia como em Os sertões , "dialoga com a tradição dos relatos de viagem, com suas descrições botânicas e observações climáticas". No capítulo final, Ventura - sempre muito meticuloso e amparado em rica documentação - narra, com alguns de seus desdobramentos, a "tragédia da Piedade", a ida de Euclides de Copacabana ao subúrbio da Piedade, na manhã de 15 de agosto de 1909, para morrer em tiroteio com os irmãos Dinorá e Dilermando de Assis.

O livro de Ventura traz também uma detalhada cronologia e uma excelente bibliografia. Louve-se o trabalho dos organizadores Mario Cesar Carvalho e José Carlos Barreto de Santana - foram muito competentes na tarefa de recolher, auxiliados por Marcia Zoladz, o material deixado por Roberto Ventura em arquivos de computador, enfeixando-o num volume em que o essencial da obra (excluindo-se a anunciada abordagem das afinidades entre a vida de Euclides e a do Conselheiro e a interpretação mais rigorosa deste último como personagem elaborado pelo escritor) não nos parece tão comprometido, mesmo ocorrendo aqui e ali os cortes decorrentes de eventuais excertos ou alterações que o biógrafo faria. A redundância de certas frases ou fragmentos também não compromete o texto - o leitor entende...

Em síntese, Roberto Ventura, embora ficando incompleta a narrativa de vida do autor de Os sertões , deixou um trabalho importantíssimo, hoje indispensável para os estudos euclidianos. A incompletude de sua obra, repita-se, é notada especialmente na esperada abordagem das ligações entre a vida de Euclides e a do Conselheiro. Aquilo que era o desejo maior do biógrafo (fazer uma biografia mais interpretativa, em que, portanto, seria evitada "a mera exposição de fatos e dados") fica, certamente, prejudicado neste ponto. E fica a lacuna de uma grande contribuição (e também grande desafio), que seria nos convencer de que o Conselheiro foi, antes de tudo, um personagem criado por Euclides.

 

* Rinaldo de Fernandes - escritor e Doutor em Letras. Professor da Universidade Federal da Paraíba. Organizador do livro O Clarim e a Oração: cem anos de 'Os Sertões'" (São Paulo: Geração Editorial, 2002). Como pesquisador, fez os textos da antologia Os cem melhores poetas brasileiros do século , organizada por José Nêumanne Pinto (Geração Editorial, 2001). Uma primeira versão do presente texto foi publicada no Jornal do Brasil (caderno "Idéias").