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RINALDO DE FERNANDES
Quatro contos menores

O SUICIDA

 

Bar dos Ventos. O desespero solta relâmpagos. As telhas ali se assustam, os fios dos postes se comem - e nas águas, adiante, um barco é xícara se afogando. Bebo este vinho vendo um muro branco na rua. Existem capins entre os dedos da calçada? Ou serão os cabelos das minhocas?

Bar dos Ventos. O desespero mede a dose. De repente, puxas a arma, espocas o crânio de macarrão. As mariposas trombam na tarde. A chuva faz pétalas na areia da rua - as pétalas de poeira pro teu caixão. Como os relâmpagos não te acendem o coração, garçons interrogam a tua lama...

CONTO RUANDÊS

 

Há um grupo de negros dentro do rio.

Eles pescam no rio.

Bebem água do rio.

Banham-se no rio.

Ensaboam o rio.

Há panos velhos estendidos no capim à margem do rio.

Há crianças secas, nas pedras, já cheias do rio.

O amor é uma estrada.

E os pés descalços ganham a poeira do dia.

Porém, na curva adiante, há um olhar desconfiado para trás.

Ficou uma velha boiando nas águas paradas do rio?

AS PEGADAS

 
Aconteceu comigo numa noite de sábado. Eu me calcei, saí para a praia. Fui ver se encontrava as pegadas de umas botas que estavam aparecendo nas dunas do leste, o pessoal comentando no rádio. No caminho, encontrei uns meninos que vinham da favela, que haviam atravessado as dunas e que me falaram que não tinham visto pegadas de bota coisa nenhuma. Os meninos foram andando e me observando, ali naquela pista estreita, mal iluminada.

Segui pela pista. Adiante, percebi que os meninos haviam parado, conversavam. Parecia que eles combinavam algum plano. De repente, eles começaram a me seguir. Passei a andar depressa. Depois corri, corri muito. E eles atrás de mim, as pernas rápidas.

Eu subi as dunas dando voltas, resfolegante, a areia a espirrar dos pés. Chegando no alto, olhei para baixo. Não vi mais os meninos. Grande alívio, eles tinham desistido de me alcançar! Fiquei ali sozinho no escuro. A lua foi saindo, botando um branco nas areias extensas, nos galhos secos e cinzentos dos mangues adiante. Foi aí que, já mais tranqüilo, eu percebi. Percebi que as pegadas das botas eram as minhas.

O MISTÉRIO DAS JOVENS QUE SE AMAVAM

 

Naquele ano, em Fortaleza, duas jovens resolveram morar na praia. Deixaram a faculdade e partiram para construir uma cabana numa duna coberta com alguns arbustos. Resolveram que iam viver do mínimo e que ali iriam esquecer as solidões de dois quartos empoeirados. As duas se pegavam e faziam muito amor debaixo das tábuas sujas da cabana. Tinham ali um mar largo e verde nas manhãs claras. Tinham as jangadas e os navios que partiam ao crepúsculo do Mucuripe. Ali era um planalto onde cabiam as duas.

Numa noite de lua, as jovens ouviam o barulho dormente das ondas. A lua entrava pelos buracos do teto e formava pequenas luas nos corpos nus das duas, deitadas ali na esteira. Elas ali, nas noites de lua, pareciam duas onças pintadas dentro de uma toca. Mas aconteceu que, em certo momento, quando algumas nuvens escureceram o tempo, as duas jovens distinguiram uns passos em meio aos sons do vento. Até aquela noite ninguém fora ali visitá-las. Elas ouviam os passos que vinham levantando areia. Passos lentos, bruscos. Então ficaram apavoradas. E se abraçaram forte, tremendo. Quem poderia ser? Lembraram-se da favela ali não muito distante. E os passos se aproximando, mais e mais. Uma das jovens aí resolveu gritar:

•  Quem está aí fora?!

A sombra não respondeu.

•  Por favor, quem está aí?!

A sombra pigarreou. E depois voltou a caminhar. Caminhou, se distanciou - e seus passos se perderam na noite. Na manhã seguinte, as duas jovens foram olhar as marcas daqueles passos. Elas estavam ali na areia, nítidas - e eram marcas de grandes botas. As duas então resolveram deixar a cabana. Resolveram voltar para a faculdade, onde contaram a experiência da praia para algumas colegas.

Passaram a se amar nos banheiros, enquanto não alugavam um quarto. Curtiam rock e reggae. Legião. Titãs. Liam Roberto Freire. Se abraçavam na meia-luz das paradas de ônibus. Se curtiam muito. E batalhavam. Até que conseguiram uma quitinete.

Uma manhã, as duas foram encontradas mortas e abraçadas. As duas ali estendidas, brancas e frias. Descobriu-se depois que não tinha sido suicídio - e que não havia sinais claros de um crime. Na quitinete, o que chamou a atenção do delegado responsável pelo caso foi o par de botas no canto. Botas grandes, que não cabiam nos pés de nenhuma das duas. Essas botas, confessou uma amiga das jovens que sempre ia visitá-las e que na noite anterior à morte delas estivera ali na quitinete, nunca tinham sido vistas ali. A irmã de uma das jovens disse também que não sabia dessas botas. Eram botas um pouco sujas, maltratadas. E nelas não havia areia grudada.

 
Rinaldo de Fernandes Escritor. Autor de O Caçador (contos, 1997). Organizador do livro Chico Buarque do Brasil (2004).
E-mail: rinaldofernandes@uol.com.br