RINALDO DE FERNANDES - DUAS MARGENS

1.

Não sei o que ocorre comigo, mas a verdade é que aciono a seta indicando que vou entrar à direita e deixo o carro seguir devagar pela pista vazia, sem casas, restaurantes, muros, eu indo e escutando o som baixo do rádio, eu andando ainda mais lenta e cruzando a estrada de ferro onde à margem direita estende-se o areal, o branco areal que segue até os cajueiros, um tanto distantes, com suas folhas secas girando ao vento no espaço entre os postes altos da outra pista, uma delas presa ao fio da corrente elétrica. O céu está amarelado, o sol já vai descendo sobre os matos ao fundo da pista e também sobre o teto de um armazém abandonado, e eu aqui, eu não devo, algo me conduzindo para a beira do rio onde alguns turistas vêm ver o pôr-do-sol, uma Van afinal aparecendo na curva e me ultrapassando, eu agora indo muito lenta e olhando o areal e os cajueiros e desconfiando que tudo é muito perigoso, essa cidade está cheia de canalhas, de estupradores. E não dou por mim quando chego ao mais pobre dos bares, de tábuas fendidas, o garçom cochilando numa cadeira à entrada, o bar de onde vejo sozinha, diante de um copo de cerveja (mas por que faço isso, se não posso beber?), o poente tomando toda a outra margem do rio, encardindo as águas e as lanchas com suas cordas presas às estacas fincadas na lama. E é desta mesa do canto, ao lado da grade rompida, escura, sem enxergar muito, encandeada pelo sol, é daqui, mandando nomes, maldizendo tudo o que o peste do Marcos fez com a minha vida, é daqui, apertando nos olhos o lenço de papel, bebendo a cerveja e mordendo sem sabor um fiapo de batata frita (mas por que estou comendo essa porcaria?), que vejo no meio da escada de madeira (um pequeno quarto ali no primeiro andar?), os olhos parados nas águas do rio, a mulher com um menino no colo. Olho em volta e noto que o garçom voltou para a sua cadeira à porta do bar, seu sono agora dando cabeçadas, vejo o balcão vazio, as poucas garrafas nas prateleiras, a réstia vermelha de sol caindo no tampo da mesa perto da caixa-d’água emborcada e ferindo meus olhos. O cachorro vira o rabo para o crepúsculo, vai dobrar o corpo embaixo da cadeira do garçom e fica dando patadas contra os mosquitos. O garçom vez por outra passa a mão no bigode, sopra forte, parecendo que a qualquer momento vai desabar no chão com nódoas e pontas de cigarro. Percebo que a mulher chora, passando a mão na cabeça do menino. Vejo que ela avança e, logo em seguida, recua, para não aparecer no campo de visão do garçom. Vai e vem na escada, indecisa. Esconde-se mesmo do garçom ou tem receio de que o cachorro a descubra ali e vá fazer festa na sua saia, roçar o rabo com rasgões em suas pernas? A saia é velha, remendada. De repente ela sobe, entra no quarto e, em poucos minutos, usando agora um vestido, sai com o menino todo enrolado numa toalha. O garçom pende a cabeça para o lado, o cachorro lambe-lhe o sapato. Ela afinal desce a escada e, atenta no garçom e no cachorro, rápida, abraçada ao menino, cruza o bar sem ser vista por eles, escorrega por trás das plantas num pequeno cercado, anda com cuidado, olhando sempre pros lados, sobre as palhas secas de um coqueiro e, à frente, toma a pista por onde eu vim. Mas o que ela vai fazer com aquela criança? Está fugindo de quem? Mordo a batata e mando o Marcos pra puta que pariu – a água do rio treme. Volto a olhar o pôr-do-sol, já agora uma ponta do céu escurecendo, lá pros lados do centro da cidade, os prédios sob uma nuvem arroxeada. Era então aquela maldita, meu Deus?! E como eu pude ficar o tempo todo bobeando? Era uísque pro Fernando, era presente pra canalha... Ah, os bons e melhores amigos. Sim, tratar bem. Vai, mosca morta! Age! E a puta dando em cima do meu marido. Sei lá se ela, se ele, canalha, aquilo é um malicioso, esperto, deve ter sido primeiro ele. Cretinos! A Sílvia vai aniversariar, não comprou a blusa dela? Ah, se te apanho, peste!

Lanço um último olhar para a escada, me levanto da cadeira – o cachorro se assusta, empina as orelhas. Pago a cerveja e a batata frita, sigo para o carro, ando lenta ao lado do cercado com as plantas, a areia enroscando-se em minhas sandálias. Quem descobriu a data do aniversário dela foi ele, muita folia, bebidas, bolo que encomendei (a velinha que pendeu na hora do parabéns retirada e enfiada com zelo pelo cretino!). Que delícia ela deve ter achado. E não foi ali que ela usava a bendita da saia branca? Não foi ali que percebi que ele, quando voltava da pia, reparava nas coxas da donzela? Sou uma imbecil. E bota imbecil nisso! Fazendo sala pros dois, o corno do Fernando pedindo tudo do bom e do melhor, ela retardando a ida, pode ser mais um pouquinho, bem? Hein?! Aqui, com os meninos, só mais um pouquinho? Meninos... Meninos? Eu menina. Eu. E também o triste do Fernando.

Piso com ódio na ponta da palha seca do coqueiro.

2.

Tento ouvir uma música, a cerveja me deixou um pouco tonta, não, Marcos, você não pode fazer assim comigo, ai, meu pai, mas que coisa! O que aconteceu? E não viajamos juntos no último verão, você disse que queria ir pro Rio ou então conhecer a Europa, fomos pra Europa, dei um jeito, financiei a maior parte, tudo muito bom na Espanha, o jogo do Real Madrid contra o Barcelona (no quarto do hotel você falou “que dia inesquecível”), como podia desconfiar de alguma coisa? Eu te dei carinho, cuidei bem de mim e de nossa filha, há um ano tenho em minhas costas a maior parte das despesas... Ah, meu pai, o que foi isso? Ah, Marcos, o que você quer? Enxugo as lágrimas na manga da blusa, ligo o carro. Na outra margem do rio, resta apenas uma ponta laranja do sol. Sigo devagar pela pista, paro adiante, depois de andar alguns minutos, baixo a cabeça no volante, as lágrimas pulam no banco, sobre as minhas pernas, ai, meu pai, mas por que isso? E a Juliana, Marcos, você não disse que ama demais a nossa filha? Dou pancadas no volante, eu preciso, e fecho os vidros, eu preciso gritar, não posso prender isso, ai, meu Deus!, ai, Marcos!, ai, que ódio! Você não podia fazer essa coisa comigo, pelo amor de Deus, não podia! Você não podia ter me deixado, ah, cretino, logo por aquela podre! Passo a mão na barriga, tiro a cabeça do volante. Encaro a pista: um vulto surge lá na frente, saindo do mato. Olho, atentamente, e descubro quem é: a mulher, ainda com o menino no colo. Ligo o carro novamente, parto.

Quando vê que me aproximo, que vou parando o carro no acostamento, a mulher, desconfiada, caminha na direção do areal. Desço do carro, digo que ela espere um pouco. Ela só pára à frente, debaixo de um dos cajueiros. Resolvo ir até onde ela está, retiro as sandálias, vou andando pela parte mais limpa da areia. Quando vou chegando, a mulher ainda tenta se esconder atrás de uma moita, mas falo para ela ter calma, ela fica quieta. Digo para ela se aproximar, ela vem, os olhos no chão, encosta-se no tronco do cajueiro, sempre abraçada ao menino, que permanece enrolado. A areia aqui é bem alva, sinto-a fresca sob meus pés. Pergunto por que ela veio, ela fica calada, olhando para o teto do armazém do outro lado da pista. Insisto, quero saber por que ela fugiu. Ela continua calada, o dedão do pé, fora da chinela, desencavando uma folha seca enfiada na areia. Mas o que houve? – pergunto. Ela aperta ainda mais o menino e lágrimas começam a rolar no seu rosto. Em seguida, levanta os olhos para o galho baixo do cajueiro, me evita. O que está acontecendo? – pergunto de novo, me encostando de vez nela. Ela vai retirando a toalha, deixando aparecer o rosto do menino. Mas ele está muito doente! – eu digo, roçando a ponta dos dedos no queixo da criança. A mulher soluça, esfrega o nariz nas costas da mão. Volta a ficar compenetrada, arredia. Ajeita a posição do menino no colo. O ombrinho dele se mexe. As pestanas se abrem um pouco, talvez curioso por minha presença aqui. O que é que ele sente? – falo e afasto um pouco a toalha, o corpo frágil da criança surgindo sob o resto de claridade. Um pássaro se agasalha nas folhas do cajueiro. Toco de novo no rosto do menino. Ele tem uma expressão aberta, contente. Agora ficou alegre, o danado, acho que está gostando de mim – digo, tentando descontrair um pouco. Ela cobre o peito da criança com a toalha. Respira forte, lança um olhar para os fundos do areal, e diz:

– Ele está morto.

Então me adianto, tomo o menino nos braços e noto que ele não tem movimentos. Meu pai, que coisa! Observo a mulher, o seu semblante. Este menino está mesmo morto? – tenho dúvida. Está – ela confirma. Em seguida, a mulher puxa a toalha e, virando-se, afastando com os pés uns garranchos, estira-a no chão. Vem, pega o menino e o põe com muito cuidado sobre a toalha. Ajoelha-se, alisa a cabeça da criança, e recomeça o choro. Mas por que você fugiu de casa? – quero detalhes. Ela fica silenciosa, passa a mão na perna do menino. Sim, me diga, o que foi mesmo que aconteceu? – agacho-me diante dela, o menino, os olhos ainda semi-abertos, deitado entre nós duas. Ela olha para um poste da pista, a lâmpada começando a acender. Me diga, minha senhora, o que lhe fizeram? – me irrito um pouco. Ela fecha a toalha sobre o corpo do menino, tira um cisco pregado no vestido, volta a soluçar. Ai, Marcos, você tinha necessidade de fazer isso comigo? Tinha necessidade de eu me deparar com uma situação dessas? Eu aqui, já quase escurecendo, no mato, diante de uma mãe com um filho morto, não, Marcos, você não devia ter feito isso comigo! A mulher afinal começa a falar. Ela diz que o marido, o garçom lá do bar, sempre foi uma pessoa muito boa para ela – foi, minha filha, sempre me deu tudo o que eu precisava. Nunca faltou nada em nossa casa. Ficamos cinco anos sem ter filho, até que veio este menino. Ele é maluco por essa criança, você nem imagina! Mas aí arrumou uma bandida e passou a ir toda noite pra casa dela. Ah, mas quando eu soube, desabei, meus pés fugiram de mim! Você não sabe como a partir daí minha vida virou um inferno. Ela é mais nova do que eu, é quase uma menina. Aí ele passou a chegar de madrugada, o bar fechado a noite toda, começou a faltar comida em casa, eu com medo de ladrão e sozinha com essa criança, ah, mas não gosto nem de lembrar! O menino foi ficando fraco, doentinho, você não imagina, moça, o que é a pessoa no desespero sair no escuro atrás do marido, andar por essas pistas mal iluminadas, isso aqui é cheio de gente ruim! Então uma noite eu peitei ele, disse que ia dar uma surra na infeliz. Ele, meio tomado, veio pra cima de mim, me deu um soco, disse que se eu tocasse o dedo nela ia me matar. Ele é muito violento, moça! Eu nunca pensava que ele fosse capaz de me bater. Mas me bateu muito, não pude fazer nada, ele ficou aí me ameaçando. Você imagina ele agora saber que essa criança tá morta? Ah, não quero nem tá perto, Deus me livre! Vai berrar que eu sou mesmo desajeitada, que deixou o menino comigo e o menino morreu. Aí não vai me perdoar, tenho quase certeza, ele me mata. E por que estava entrando no mato, escapando de mim? – pergunto. Não sei, pensei que a moça queria me levar de volta, mas não adianta, nunca mais quero ver aquele patife – ela responde, retocando o cabelo do menino.

Uma Van passa na pista, o motorista olhando em volta, curioso por ver meu carro no acostamento. O menino ainda entre nós duas, pergunto – ele sentia mesmo o quê, não deu para saber? Um outro pássaro chega, também se abriga nas folhas. Veja, ele pode falar o que falar, aquele ordinário, mas eu nunca descuidei dessa criança – ela diz, com ar de revolta. Bate na toalha, espantando um mosquito que parou no rosto do menino, agora ainda mais branco. E o que você vai fazer agora? – fico curiosa. Vou enterrar ele aqui – ela diz, olhando para as estacas adiante, sobras de uma cerca arruinada. Gira o corpo e, os movimentos firmes, começa a cavar com as mãos a cova. A respiração forte, enfia os dedos na areia, puxa-a com energia. Sinto pena da mulher fazendo o serviço sozinha. Dobro-me e, os joelhos fincados na terra, meto as mãos e começo a cavar também. Nossas mãos se chocam, retiramos folhas deterioradas, umedecidas. Após alguns minutos, paro e observo, aproveitando o restinho de claridade, as minhas unhas encardidas. Eu merecia isso, peste?! Em certo momento, meio tonta, vou me sentar numa pedra. Ela, os braços ágeis, suados. Em pouco tempo, o buraco raso, de meio metro, está pronto. Ela segue, apanha duas estacas à frente e, os olhos entre as moitas em volta, cata na areia um pedaço de arame. Vem, prende as estacas, improvisa uma cruz. Viro o rosto para um enorme caju no galho para não vê-la, aos prantos, pôr o menino na cova.

Após enterrar a criança, ela diz que está precisando ir – vai para a casa de uma irmã no interior. Pergunta se posso deixá-la na rodoviária. Digo que não há problema. Seguimos para o carro, evitando as moitas e os garranchos, ela sempre voltando a vista para a sepultura debaixo do cajueiro. Depois que acelero o carro, ela fica silenciosa no banco ao meu lado. Vez por outra, virando o rosto para os matos já escuros da margem, limpa a lágrima na mão. Após andarmos uns dez minutos, de cruzarmos ruas e avenidas iluminadas (um último trecho vermelho do céu lá pras bandas do aeroporto), ela pergunta se tenho filhos. Digo que tenho uma filha. E seu marido, ele é bom pra você? – ela quer saber. Como? – eu tusso. Seu marido já bateu em você? – ela pergunta, tirando terra da unha. Ah, sim, nunca, ele é muito bom pra mim – respondo, desviando de uma moto. E nunca quis ter um menino? – ela esfrega os dedos. Eu estou grávida de um – digo e paro no sinal. Começo a chorar, a mão na barriga. As pessoas passando na faixa me observam. Ô, Marcos! Ah, pilantra! Tiro um lenço da caixa no porta-luvas, limpo o rosto. A mulher me olha, põe a mão no meu braço. Seguimos e, ao lado da rodoviária, encosto o carro. Você foi muito boa comigo – ela diz. Dou-lhe um lenço, ela também limpa os olhos, ajeita o cabelo, o vestido triste, sujo. Depois que ela desce do carro, e quando vai colocando a cabeça na janela para me agradecer, pergunto – você esqueceu de me dizer, o menino morreu de quê? Ela fecha o rosto e, já sem nenhum sinal de dor na voz, diz:

– Eu matei ele.

Viro-me, acomodando o braço no outro banco:

– Você matou o menino como?

Ela se afasta um pouco, olha para o ônibus que acabou de girar na direção da plataforma e, baixando a cabeça, sopra para quase eu não ouvir:

– Enterrei vivo.


Rinaldo de Fernandes – é doutor em Letras pela UNICAMP e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Organizador do livro “O Clarim e a Oração: cem anos de Os sertões” (São Paulo: Geração Editorial, 2002). Como pesquisador, fez os textos da antologia Os cem melhores poetas brasileiros do século, organizada por José Nêumanne Pinto (São Paulo: Geração Editorial, 2001). Já teve contos publicados, entre outros suplementos, pelo Rascunho, de Curitiba. O conto “Duas margens” integra o volume O perfume de Roberta (inédito).