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::::::::::::::::::::::::::::::::::RAY SILVEIRA

Mar Vermelho

Morava com o irmão numa casa enorme, antiga, alpendrada e deteriorada. Não havia nada a separar o piso do telhado, conquanto se situasse no centro e fosse uma das mais modernas da aldeia. Era médico. Viajava todo final de semana, enquanto o irmão ficava sozinho.

Num criado mudo, junto à cabeceira da cama, havia um revólver descarregado. Os projéteis se encontravam numa segunda gaveta. Fazia questão de não pô-los no tambor. Por precaução e por estar convencido de que jamais teria necessidade de usar a arma. O lugar era calmo. O único divertimento era as peladas de que participavam todas as tardes, num campo improvisado em frente à casa. Os jogadores eram conhecidos por apelidos. Ninguém conhecia ninguém pelo nome. Até mesmo o médico era chamado só de "Doutor". O outro, o "Irmão do Doutor". Havia também o "Cara de Cachorro", o "Carrasco", o "Bola Sete", o "Sovaco de Cobra" e o "Barão".

Numa madrugada de uma Sexta pra Sábado, se preparava para viajar quando vieram chamar para atender uma grávida do décimo primeiro filho que apresentava um pequeno sangramento. O outro não viu a saída do irmão. Um pouco mais tarde foi despertado por um ruído na porta da frente. Levantou-se, foi investigar. Nada fora do comum.

O médico chegou ao quarto da parturiente, dentro de uma choupana onde faltava até energia elétrica. Mandou ferver água e se preparou para examinar. O exame de uma gestante que apresenta sangramento há de ser uma manobra muito delicada. A carência absoluta de condições para isso levou-o a ter de efetuar o procedimento de maneira intempestiva. Depois de concluído o toque vaginal, o sangramento, que era apenas um filete, transformou-se num jato contínuo e abundante. Deparara com uma das maiores complicações obstétricas possíveis de existir: uma placenta prévia oclusiva central.

Em outras palavras: o sangue da mãe e o do filho, que circulavam separados, passaram agora a jorrar copiosamente através da vagina. "Tragam-me toalhas. O sangramento aumentou!" Os filhos e o marido começaram a exibir fisionomias apreensivas. Cada toalha que era introduzida na vagina voltava ensopada. O sangue, agora, corria aos borbotões. "Doutor, não deixe a minha mulher morrer. Do contrário o senhor também não sai vivo daqui de dentro. Quando o senhor chegou não tinha nada disto!"

Por sua vez, o irmão ouviu forçarem a porta novamente. Abriu, examinou os alpendres e nada encontrou. Dormia de novo quando despertou ao escutar mais um barulho no teto como se estivesse sendo destelhado. Apanhou uma lanterna e focalizou para cima. O marginal já amarrara uma corda comprida e se preparava para descer. "Não desça porque estou armado!", gritou. O gatuno fez ouvidos de mercador. Pegou a arma e só então se deu conta de que estava descarregada. O intruso descia pela corda com a agilidade de um felino. Abriu o tambor do revólver e passou a revirar gavetas em busca da munição. Não encontrava. Enfim, localizou. Simultaneamente, o marginal saltou e caiu sentado no piso de mosaico. O tempo que levou pra se levantar foi aquele com que contou para inserir apenas um projétil. Não havia chance, nem condições psicológicas de verificar se a bala estava na agulha. Quando o marginal se pôs de pé, atirou. A arma não disparou. O bandido, então, partiu para o ataque.

Estava preste a entrar em pânico. Havia cinco toalhas e um lençol encharcados de sangue e continuava a jorrar muito mais. Cinco filhas gritavam como loucas. O marido e quatro filhos homens observavam enfurecidos a cena de horror. Àquela altura não sabia mais o que fazer a não ser pensar em como escapar ileso. A paciente suava gelo e mal respirava. Não havia mais pulsação das artérias. Neste instante decidiu partir para o tudo ou nada.

Puxou o gatilho mais duas vezes e o resultado foi o mesmo. O marginal já se encontrava a cinco passos quando disparou pela quarta vez visando, quase a queima-roupa, a cabeça. Desta vez houve um estrondo e o homem caiu se debatendo. Estrebuchou durante mais cinco minutos e ficou imóvel. Aproximou-se do corpo e verificou que estava mascarado. Retirou a máscara e reconheceu o "Cara de Cachorro", seu companheiro de pelada.

Pôs a paciente nos braços e transportou sozinho para a cozinha, pondo em posição horizontal em cima duma mesa. Não contava com ajuda de ninguém. Flexionou as pernas sob as coxas, alargando, assim a abertura do canal vaginal. Introduziu a "mão de parteiro" e avançou assim - os dedos unidos - através do colo uterino, mergulhando naquele mar vermelho. Havia permeabilidade suficiente. Então, extraiu, num único bloco, a placenta e o natimorto. O útero se contraiu e a hemorragia cessou quase imediatamente. O quarto parecia um matadouro e ele, um açougueiro. Mas a mulher sobreviveu.