Jamais pensei em suicídio. Quero dizer: não no significado convencional da palavra. Ao mesmo tempo, vivia pensando nisso. Vou explicar. Não quero cometer suicídio do
corpo inteiro, apenas de uma parte. Digo melhor, de duas. Em outras palavras: quero
suicidar minhas mãos. Já não suporto conviver com elas. Sinto mais repugnância do
que do suor, da urina, das fezes, das melecas do nariz... Em suma, de tudo o quanto
o corpo rejeita. As mãos estavam para mim, assim como as unhas estão para algumas
pessoas. Convive-se com as unhas porque são um mal necessário. Muita gente as odeia,
mas não manda extrair porque, bem ou mal, cumprem uma função. Assim eram, para mim,
as mãos. Cumpriam funções, às vezes, indispensáveis. Isso, ao invés de me
gratificar, me aborrecia. Como um benfeitor a quem odiamos por nos sentir
constrangidos pela humilhação do favor recebido. Estava permanentemente calçado com
luvas. Preferia exibir todas as outras partes do corpo do que estes miseráveis
apêndices. Mesmo sabendo do mal necessário que representavam, já cogitei de mandar
amputá-las. Não encontrei quem quisesse fazer. Só então, pensei em cortar eu
mesmo... Por que ainda não o fiz? É simples: ao separar uma delas, não haveria mais
como decepar a outra. Ou seja, nem para isso servem, essas desgraçadas... Sentia um
complexo de culpa terrível. As misérias que pratiquei na vida foram por sua causa.
Desde quando amassei fezes, até o cumprimento que sou obrigado a trocar com pessoas
que me enojam. Enfim, todos os atos abomináveis que cometi foram com as mãos.
Hoje, quando mais precisava, deixaram de cumprir uma tarefa sublime. Estão
enfaixadas. E em carne viva. Melhor dizendo, quase sem carne alguma. Ainda assim me
decepcionaram como nunca. Se encontrasse alguém que fizesse o favor de amputá-las
de vez, nem sei do que seria capaz para retribuir. Lá fora, a noite era um breu.
Uma vastidão de nuvens da cor de chumbo enchia o céu e tinha o formato de torreões
superpondo-se uns aos outros sob uma espécie de véu de aparência fibrosa. Eram
cúmulos-nimbos. O som dos trovões sugeria uma fantasmagoria gigante urrando de dor.
Apenas o lampejo dos raios interrompia as trevas, por alguns segundos. O ar
enregelado se movia transformado num vento forte que soprava sem cessar e
assobiava. Os sibilos se misturando com o grasnar de bandos de corujas
rasga-mortalhas. Sobre o pijama, vesti um sobretudo preto. Calcei botinas de
borracha, pus uma pá sobre o ombro e saí. Não pensava: seguia os instintos. Não
caminhava: movia-me como um robô. Tomei o caminho do cemitério. Meu vulto turvo se
confundia com a escuridão. As botas abafavam o som das passadas. E a placidez da
aguardente dissimulava os tremores do corpo e aplacava os tormentos da alma. Seguia
o rumo, assim como um ébrio que jamais se perde no caminho de volta pra casa. Pois,
para mim, não havia outra casa, exceto o lugar onde haviam depositado o corpo
daquela com quem convivera durante quase trinta anos.
Quando Leilah foi enterrada, o lugar onde morávamos se transformou em algo tão
estranho quanto intolerável. As paredes, o quarto de dormir, a cozinha parecia
nunca terem existido antes. Leilah tinha sido sepultada há sete dias. Contava como
certa a capacidade de fazê-la ressuscitar. Assassinei-a lentamente com ácido
arsênico adicionado ao leite, em pequenas doses diárias. Tinha uma amante a quem não
podia abandonar. Algum dia minha esposa haveria de saber. Então, preferi matá-la a
ter de fazê-la passar por tamanho sofrimento. O muro do cemitério já fora baixo.
Quando correu na vila o boato de que as sepulturas estariam sendo violadas, alguém
se encarregou de elevar. Não havia, portanto, como escalar, senão com a ajuda de uma
escada que não havia. Amontoei um pedregulho. Restos da obra que permaneceram nas
imediações. Depois de várias tentativas frustradas, pus-me a gritar: "Leilah". E
escutava de volta: "lah, lah, lah". Leilah ouvira e respondera. Portanto ainda
vivia. Estou certo de que a enterraram viva. E me aguardava, sufocada, para
salvá-la. Aquele som me transtornou. De repente, senti força e agilidade de uma
fera ferida. Repeti várias vezes o nome da minha mulher: "Leilah!" E ela respondia
sempre: "lah, lah, lah".
Terminei por galgar o muro, após um esforço sobre-humano. Só depois de pular pra
dentro do cemitério me dei conta de que a pá tinha ficado do lado de fora. Ainda
assim, corri para a sepultura. Agachei-me, colei o ouvido contra a terra e escutei
um coração a pulsar. O coração de Leilah. Desesperado, pus-me a cavar com as mãos.
Nada me detinha: As bátegas da chuva torrencial que começou a cair. A inutilidade
dos primeiros esforços. Nem as dores das feridas que se abriam nas malditas mãos.
Cada vez mais profundas e sangrentas. O aguaceiro, aos poucos, foi tornando a terra
permeável. Enchi-me de esperança. Então, continuei cavando sem parar, com mais
vigor e rapidez. Removi muita lama. Depois, senti um cheiro esquisito. Cheguei a
descobrir parte do caixão que continha a minha amada. Mas as odiosas mãos
fraquejaram. Apesar da dor, esfreguei uma contra a outra e escutei o ruído de ossos
atritados. Foi neste instante que tudo terminou. O portão do cemitério se abriu e
entraram pessoas focalizando com lanternas. Correram na minha direção. Ainda tentei
reagir. Mais uma vez, as amaldiçoadas mãos não me atenderam. Sinto nojo. Quero me
ver livre dessas miseráveis. Vou arrancá-las agora...
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