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:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::RAY SILVEIRA

Um Dia Que Nunca Terminou

O dia já não era dia, mas também ainda não era noite. Estava preste a apanhar um ônibus, mas o que apanhou foi um tenebroso ônus, pois uma metralhadora giratória começou a cuspir fogo disparando em direção aos pontos cardeais, laterais, colaterais e contralaterais. Havia, contudo, dois pormenores dignos de registro. As rajadas vinham de dentro para fora e as balas eram de terror. Se fossem de aço e penetrassem, ao invés de saírem, a sensação seria igual. Todavia, o resultado, decerto menos cruel, porquanto instantâneo. No entanto, respirava. Não oxigênio. Inalava medo e exalava pavor. Ao redor, muito barulho silencioso: via, mas não ouvia os ruídos. Sentia as pernas, mas ignorava a sua função. A Terra, um gigantesco carrossel. Não era uma só pessoa, senão várias. Idéias confusas e conflitantes. E um vento duro açoitava uma chama raivosa aquecendo um ferro de marcar animais, pronto para ser usado.

Dez anos antes, à hora branca da aurora, deixava, pela primeira vez a sua casa, para morar num internato. Tinha uma aparência de chamar atenção, pela feiúra. Não se tratava destas fealdades encontradiças pelas ruas das grandes cidades. Era grotesca... Quase quasimodesca. Desde a mais tenra idade fora vítima de zombarias.

Sofria e calava porque o sofrimento moral repetitivo se torna crônico, tal qual a dor física. Portanto, tolerável. O rochedo de tanto apanhar do mar, acaba por suportar, sem se ferir, o impacto perpétuo das ondas...

Ele não era rochedo. Mal assomou ao pátio do recreio começaram as assuadas. Doía por dentro e por fora. Sentia-se um animal acuado que não morre, nem pára de sofrer. Não reagia. As palavras calaram na garganta, não pela ausência de idéias, senão porque já tinham ultrapassado correndo todos os limites capazes de articulação, como se fossem traças pululando num oceano de chamas, abandonadas à própria sorte, sem guarda nem salva-vidas.

O que é o tempo? Duração relativa das coisas criando no ser humano a idéia de presente, passado e futuro, como querem os dicionários, que para tudo têm uma resposta pronta? Improvável. Nada se sabe a seu respeito, salvo que ninguém se salva dele. De nada desconfiava. Era comum o diretor chamar os alunos pra conversar no escritório. Como estás? Muito bem, senhor. Pois eu não acho! As janelas estavam escancaradas. A princípio, soprava uma brisa morna que, aos poucos, arrefecia. Um friúme de escalafrios de maleita começou pelas plantas dos pés e pelas palmas e, a seguir, invadiu corpo e alma. Era uma noite de lua cheia e de céu estrelado. Nenhuma nuvem, do zênite ao horizonte. Mas dentro daquele recinto havia um nevoeiro tão negro quanto a negridão dos vazios siderais. Jamais, antes do ataque daquela tarde-noite, tivera um sobressalto semelhante. Ignorava o crime cometido e já se sentia culpado por antecipação. Não importava qual fosse. A condenação era certa. Só havia dúvida quanto ao tamanho e à natureza da pena. Poderia variar desde uma suspensão, à expulsão sumária.

O terror, diante de ambas as perspectivas, era inversamente proporcional à imaturidade dos doze anos. E infinito pela decepção que levaria pra casa. Os pais o tinham como modelo de virtudes. Era também sua única esperança. Aceitar de volta o filho, expulso como um cão, equivalia, naquela época, a receber, nos dias de hoje, a notícia de que fora vítima de overdose. Consta que suas atitudes estão a enodoar o bom nome desta instituição. Faça as malas. Amanhã vai embora. Seria possível saber o motivo, senhor? Você conversou assuntos imorais com um dos seus colegas. Aqui não há lugar para pecadores. Impossível mantê-lo entre os bons.

Saiu dali como um assassino, cheio de remorsos tardios, deixando o tribunal depois de ouvir a merecida sentença de morte... Atravessou sombrios corredores que pareciam levar, não ao pátio do colégio, e sim ao local da execução. Tudo concorria para assim se sentir: a parca iluminação, a cor de osso velho das paredes, os cheiros das velas acesas e dos incensos, vindos da capela, o som de marcha fúnebre das passadas no assoalho de tábuas sem piso morto... Morto... Morto... Morto...

No pátio, o clarão da Lua se restabeleceu. Aquele luar, longe de fasciná-lo, como era costume suceder, fazia-o se sentir transportado para as histórias de terror escutadas durante a infância. Esperava ser surpreendido a qualquer momento por milhares de babaus, lobos-maus, bruxas voadoras a bordo de suas vassouras, lobisomens, mulas-sem-cabeça, duendes, fantasmas e toda a legião de demônios das profundezas infernais, trajados a caráter... Nenhuma destas fantasias o torturava tanto quanto o complexo de culpa na consciência de chumbo. Aquela úlcera cancerosa jamais cicatrizaria. Apenas atravessaria fases intercaladas de melhorias e recaídas, desgastando-o aos poucos, como o gasto mundo desgasta as suas vítimas comendo-as pelas beiradas.

Nunca saberia qual foi o crime que, de fato, perpetrou. Naquela ocasião não tinha dúvida quanto à suficiência das provas dos autos do processo inquisitório. Isto é: cinco minutos de fantasias trocadas entre dois meninos entrando na puberdade. Quando adulto, a inteligência repugnava a idéia de que meia dúzia de palavras sobre sexo, onde vocábulos como boceta e caralho sequer eram imaginados, fosse a causa de tão drástica decisão. Infelizmente, teve de desconfiar de algo bem mais grave: quebra de sigilo de um saca aprazimento de inocência, também conhecido pela graça (?) de
sacramento da penitência.

O confessor não se limitava a ouvir: padre, pequei contra a castidade. Não! Exigia detalhes: quantas vezes? só ou com outra pessoa? homem ou mulher? pela frente, por trás, ou de lado? em pé ou de cócoras? de papo pra cima ou pra baixo? parado, correndo ou caminhando? sentado, deitado, de quatro? voando, nadando ou cavalgando? conte tudo, ela gostou, gemeu, chorou? E a voz tremia. E suava em bicas. E se emocionava. Parece até que se comprazia em testemunhar o tormento daquele menino de doze anos. Ou então, quem sabe, se excitava. Não é, portanto, improcedente supor terem sido tais confissões o motivo real da sentença, naquele dia que nunca terminou...