O dia já não era dia, mas também ainda não era noite. Estava preste a apanhar um
ônibus, mas o que apanhou foi um tenebroso ônus, pois uma metralhadora giratória
começou a cuspir fogo disparando em direção aos pontos cardeais, laterais,
colaterais e contralaterais. Havia, contudo, dois pormenores dignos de registro. As
rajadas vinham de dentro para fora e as balas eram de terror. Se fossem de aço e
penetrassem, ao invés de saírem, a sensação seria igual. Todavia, o resultado,
decerto menos cruel, porquanto instantâneo. No entanto, respirava. Não oxigênio.
Inalava medo e exalava pavor. Ao redor, muito barulho silencioso: via, mas não ouvia
os ruídos. Sentia as pernas, mas ignorava a sua função. A Terra, um gigantesco
carrossel. Não era uma só pessoa, senão várias. Idéias confusas e conflitantes. E um
vento duro açoitava uma chama raivosa aquecendo um ferro de marcar animais, pronto
para ser usado.
Dez anos antes, à hora branca da aurora, deixava, pela primeira vez a sua casa, para
morar num internato. Tinha uma aparência de chamar atenção, pela feiúra. Não se
tratava destas fealdades encontradiças pelas ruas das grandes cidades. Era
grotesca... Quase quasimodesca. Desde a mais tenra idade fora vítima de zombarias.
Sofria e calava porque o sofrimento moral repetitivo se torna crônico, tal qual a
dor física. Portanto, tolerável. O rochedo de tanto apanhar do mar, acaba por
suportar, sem se ferir, o impacto perpétuo das ondas...
Ele não era rochedo. Mal assomou ao pátio do recreio começaram as assuadas. Doía por
dentro e por fora. Sentia-se um animal acuado que não morre, nem pára de sofrer. Não
reagia. As palavras calaram na garganta, não pela ausência de idéias, senão porque
já tinham ultrapassado correndo todos os limites capazes de articulação, como se
fossem traças pululando num oceano de chamas, abandonadas à própria sorte, sem
guarda nem salva-vidas.
O que é o tempo? Duração relativa das coisas criando no ser humano a idéia de
presente, passado e futuro, como querem os dicionários, que para tudo têm uma
resposta pronta? Improvável. Nada se sabe a seu respeito, salvo que ninguém se salva
dele. De nada desconfiava. Era comum o diretor chamar os alunos pra conversar no
escritório. Como estás? Muito bem, senhor. Pois eu não acho! As janelas estavam
escancaradas. A princípio, soprava uma brisa morna que, aos poucos, arrefecia. Um
friúme de escalafrios de maleita começou pelas plantas dos pés e pelas palmas e, a
seguir, invadiu corpo e alma. Era uma noite de lua cheia e de céu estrelado. Nenhuma
nuvem, do zênite ao horizonte. Mas dentro daquele recinto havia um nevoeiro tão
negro quanto a negridão dos vazios siderais. Jamais, antes do ataque daquela
tarde-noite, tivera um sobressalto semelhante. Ignorava o crime cometido e já se
sentia culpado por antecipação. Não importava qual fosse. A condenação era certa. Só
havia dúvida quanto ao tamanho e à natureza da pena. Poderia variar desde uma
suspensão, à expulsão sumária.
O terror, diante de ambas as perspectivas, era inversamente proporcional à
imaturidade dos doze anos. E infinito pela decepção que levaria pra casa. Os pais o
tinham como modelo de virtudes. Era também sua única esperança. Aceitar de volta o
filho, expulso como um cão, equivalia, naquela época, a receber, nos dias de hoje, a
notícia de que fora vítima de overdose. Consta que suas atitudes estão a enodoar o
bom nome desta instituição. Faça as malas. Amanhã vai embora. Seria possível saber o
motivo, senhor? Você conversou assuntos imorais com um dos seus colegas. Aqui não há
lugar para pecadores. Impossível mantê-lo entre os bons.
Saiu dali como um assassino, cheio de remorsos tardios, deixando o tribunal depois
de ouvir a merecida sentença de morte... Atravessou sombrios corredores que pareciam
levar, não ao pátio do colégio, e sim ao local da execução. Tudo concorria para
assim se sentir: a parca iluminação, a cor de osso velho das paredes, os cheiros das
velas acesas e dos incensos, vindos da capela, o som de marcha fúnebre das passadas
no assoalho de tábuas sem piso morto... Morto... Morto... Morto...
No pátio, o clarão da Lua se restabeleceu. Aquele luar, longe de fasciná-lo, como
era costume suceder, fazia-o se sentir transportado para as histórias de terror
escutadas durante a infância. Esperava ser surpreendido a qualquer momento por
milhares de babaus, lobos-maus, bruxas voadoras a bordo de suas vassouras,
lobisomens, mulas-sem-cabeça, duendes, fantasmas e toda a legião de demônios das
profundezas infernais, trajados a caráter... Nenhuma destas fantasias o torturava
tanto quanto o complexo de culpa na consciência de chumbo. Aquela úlcera cancerosa
jamais cicatrizaria. Apenas atravessaria fases intercaladas de melhorias e recaídas,
desgastando-o aos poucos, como o gasto mundo desgasta as suas vítimas comendo-as
pelas beiradas.
Nunca saberia qual foi o crime que, de fato, perpetrou. Naquela ocasião não tinha
dúvida quanto à suficiência das provas dos autos do processo inquisitório. Isto é:
cinco minutos de fantasias trocadas entre dois meninos entrando na puberdade. Quando
adulto, a inteligência repugnava a idéia de que meia dúzia de palavras sobre sexo,
onde vocábulos como boceta e caralho sequer eram imaginados, fosse a causa de tão
drástica decisão. Infelizmente, teve de desconfiar de algo bem mais grave: quebra de
sigilo de um saca aprazimento de inocência, também conhecido pela graça (?) de
sacramento da penitência.
O confessor não se limitava a ouvir: padre, pequei contra a castidade. Não! Exigia
detalhes: quantas vezes? só ou com outra pessoa? homem ou mulher? pela frente, por
trás, ou de lado? em pé ou de cócoras? de papo pra cima ou pra baixo? parado,
correndo ou caminhando? sentado, deitado, de quatro? voando, nadando ou cavalgando?
conte tudo, ela gostou, gemeu, chorou? E a voz tremia. E suava em bicas. E se
emocionava. Parece até que se comprazia em testemunhar o tormento daquele menino de
doze anos. Ou então, quem sabe, se excitava. Não é, portanto, improcedente supor
terem sido tais confissões o motivo real da sentença, naquele dia que nunca
terminou...
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