J. GERALDO NERES

Dédalos

Folhas secas roçam a face. Rompem a quietude. O frio de minh’alma. Inverno bárbaro e eterno.

O manto negro estende-se há horas. Parece sorrir para a solidão. Corpo aquecido por lembranças. O passado dança em minha mente. E Camila caminha o vento.

Este ser - lobo domesticado. Uiva querendo o luar. Esforço inconseqüente, procura um igual. Percorro o vazio dessa cidade. Música ligeira. Portas paradas. Sigo a esquina devassa. O vinho gratuito de lábios exóticos. E Camila caminha o vento.

O amanhecer de cabelos dourados deita-se em meus ombros. Lêmures de outrora são o meu desejo. A garganta ressequida resmunga palavras sinistras. Um vento desconhecido me envolve. E Camila caminha este vento.

Um beijo sela os lábios. Meus olhos, embriagados com a visão, choram o néctar da noite anterior.

Ela diz meu nome. Acende o clamor das recordações. Alegremente sorve as angústias. Outro beijo e um sussurro:

- Fili*... Trago o vento. Levo seus tormentos. Nosso passado tem sabor de Fênix. Dou-lhe um novo dia. Uma razão para continuar sua jornada.

Olhos secos. Corpo revigorado. O astro-rei brilha na varanda.

E Camila?

Ah; Camila calmamente caminha o vento.

Fili* (Mitologia Celta) Poeta

Episódio

Metal impuro, medalhão da sorte sem poderes ocultos, moeda cunhada nos tempos do sofrimento. Estas foram as primeiras hipóteses para descrever o objeto que estava cravado entre os dedos daquele incógnito ser na angustiada mesa de necropsia.

Ele fora encontrado no cume da montanha [ironicamente denominada Paraíso]. Ainda não atingira a idade do lobo.

Concluídos os primeiros exames, tentava eu montar o quebra-cabeça do devorador de minha tranqüilidade. Não saí da primeira peça. Nenhum indício de sua morte, os órgãos internos estavam perfeitos, o que era incomum para alguém de sua idade. Uma luz artificial refletiu-se em meu rosto e o Senhor das dúvidas percorreu-me o corpo. A moeda abandonou seu hospedeiro, furtando-me a concentração nas análises.

A ampulheta é invertida. As runas traçam diferente destino. O vento noturno conduz a uma estranha sensação; estou na montanha Paraíso. Solitário. Vestígios de sanidade. Abruptamente o cenário é invadido por outra criatura, mas ela não sente minha presença. Senta-se em posição de lótus, parece admirada com o horizonte. Num movimento angelical, ela retira um objeto circular de suas entranhas. Olha-o e seu semblante transforma-se. Grita e atira furiosamente o objeto montanha abaixo. Vira-se para mim: olhar vago, um quê de decepção. Chove. A chuva cobre seu corpo num lamento. Uma gota rubra remete-me à cena inicial: [Metal impuro - Forja mestra de almas, invento impondo sua cadência, arquitetando o cotidiano, monarca das ilusões. Sou servo banhando-me em espelhos de lágrimas]. Permitiram-me o sol, mas há dias não sinto sua luz.

Prisma

Rajadas de luz o despertam. Vislumbra por segundos a saída de emergência. Mas o som do martelo anuncia a sentença.

Começa a mais importante batalha de sua existência. O corpo maltrapilho arrasta-se nas fagulhas de esperança, não quer o beijo doce da derrota. Reúne o que sobrou de dignidade, e, num esforço único, mesclado com desespero; levanta-se. Olha ao redor. Sente o calor corrompê-lo. Pétalas de cansaço o envolvem. Num momento utópico, sorri da situação em que se encontra. Ganha energia. Sabe que para alcançar o porto seguro, depende só de si. Luta. Luta.

Seu algoz se surpreende com a demonstração de persistência. Planeja o derradeiro golpe, talvez de misericórdia. Desfere.

O ser cai. Escuta-se um grito de vitória. Se foi, um oponente de grande valor.

O tempo se paralisa. E abra-se o grande véu, dando lugar para uma chuva repentina. Braços maternais o amparam. Divide seu calor. Beija-o na fronte. Devolve-lhe o sopro da vida. Surgem labaredas. Seu corpo emana maravilhoso brilho.

O tapete de espinhos será trilhado com olhos de rosas brancas.

J. Geraldo Neres; poeta/escritor, co-fundador do Grupo Palavreiros(grupo de escritores/poetas sediados em Diadema/SP/Brasil), atual Coordenador de Comunicações e Web-Master do site PALAVREIROS. "É calor dum domingo de quatro de dezembro, 1966 (Garça/SP/Brasil), a primeira morada... Perambulo pelos becos e vilarejos medievais, pelo lirismo noturno; critico os abusos do cotidiano e bebo na fonte de mitos celtas, egípcios, e do realismo fantástico” .

Antologias Poéticas: Alabastros (Março/2002) e Projeto Cultural “Tempos Perplexos – Poética Social(Agosto/2002). Publicações em prosa, poesia em sites brasileiros e na Argentina, Espanha, Portugal e Venezuela.

Participação: MCP - Mapa Cultural Paulista 2000 e 2001, sendo classificado entre os finalistas da fase municipal-2000 (Diadema/SP). (Dezembro/2001) Balaio de texto do site SESC, São Paulo (Coordenação de João Silvério Trevisan). Mostra de Artes “Plataforma ABC” 2002 - SESC, SÃO CAETANO DO SUL/SP (Consultora de Literatura: Dalila Teles Veras). Apresentações do Grupo Palavreiros: Saraus, Palestras e recentemente (Julho/2002) da Mostra Paralela no I Congresso Nacional de Dramaturgia – SBAT, com o espetáculo “Formigueiro”.

Formação Literária: Oficinas de Criação Literária realizadas pelo Depto de Cultura do município de Diadema, ministradas pela escritora e fomentadora cultural Beth Brait Alvin(1999/2002). Oficina de Criação Literária (1º semestre 2000, Casa da Palavra – Sto André/SP) com o poeta Cláudio Feldmann. Oficina de Criação Literária(prosa) com o professor/escritor Ovídio Poli Junior (2001) realizada pelo Depto de Cultura do município de Diadema. Oficina de Criação Literária com o poeta/tradutor Cláudio Willer (1º semestre 2002, Casa da Palavra – Sto André/SP)

www.palavreiros.hpg.ig.com.br