Não contarei os pormenores sangrentos deste grande combate, que se ficou chamando a "Batalha de Lu". Todos estes medonhos conflitos de selvagens, mesmo travados com a disciplina dos cacuanas, se assemelham. É sempre uma vasta confusão de corpos escuros e emplumados, um estridente ruído de escudos entrechocando-se, azagaias reluzindo no ar, saltos, guinchos, uivos, clamores imensos, onde destaca uma nota assobiada, o sgghi! sgghi! que solta o selvagem, quando trespassa com o ferro o inimigo.
O plano de Ignosi, de resto, foi triunfalmente realizado. Os Pardos avançaram naquela língua de terra que penetrava na nossa meia lua, e com admirável heroicidade sustentaram os ataques de regimentos após regimentos, arremessados sobre eles por Tuala.
Quando dos Pardos restava apenas metade, e a atenção de todo o exército inimigo estava concentrada nesta luta com o heróico regimento, as duas alas nossas, que tinham caminhado pelos dois cornos da meia lua, caíram sobre os flancos desprevenidos do inimigo, como um círculo de cães de fila sobre lobos descuidados. Começou uma pavorosa matança. Ignosi carregou então de frente com as reservas frescas e decidiu a batalha. Eu fiz parte dessa carga; e não sei como, achei-me ao pé do barão, que parecia o verdadeiro deus da guerra, com os longos cabelos de ouro a esvoaçar ao vento, todo ele vermelho de sangue, e soltando a cada grande golpe de machado o velho grito saxônio de ataque: O-hoy! O-hoy! Também me parece que avistei Tuala na confusão, coberto com a sua cota de malha, arremessando as tolas, as facas enormes dos cacuanas, que dois guerreiros atrás dele traziam em sacos de couro. Lembro-me ainda também de um chefe que, em vez de escudo, erguia, para se defender, o cadáver de um Pardo, e que combatia, cantando. De resto, tudo se me confunde na memória, o sangue correndo, os corpos tombando, um grande estridor de armas, um imenso esvoaçar de plumas.
Com o embate das duas colunas nossas sobre os flancos do exército de Tuala, a batalha ficou ganha, e dentro em breve a vasta planície que se estendia entre a nossa colina e a cidade de Lu, estava cheia de soldados fugindo em terrível desordem.
O regimento dos Pardos, no entanto (ou o que dele restava) reunira numa pequena elevação de terreno, onde tristemente verificamos que, dos três mil valentes que o compunham, ainda de manhã, apenas acudiam à chamada cento e noventa e cinco homens. Entre eles estava Infandós, que combatera heroicamente, tendo somente um leve golpe no braço. Ignosi, com um grupo de chefes, entre os quais vinha John (ferido numa perna e manquejando) em breve se veio juntar a esta gloriosa falange dos Pardos. E foi seguido dela, como da sua guarda de honra, que o rei, e nós com ele, marchamos sobre a cidade de Lu.
Às portas da cidade, ainda fechadas, estavam já postados grossos destacamentos dos nossos para as atacar. Mas dentro, os soldados de Tuala, inteiramente desmoralizados pela derrota do seu rei, não pareciam dispostos à resistência. Com efeito, às primeiras intimações dos arautos, a ponte levadiça da porta chamada Real foi descida; e, seguindo Ignosi, penetramos enfim na cidade vencida. Nas ruas, às portas das arrogas, nos terreiros, por toda a parte se apresentavam soldados, com a cabeça baixa, os escudos e as lanças pousadas aos pés em sinal de submissão, que saudavam Ignosi como rei. Assim chegamos à aringa real. No terreiro silencioso, à porta da sua grande senzala, solitário, abandonado, sem um soldado, sem um cortesão, sem uma das suas mil mulheres, estava Tuala, sentado num escabelo, com o rosto caído sobre o peito, as mãos pousadas sobre os joelhos. Cheguei a sentir uma vaga piedade pelo pobre rei derrotado! Um único ser lhe ficara fiel, Gagula que, agachada aos seus pés, rompeu num fluxo de injúrias, mal nos viu assomar ao terreiro, seguindo o triunfante Ignosi.
Tuala, esse, não parecia ver, nem sentir. Só quando Ignosi parou, e os soldados bateram em cadência com os contos das azagaias no chão, o velho tirano ergueu a cabeça emplumada. Depois, atirando sobre nós um olhar mais reluzente que o grande diamante que lhe ornava a testa:
- Salve, rei! - gritou ele a Ignosi, com amargo escárnio. - Tu que, por feitiços dos homens das estrelas, seduziste os meus regimentos, dize, que sorte me destinas?
- A sorte de meu pai, que tu mataste! - foi a fria e dura resposta.
- Bem! Saberei morrer, para que te fique como exemplo quando a tua vez chegar. Mas reclamo um privilégio da família real dos cacuanas. Quero morrer combatendo.
- Concedo - respondeu Ignosi. - Escolhe o teu homem. Eu não posso, porque o rei não se bate em combate singular.
O sinistro olho de Tuala percorreu-nos lentamente a todos. E, como durante um momento se fixou em mim, eu senti ali o mais atroz pavor da minha vida aventurosa! Justos céus! Se ele se quisesse bater comigo? Também, tomei logo a minha resolução: Recusar, fugir, ainda que fosse apupado por toda a nação cacuana! Felizmente o bruto escolheu:
- Incubu! - exclamou, estendendo a mão para o barão. - Tu que mataste meu filho, quererás tu lutar comigo, ou ser chamado um covarde?
- Não - gritou logo Ignosi, - Incubu não se baterá contigo!
- Decerto não, se tem medo.
Infelizmente o barão compreendera. Todo o sangue lhe subiu às faces. E avançou logo, de machado erguido.
Acudimos, suplicando-lhe que não arriscasse a vida com aquela fera, inteiramente desesperada, de antemão condenada à morte. Provas de heróico valor já ele as dera de sobra! Para que ir-nos despedaçar o coração, se uma desgraça lhe sucedesse?
O barão, porém, permaneceu inabalável.
- Nenhum homem vivo, civilizado ou selvagem, me chamará nunca cobarde. Quero bater-me com ele!
Ignosi, bem a custo, cedeu.
- Seja, pois!... Tuala, o grande Incubu, vai marchar para ti!
Tuala riu, ferozmente; e os dois gigantescos homens ficaram frente a frente. O primeiro ataque foi o do barão, que lançou sobre Tuala o machado a toda a força. Com um salto, Tuala esquivou o corte, e arremessou outro, em resposta, sobre o barão, que o aparou no escudo. E, durante um momento, houve assim uma viva e faiscante troca de machadadas, que ora bruscos saltos evitavam, ora os broquéis defendiam. Nós nem respirávamos. O regimento dos Pardos, esquecida a disciplina, fizera círculo, e soltava gritos, batia palmas a cada golpe vibrado. John, agarrado ao meu braço, andava aos saltos sobre a perna sã, animando o barão com berros:
- Bravo! Anda-me aí! Esse foi bom! Atira-lho de ilharga!...
Subitamente, um brado de horror ressoou. De uma pancada, Tuala cortara o cabo do machado do barão, que ficava assim desarmado e, erguendo o seu próprio machado, caía sobre ele com um uivo furioso de triunfo. Tudo acabara; eu fechei os olhos... Quando os abri, Tuala e o barão, agarrados um ao outro como dois gatos bravos, estavam rolando no chão, e o barão, com um desesperado esforço, procurava arrancar a Tuala a machada que ele tinha presa ao pulso por uma correia de búfalo. Pareceu-me uma eternidade o tempo que eles assim rolaram um sobre o outro, nesta furiosa luta pela posse do machado. Finalmente a correia quebrou e com um último, monstruoso arranque, o barão, desprendendo-se de Tuala, ergueu-se de salto, com o machado na mão. Num instante Tuala estava também de pé e ambos tinham as faces a escorrer sangue. Foi Tuala, que, mais rápido, arrancou do cinto o facalhão e o vibrou contra o peito do barão. O valente homem cambaleou, mas a couraça de malha repeliu a facada. De novo Tuala arremeteu com a lâmina e então o barão, retesando-se todo num esforço, alçou o machado, no momento mesmo em que Tuala se inclinava, e deixou-lhe cair uma machadada, com tremenda força, sobre o pescoço.
Houve um grito enorme. E, coisa pavorosa, vimos a cabeça de Tuala saltar-lhe dos ombros, dar como uma péla dois pulos pelo chão, e rolar até aos pés de Ignosi! Durante um segundo o corpo ficou erecto, com o sangue saindo em grossos borbotões e a fumegar. De repente tombou, com um ruído surdo. E do outro lado o barão caiu também, desmaiado. Erguemo-lo ansiosamente, encharcamos-lhe o rosto em água. Pouco a pouco, abriu os olhos. Estava salvo!
O sol ia justamente descendo. Eu baixei-me para a cabeça de Tuala que ali ficara numa poça de sangue e, desapertando o grande diamante que lhe ornava a testa, entreguei-o solenemente a Ignosi e bradei:
- Salve, rei dos cacuanas!
Ele apertou o diamante sobre a testa. Depois pousou um pé sobre o peito de Tuala morto, e cercado dos seus guerreiros, entoou um canto de vitória.
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