Já muito tarde, quase de madrugada, Infandos apareceu, como prometera, com os chefes seus amigos, todos homens de porte marcial e decididos. A conferência foi longa e curiosa. Ignosi, convidado a expor a sua romântica história e os seus direitos ao reino dos cacuanas, começou por tirar a tanga em silêncio e mostrar o emblema sagrado, a grande serpente tatuada na cinta. Cada chefe, um a um, tomava a lâmpada, e, agachado, examinava o sinal com respeito; depois, em silêncio, passava a lâmpada a outro.
Em seguida Ignosi, reatando a tanga, contou a sua vida estranha, desde a fuga com a mãe através do deserto. Os chefes permaneceram calados. Infandos, por seu turno, recordou os longos crimes de Tuala, retraçou as matanças dessa noite de festa em que dois guerreiros valentes, de casas ilustres, tinham sido trucidados, só por possuírem grandes rebanhos que Escraga apetecia. Por fim, fez um grande apelo à razão e ao coração dos chefes, que só tinham a escolher entre o monstro que, por avidez e capricho, lhes arrancava a vida, ou o homem que lhes garantia a existência feliz nas suas senzalas e a posse tranqüila dos seus gados. Mas, com espanto nosso, os chefes pareciam hesitantes e desconfiados.
Finalmente, um deles, homenzarrão possante, de carapinha branca, deu um passo, e declarou que a terra na verdade gemia sob a crueldade de Tuala, e que seu próprio irmão nessa noite estava sendo pasto das hienas... Mas aquele era um singular e confuso caso! E quem lhes afiançava que eles não ergueriam as suas lanças por um impostor? A guerra era certa. Muitos ficariam fiéis a Tuala, porque mais se adora o sol que brilha, que o sol que ainda não nasceu. Necessitavam, pois, uma evidência. E quem melhor lha poderia dar que os homens das estrelas, senhores das grandes artes mágicas, que tinham trazido Ignosi ao país, e sabiam decerto os segredos?
- Se ele é o herdeiro legítimo, os homens que o trouxeram das estrelas, que o provem, fazendo um grande milagre. Só assim o povo acreditará e tomará armas por ele!
- Mas a cobra, o emblema sagrado! - exclamei eu.
- Não basta. A cobra podia ser pintada no ventre já depois de ele ser homem... Necessitamos de um milagre! O povo não se move, nem nós mesmos, sem um milagre!
Um milagre! A situação era terrível e grotesca. Exigir-se um milagre a três honestos e ingênuos mortais, que nem sequer sabiam, como qualquer prestidigitador de feira, escamotear uma noz dentro da manga! E terem os honestos mortais de fazer o milagre - ou de perder a vida!... Voltei-me para os meus companheiros, a explicar rapidamente o risível e perigoso lance.
- Parece-me que se pode arranjar - disse John, depois de um curto silêncio. - Peça a estes amigos que nos deixem sós, Quartelmar.
Abri a porta da cubata, os chefes saíram. E apenas os passos morreram na sombra:
- Temos o eclipse! - exclamou o nosso admirável John. Era o eclipse que ele descobrira na véspera, folheando o almanaque (o Livro de Bordo) e que nesse dia, às duas e quarenta minutos, devia ser visível em toda a África.
- Aí está o milagre! - afirmava John. - É anunciar aos chefes que, para lhes provar que Ignosi é o rei, e que devem pegar em armas por ele, nós faremos desaparecer o sol!
A idéia era esplêndida. O único receio é que o almanaque estivesse errado.
- Não! É um almanaque marítimo; não pode estar errado. Os eclipses são calculados matematicamente. Não há nada mais pontual que um eclipse... Durante meia hora, três quartos de hora talvez, esta região toda ficará em treva.
- Eu, por mim - disse o barão - parece-me que devemos arriscar o eclipse.
- Vá pelo eclipse!
Mandamos Umbopa buscar os chefes. Quando voltaram, cerrei a porta da cubata com um sombrio aparato de mistério, e comecei por lhes declarar, majestosamente, que nós, os homens das estrelas, não gostávamos de alterar o curso natural das coisas e mergulhar o mundo em terror e confusão... Mas, como se tratava de uma grande e santa causa, estávamos decididos a fazer um milagre.
- Escutai! Julgais vós que um homem pode soprar sobre o sol, e apagá-lo?
Os chefes olharam para mim, recuando com assombro.
- Não - murmurou um deles - não há homem que o possa fazer! O sol é mais forte que toda a terra!
- Perfeitamente - concluí eu. - Pois amanhã, depois do meiodia, nós, homens das estrelas, apagaremos o sol durante uma hora, espalharemos trevas sobre a terra, e será o sinal de que Ignosi é o verdadeiro rei dos cacuanas e que o povo deve tomar armas por ele. Será bastante este milagre?
O chefe da carapinha branca abriu os braços para nós, esgazeado:
- Gentes das estrelas, senhores das grandes artes, esse milagre será mais que bastante!
- Bem. Tereis o milagre. Agora Infandós, que é experiente, diga o momento em que mais convém que nós apaguemos o sol.
- Apagar o sol! - murmuravam os chefes entre si. - A grande lâmpada! O pai de tudo, que brilha eternamente!
- Fala, Infandós!
- Meu senhor, é na verdade um milagre espantoso que vós prometeis! Mas enfim... O melhor momento é o da Dança das Flores, que há de logo começar ao meio-dia. As mais lindas raparigas de Lu estão lá, para dançar. E aquela que Tuala achar mais linda de todas é, segundo o costume, morta por Escraga em sacrifício aos Silenciosos, as figuras de pedra que estão além na montanha vigiando. Que os meus senhores nesse momento apaguem o sol, salvem a rapariga, e o povo acreditará!
- O povo na verdade acreditará! - exclamam todos os chefes.
- A duas milhas de Lu - continuou Infandós - há uma colina em forma de meia lua, que é realmente uma fortaleza, onde estão aquartelados o meu regimento e três outros que estes chefes comandam. Mas podemos arranjar de modo que, ainda esta manhã cedo, marchem para lá três ou quatro regimentos dos mais fiéis à minha vontade. E se os meus senhores apagarem com efeito o sol, eu poderei, a favor da escuridão, fazê-los sair do terreiro real e da cidade, e levá-los para essa fortaleza, onde ficarão a salvo e de onde começaremos a guerra contra o rei.
- Está entendido - resumi eu. - Agora ide, que queremos dormir e depois combinar com os espíritos!
Com longas reverências, Infandós e os chefes deixaram a nossa aringa. O sol ia nado.
- Oh meus amigos - exclamou Ignosi, apenas eles partiram. - É certo que podeis fazer esse milagre, ou estáveis vós ganhando tempo e soltando no ar palavras vãs?
- Parece que não nos há de ser difícil, meu Umbopa, quero dizer, meu Ignosi - declarei eu sorrindo.
- É espantoso! Apagar o sol... E, todavia, sois ingleses e o inglês tudo pode! Mas ah, se vós fizerdes isso por mim, o que não farei eu por vós?
- Uma coisa já tu nos podes prometer, Ignosi! - acudiu gravemente o barão. - É, se chegares a ser rei com o nosso auxílio, acabar com as "farejadeiras de feitiços", com matanças como as desta noite, e não consentir que homem algum seja condenado sem provas de crime, e sem ter sido julgado pelos doze mais velhos do lugar.
Era o júri, santíssimo Deus! Era a nobre instituição do júri, que este digno barão queria implantar no centro selvagem da África! Não há senão um liberal inglês, para estas esplêndidas imposições de civilização e de ordem. Com razão hesitou o astuto Ignosi! Com razão conservou longo tempo dois dedos sobre a testa, calculando. Por fim, num rasgo de generosidade ou de condescendência:
- Os costumes dos pretos não se podem moldar pelos costumes dos brancos. Contudo, uma coisa te prometo, Incubu! É que não haverá no meu reino, nem matanças de festa, nem execuções sem julgamento. Está contente? O barão apertou-lhe a mão em silêncio.
Daí a pouco estávamos estendidos nos leitos de folhas secas, e profundamente dormimos, até que Ignosi nos acordou às onze horas. O nosso primeiro cuidado foi instintivamente correr fora da cubata, olhar para o sol. Nunca esse divino astro me pareceu tão brilhante e tão seguro da sua luz. Nem um sinal de eclipse! Uma radiância firme, absoluta, que nenhum movimento dos corpos celestes parecia poder alterar!
- Pois, meu digno astro - murmurei eu, ousando interpelar diretamente a fonte de toda a vida - se continuas assim, todo o dia, acabas, sem querer, com três honrados homens! Depois de almoçar, um sólido e valente almoço que nos amparasse na crise iminente, revestimos as cotas de malha, afivelamos os cinturões de cartuchame, e de outros modos nos apetrechamos para a grande dança. E ao meio-dia para lá voltamos os passos que a inquietação interior e a certeza do perigo, não permitiam que fossem nem bem alegres nem bem ligeiros!
O terreiro real oferecia, nessa manhã, um aspecto bem diverso e onde na véspera reinara o horror, transbordava agora a graça. Em lugar de fuscos e duros guerreiros, todo o espaço estava ocupado por longas filas de raparigas cacuanas, escuras também, é verdade, mas lindas, pelas formas, a expressão, a viçosa mocidade. Toilette, não tinham nenhuma nem mesmo o pano, a tanga da África civilizada; mas salvavam esta encantadora deficiência pelo franco luxo das flores. Todas traziam na cabeça uma coroa de flores; grinaldas de flores, grandes como festões, envolviam-lhes a cinta; e cada uma segurava nas mãos uma palma verde e um lírio branco. Nos escabelos de honra já estava o rei acompanhado por Infandós, Escraga, guardas emplumados e a sinistra Gagula. Reconhecemos também, de pé, por trás dele, alguns dos chefes que nessa noite tinham conosco conspirado.
Tuala acolheu-nos com muita cordialidade ostensiva, dardejando ao mesmo tempo sobre Umbopa um olhar sangrento e mau.
- Bem-vindos, homens das estrelas, bem-vindos! Vedes hoje aqui coisas diversas; mas não tão belas, não tão belas! Beijos e festas de mulheres são doces; mas é mais doce o brilho das lanças e o cheiro do sangue. Olhai em redor, gentes das estrelas; e se quiserdes casar nesta terra, escolhei, escolhei... Podeis levar destas raparigas as melhores, e tantas quantas pedirem os vossos desejos.
O nosso John, extremamente sensível e amoroso como todos os marinheiros, deu logo um passo, teve um sorriso, como se preparasse a aceitar e a recrutar ali, para ocupar o seu coração na terra dos cacuanas, um serralhozinho de donzelas escuras. Mas eu, homem idoso e experiente, receando as complicações do eterno feminino, apressei-me a recusar:
- Não, Tuala, obrigado! Os homens brancos, que vêm das estrelas, só se ligam às mulheres brancas que estão nas estrelas...
Tuala riu:
- Está bem, está bem... Nós temos um provérbio cacuana que diz: "Aproveita a que está perto, porque com certeza a que está longe te engana!" Mas talvez seja doutro modo nas estrelas... Sede pois bem-vindos, e comece a dança!
Um grande tantã ressoou, acompanhado por finas flautas decana em que três rapazinhos sopravam agachados no chão. As fileiras de raparigas avançaram, cantando um canto muito lento e doce, e fazendo ondular nas mãos as palmas e os lírios. Era um grande bailado bárbaro, infinitamente pitoresco. As raparigas ora saltavam brandamente sobre as pontas dos pés, numa graciosa languidez de gestos; ora, enlaçadas aos pares, redemoinhavam vivamente; ora, fileira contra fileira, simulavam uma batalha, tendo por armas os ramos de palma; ora, ajoelhando em reverência, ofertavam os lírios ao rei. Depois eram grandes marchas bem ordenadas em que o canto tomava um tom triunfal; e logo uma alegre confusão, numa grulhada melodiosa, com um vivo saltar de corpos ágeis que espalhava pelo ar as pétalas das flores desfolhadas. Por fim o bailado parou; e uma esplêndida rapariga, de olhos radiantes, mais airosa que uma Diana caçadora, avançou devagar, e rompeu numa dança estranha, cheia de graça e de brilho, em que os movimentos tudo traduziam, desde os requebros fugidios da noiva tímida, até os pulos bravos da corça ciosa... Assim dançou longamente; os seus olhos cada vez mais rebrilhavam; a grinalda .que lhe envolvia a cinta desfizera-se flor a flor; e todo o corpo adorável lhe reluzia ao sol, como um bronze umedecido. Por fim, cansada, sorrindo, recuou até ao grupo das bailadeiras onde ficou de olhos baixos, a refrescar-se com o seu ramo de lírios. Veio então outra, muito alta, dançar; e outra depois, e muitas ainda, todas belas e hábeis; mas nenhuma como a Diana caçadora tinha beleza, graça e consumada arte.
Orei ergueu a mão, e o tantã cessou.
- Gentes das estrelas - disse ele - qual delas achais mais linda?
- A primeira - respondi eu irrefletidamente.
E logo me arrependi, lembrando o que anunciara Infandós que a mais linda tinha de perecer, sacrificada aos ídolos. Ao mesmo tempo deitei um olhar ao sol, que continuava a refulgir com uma teima desesperada.
Tuala, no entanto, sorria:
- Os vossos olhos, gentes das estrelas, vêem então como os meus. A primeira é a mais bonita. E mau é para ela, que tem de morrer!
- Tem de morrer! - ecoou Gagula que parecera dormitar durante a festa, e acordava, já interessada, desde que pressentia sangue e dor.
- Morrer! - exclamei eu, sorrindo também, como se não acreditasse. - Por que, oh rei? Ela dançou bem; a todos agradou. Além disso, é tão menina e linda. Seria cruel e estranho recompensá-la com a morte.
A fera afetou uma simpatia, que, nele, arrepiava:
- Também o lamento, mas é o costume do meu reinado. Os Silenciosos, que estão além na montanha vigiando, precisam receber o seu tributo. Há uma profecia do nosso povo que diz: "O rei, que no dia da grande dança não sacrificar aos Silenciosos a mais linda das donzelas, perecerá, e com ele a sua casa". Por não ter cumprido a ordem de "cima" caiu meu irmão e em seu lugar reino eu... Ide (voltando-se para os guardas) trazei a virgem! E tu, meu Escraga, aguça a lança! dois da guarda real marcharam para a pobre e doce rapariga, que desfolhava nervosamente as pétalas do seu lírio branco. De repente, e só então, ela pareceu compreender a fatalidade que a perdia, por ser formosa e pura. Deu um grito, tentou fugir. Duas mãos fortes agarraram-na e trouxeram-na, toda em lágrimas e debatendo-se, para diante de Tuala.
- Que nome é o teu, linda moça? - ganiu a horrível Gagula. - Não respondes? Queres que o filho do rei tenha de erguer a lança, sem saber quem tu sejas?
A isto, Escraga deu um salto com sofreguidão, alçando a sua imensa azagaia. Vendo o ferro luzir, a pobre rapariga cessou toda a luta entre as mãos fortes dos guardas. E com grandes lágrimas que lhe caíam, ficou toda, toda a tremer. O medonho Escraga teve uma risada bestial:
- Como ela treme, como ela treme diante da minha força!
- Ah canalha, se te apanho a jeito! - rosnou o capitão, apertando na mão o revólver. No entanto Gagula, com atroz zombaria, animava a desgraçada:
- Sossega! Dize o teu nome. Vem, filha! Não temas!
- Oh mãe! - balbuciou a pobre criatura entre soluços, numa voz que desfalecia. - Oh mãe! O meu nome é Fulata, e sou da casa de Suco. Mas por que hei de eu morrer, eu que não fiz mal nenhum?
- Tens de morrer - prosseguiu a hedionda velha - para contentar os que vigiam além na montanha. Mais vale dormir de noite que trabalhar de dia. Mais vale estar quieta e morta, que agitada e viva. E tu, filha ditosa da casa de Suco, vais morrer às mãos reais do filho do nosso rei. Olhei ansiosamente para o sol. Nada! Um brilho impassível, que achei quase cruel!
No entanto a pobre Fulata, apertando desesperadamente as mãos, suplicava, com gritos de angústia:
- Oh mãe, oh rei, não me deixeis morrer!... E eu tão nova! Pois nunca mais hei de ver a aringa de meu pai? Nem embalar meus irmãos pequeninos? Nem cuidar dos cordeiros doentes? E por quê? Mandaram-me aqui para dançar e eu dancei! O meu noivo está lá fora à minha espera! Minha mãe ficou sentada debaixo das machabeles até que eu volte para mungir as vacas... E por que herde eu morrer? Nunca fiz mal nenhum; e no terreiro da nossa casa deixava sempre cair grãos de aveia, para os pássaros levarem aos ninhos...
Nas próprias faces dos guardas e dos chefes, perfilados junto a Tuala, se espalhava um ar de piedade. Muitas raparigas soluçavam baixo. E subitamente, o Capitão John, sem se poder conter mais, arrancou o revólver da cinta e fez um movimento tão saliente, de tão clara intervenção que a rapariga viu; num relance compreendeu... Desprendendo-se dos guardas, que a seguravam frouxamente, veio arrojar-se aos pés de John, abraçando-lhe as pernas nuas:
- Oh pai branco, que vens das estrelas! - gritava ela. - Deixa acolher-me à sombra da tua força... Salva-me destes homens, e de Gagula, a mãe que é tão cruel... Torneia olhar para o sol... E com um alivio, uma alegria tão intensa que ainda hoje o recordá-la me aquece o coração, vi uma linha de sombra, muito fina ainda, surgindo à orla do disco radiante!
- O eclipse! - gritei eu para os outros. - John, conserve aí a rapariga atrás! E armas na mão, rapazes!
Imediatamente, avancei para o rei:
- Tuala - exclamei com firmeza e arrogância. - Nós, gentes das estrelas, não podemos consentir nesta maldade! Tal não será!
Deixa que a rapariga volte para a sua morada! Tuala ergueu-se com um pulo brusco de surpresa e de cólera. E dos chefes, das agitadas filas de mulheres, subiu um murmúrio que era de assombro, e talvez de esperança.
- Não consentis! - bramiu o rei, com o olho sangrento dardejando lume. - E quem és tu, perro branco, para vir latir contra o leão na sua caverna? Tal não será! E como o podes tu impedir? Vai talvez a tua vontade prevalecer contra a minha força? Escraga, mata a criatura! E vós guardas, olá, agarrai esses homens!
Uma multidão de soldados surgiu, correndo, detrás da aringa real. O barão, Umbopa e o capitão (com Fulata agarrada a ele) vieram pôr-se ao meu lado, de carabinas apontadas. Outro olhar meu ao sol! A linha de sombra, lenta e gradualmente, avançava sobre o globo rutilante. Com esplêndida confiança, ergui a mão, bradei:
- Parai! Nós, os filhos das estrelas, decidimos que a rapariga não morrerá! E se alguém ousar ir contra a nossa vontade, ou avançar contra nós um passo, nós, os mágicos das grandes artes, apagaremos o sol e mergulharemos o mundo em trevas!
O efeito foi tremendo. Os soldados estacaram. E Escraga ficou diante de nós, com a lança erguida no ar, como uma figura de pedra. Mas Gagula erguera-se, sacudindo os braços com furor:
- Ouvi, ouvi o grande mentiroso, que diz que apaga o sol como um lume da terra! Pois que o faça, e a rapariga irá livre para a sua morada! Mas se o não fizer, oh rei, que ele morra com ela, e com ele morram os cães malditos que vêm latir contra ti! Sem mais, ergui a mão solenemente para o sol (movimento que logo imitaram John e o barão) e rompi a bradar. Não me lembro já das coisas absurdas que tumultuosamente atirei ao divino astro. Recitei-lhe versos de Shakespeare, pedaços da Bíblia, provérbios, datas, nomes de firmas comerciais que me acudiram, as ruas da cidade do Cabo, que sei eu? Tudo o que me afluía aos lábios, e que fosse em inglês, na língua mágica. Ousei mesmo espantosas familiaridades com o respeitável centro do sistema planetário. Gritava: "Anda-me assim, sozinho da minha alma! Pra diante, valente! Deixa avançar essa rica sombra! Ah que estás um catita, meu astro! Mais, mais!..."
E o sol obedecia! A mancha escura, nítida e convexa, avançava, comia a luz imortal. Um grande sussurro de terror agitava a multidão. Volvi então a falar cacuana, livremente:
- Vê tu, oh rei! Vê tu, Gagula! Vede vós, oh chefes! Mentem então os homens das estrelas? Quisestes a treva eterna, ei-la que vos vem tragar!... Oh sol, pai de tudo, reluzente e triunfante, retira a luz, some-te à nossa ordem, mata o mundo com a escuridão e frio, e que, sem ti, parem para sempre estes corações cruéis!... O sol vai morrer! Gritos de terror ressoavam já no terreiro. As mulheres, caídas de joelhos, choravam, implorando misericórdia. E o rei, calado, tremia.
Só Gagula resistia ao pavor:
- Vai passar, vai passar! - uivava ela. - Eu já vi o sol assim. Ninguém o pode apagar. Ficai quietos! Sossegai! A sombra vem e vai... Eu já vi, eu que sou a mais velha, e conheço os segredos!
Eu por mim animava os companheiros:
- Vá, rapazes! Já não sei que hei de dizer ao sol. Veja se se lembra de alguns versos, barão. Tudo serve, até pragas!
E John, admirável marinheiro, rompeu então a praguejar. Foi sublime. Teve todas as pragas clássicas, e teve-as inéditas. Nem eu supunha mesmo que a Humanidade possuísse, no seu vocabulário, uma tal riqueza de blasfêmias! O que o Rei do Dia ouviu!
No entanto a mancha negra alastrava. Estranhas, sinistras sombras flutuavam no ar. Uma triste quietação descia sobre a terra. Todos os pássaros se tinham calado. Ao longe os cães uivavam.
E a mancha crescia, crescia... A atmosfera tornara-se espessa. Já mal distinguíamos as faces cruéis da gente real. Esmagadas de temor, as mulheres nem tugiam. Por fim John parou a torrente de invectivas. E o que restava do sol parecia uma luz agonizante.
- O sol morreu! - berrou de repente Escraga. - Os bruxos das estrelas mataram o sol! Tudo vai morrer nas trevas!...
E fosse o delírio do medo ou da raiva, ergueu a azagaia, arremessou-a a toda a força contra o peito do barão. Mas a cota de malha repeliu o ferro. E antes que ele pudesse revibrar o golpe, o barão arrancara-lhe a lança das mãos e passou-lha através do coração. Com um uivo hediondo, Escraga tombou morto.
Quase nada restava da luz. Era como se tudo acabasse conjuntamente, o sol, o mundo, e a descendência do rei! Num terror indizível, a multidão de raparigas largou fugindo, em confusão e gritos, para as portas da aringa. Foi um pânico estonteado. Os guardas, arrojando as armas, galgavam as estacadas. Os chefes, aos saltos por cima dos escabelos, desapareciam como lebres. E por fim, o próprio e ferocíssimo rei, com Gagula atrás, arremeteram para as cubatas, ganindo num pavor vil. Uma debandada que nos deixou sós, eu, os amigos, a pobre Fulata ainda agarrada a John, Infandós, os chefes que conspiravam, e o cadáver de Escraga.
- Chefes! - gritei eu. - Eis o milagre que tínhamos prometido. Sabei agora que Ignosi é o rei único e forte. O feitiço está trabalhando. Corramos para a cidadela que dissestes, enquanto a treva dura!
- Vinde! - exclamou Infandós, segurando-me pela mão. - E vós todos segui! O dia é nosso!
Ao chegarmos à porta da aringa, a luz findou inteiramente. Agarrados uns aos outros pelas mãos, com Fulata no meio, fomos tropeçando através da escuridão. Dentro das senzalas ouvíamos gemidos de terror. E para o aumentar, lançávamos a espaços, através da treva, um lúgubre brado de revolta e de guerra:
- Morte a Tuala! |