HENRY RIDER HAGGARD
As Minas de Salomão

Capítulo VI
Penetramos no Reino dos Cacuanas

Toda essa tarde trilhamos a larga, magnífica estrada que seguia infindavelmente para o lado de noroeste. Alguns dos negros marchavam adiante (uns cem passos) como vedetas. Outros seguiam levando as nossas bagagens. Nós íamos no meio, entre Infandós e Escraga.

Pouco a pouco, Infandós e eu descaímos numa palestra familiar e amigável. O velho era esperto e loquaz.

- Quem fez esta estrada, Infandós?

- Foi feita há muito tempo, meu senhor. Ninguém sabe quando; nem mesmo uma mulher que tudo sabe, Gagula, que tem vivido através de gerações... Já ninguém pode fazer estradas assim... Mas o rei não consente que se desmanche, nem que lhe cresça a erva por cima.

- E há quanto tempo vivem aqui os cacuanas, Infandós?

- A nossa gente, meu senhor, veio para aqui de grandes terras que estão para além (indicava o Norte) há mais de dez mil milhares de luxa. Para baixo não puderam seguir, segundo diziam nossos avós, que o disseram a nossos pais, e segundo conta Gagula, a mulher que tudo sabe. Não puderam por causa das altas montanhas que estão em redor, e do deserto onde tudo morre. De modo que, como a terra era fértil, aqui assentaram; e tantos e tão fortes se tornaram que, agora, quando Tuala, nosso rei, chama os seus regimentos, o chão treme todo com o seu peso, e até onde a vista alcança só se vêem plumas de guerreiros e lanças.

- Mas se a terra está murada de montanhas e se não tendes vizinhos, para que são tantos soldados?

- A terra está aberta para além (e indicava o Norte). E às vezes descem de lá multidões que não sabemos quem são, e que nós destruímos. Já correu a terça parte de uma vida de homem desde a última guerra. Depois houve outra guerra, mas foi entre nós, irmão contra irmão.

- Como foi isso, Infandós?

Infandós começou então uma dessas histórias de pretendentes e de guerras dinásticas, que abundam em todos os continentes. O pai dele, Capa, que era o rei dos cacuanas, tivera por primeiros filhos, da primeira mulher (ele, Infandós, era filho de uma concubina) dois gêmeos. Ora a lei dos cacuanas manda que, de dois gêmeos reais, o mais fraco seja sempre destruído. Mas a mãe, por piedade e amor, escondeu o gêmeo mais fraco, que se chamava Tuala, e, ajudada por Gagula, educou-o em segredo numa caverna. Quando Capa morreu, o gêmeo mais velho, que se chamava Imotu, foi portanto rei; e logo depois teve da sua mulher favorita um filho por nome Ignosi. Ora por esse tempo passara a guerra com os povos do Norte; os campos não tinham sido semeados; veio uma fome; e havia grande miséria e dor entre o povo, que, como uma fera esfaimada, rosnava, procurando com os olhos sangrentos alguma coisa em redor para despedaçar. Foi então que Gagula, a mulher que tudo sabe e que não morre, rompeu a dizer que os males todos provinham de que Imotu reinava sem ser rei. Imotu, a esse tempo, estava doente na sua cubata, com uma ferida.

Começou a correr um clamor entre o povo. Por fim Gagula, um dia, reúne os soldados, vai buscar Tuala, o gêmeo mais novo que ela e a mãe tinham escondido nas cavernas, apresenta-o ao povo, descobre-lhe a cinta, e mostra a marca real com que entre os cacuanas os reis são marcados ao nascer, uma tatuagem representando uma cobra, que se enrosca em torno do ventre real, e vem reunir, sobre o umbigo real, a cabeça e o rabo. E ao mesmo tempo, Gagula gritava: "Eis o vosso verdadeiro rei, que eu salvei e que escondi, para ele vos vir salvar agora!" O povo, tonto de fome, ignorando a verdade, espantado com a evidência da marca real, largou a bradar:

"Este é o rei! Este é o rei!" Alguns sabiam bem que não, e que neste só havia impostura. Mas nesse momento, ouvindo os alaridos, o Rei Imotu sai doente e trôpego da sua cubata, com a mulher e com o filho que tinha três anos, a saber por que vinham tantos brados e por que pediam eles "o rei!" Imediatamente Tuala, o irmão, corre para ele e crava-lhe uma faca no coração! E o povo, que as ações decididas e bruscas sempre fascinam, gritou logo: "Tuala é rei! Tuala provou que é rei!" Diante disto a pobre mulher de Imotu agarrou o filho, o seu Ignosi, e fugiu. Ainda apareceu, passados dias, numa arroga, pedindo de comer. Depois viram-na seguir para os lados dos montes e nunca mais voltou.

- De modo - observei eu interessado por esta página de história negra - que Tuala não é o verdadeiro rei.

O velho respondeu com prudência:

- Tuala, o grande, é rei. Mas se Ignosi vivesse ainda, só esse tinha o legítimo direito de reinar sobre os cacuanas. A cobra sagrada foi-lhe marcada em torno da cinta. O rei é ele. Somente decerto há muito que Ignosi morreu...

Casualmente, nesse instante, voltando-me para falar aos camaradas que marchavam atrás, esbarrei com Umbopa, que quase me pisava os calcanhares, absorto naquela história de Imotu e de Ignosi, com uma curiosidade, um interesse que lhe punham nos olhos um brilhar desusado, lhe davam a expressão de quem de repente lembra coisas vagas, remotas, semi-esquecidas, perturbadoras. Nessa ocasião permaneci indiferente. Mas, depois, através da jornada, muitas vezes pensei naquela ansiosa, esgazeada curiosidade do zulu.

No entanto já trilháramos algumas fortes milhas de estrada. As montanhas de Sabá ficavam para trás, envoltas nos seus místicos véus de névoa. E o país cada vez se oferecia mais formoso e mais rico.

Ao começo da tarde avistamos enfim uma grande povoação que, segundo Infandós nos declarou, pertencia ao seu comando militar e continha uma vasta guarnição. O velho guerreiro mandara mensageiros adiante, correndo, num passo de gazela, a anunciar a nossa vinda. E quando nos aproximamos da aldeia, descobrimos, com efeito, saindo das portas e marchando ao nosso encontro, densas companhias de soldados.

O barão tocou-me no braço, com um receio que "as coisas se apresentassem desagradavelmente". Infandós decerto compreendeu, pelo tom, pelo franzir de sobrancelhas do barão, o sobressalto que o tomara (e a mim) porque acudiu ansiosamente, com redobrada reverência:

- Que os meus senhores não suspeitem de mim! Aquele é um dos regimentos que eu comando! Mandei-o sair e desfilar, para prestar as honras aos que vêm do mundo das estrelas...

Esbocei um gesto e um sorriso de soberana indiferença. Realmente estava bem inquieto!

A povoação ficava à direita da estrada, separada dela por um declive de terreno areado e bem pisado, onde o regimento se formara em parada. Havia ali talvez uns três mil homens. E quando nos acercamos, pudemos ver, com admiração e assombro, de que esplêndida, de que formidável raça eram estes guerreiros cacuanas! Nenhum media menos de seis pés de altura; e todos veteranos de quarenta anos, ágeis, experientes, prodigiosamente robustos, endurecidos por exercícios perpétuos. Sobre a cabeça todos traziam a coroa de altas e pesadas plumas negras, sempre tremendo ao vento. Em volta da cinta pendia-lhes um saião feito de rabos de boi, muito juntos uns aos outros e brancos; e no braço esquerdo sustentavam escudos redondos de ferro, recobertos de couro pintado de branco. Por armas tinham uma azagaia semelhante à dos zulus e três facas (uma no cinto, duas em presilhas no escudo) facas enormes que eles chamam tolas e que arremessam a distâncias de cinqüenta jardas e mais,com uma certeza terrível.

As companhias conservavam-se mais imóveis que estátuas de bronze. Mas, à medida que íamos passando em frente delas, cada oficial (que se distinguia por uma capa de pele de leopardo) dava um sinal; e os homens, brandindo a azagaia no ar, soltavam a saudação real, a grande voz: Krum! Krum! Krum!

Assim penetramos na povoação ao rumor de aclamações. A aldeia devia ter uma milha de circunferência; e era defendida por um largo fosso e por uma alta estacada feita de troncos de árvores. Na porta central, do lado da estrada, havia uma ponte levadiça.

Parecia uma aldeia admiravelmente bem ordenada. Ao centro, entre árvores, corria uma ampla, extensa rua, cortada em ângulos retos por outras mais estreitas, formando séries de quarteirões, cada um dos quais alojava uma companhia. As cubatas, redondas, feitas de uma grossa verga entrelaçada, findavam, à maneira das dos zulus, por tetos de colmo em forma de zimbório agudo; mas, diferentes nisto das dos zulus, tinham uma porta larga e fácil, e eram cercadas por uma varanda, cujo chão de cal dura rebrilhava ao sol. Os dois lados da grande rua apinhavam-se de mulheres, que tinham corrido de todas as cubatas para nos admirar. Era uma bela raça de mulheres, altas, airosas, esplendidamente feitas, com o cabelo mais ondeado que encarapinhado, as feições por vezes aquilinas, e os beiços sempre finos. Mas o que mais nos impressionou foi o seu ar grave e sério. Nem pasmo selvagem, nem risos, nem injúrias, ao verem-nos desfilar, tão estranhos e diferentes de todos os homens que até aí tinham encontrado. Nem mesmo a singular figura de John lhes arrancou uma exclamação; apenas os largos olhos negros se lhes arregalavam para as pernas níveas do pobre amigo que, roído de vergonha, praguejava baixo.

Quando chegamos ao centro da aldeia, Infandós parou em frente de uma espaçosa e rica cubata, cercada de dependências menores, entre arvoredo. E com palavras grandiosas, à maneira dos zulus, ofereceu-nos a hospitalidade:

- Aqui habitareis, meus senhores. E não tereis de apertar o ventre com fome! Em breve vos traremos mel, leite, uma ou duas vacas, alguns carneiros. Não é muito, oh Espíritos! Mas é dado por corações, que se regozijam de vos ver.

- Bem, bem, Infandós - murmurei eu. - O que precisamos, sobretudo, é descansar, fatigados da nossa descida através dos espaços e dos reinos do ar.

A cubata era muito confortável, com erva aromática espalhada no chão, grandes peles servindo de leitos, e vistosos cântaros para a água. Daí a pouco, entre cantos e risos, apareceu à porta um bando de raparigas trazendo leite, mel em covilhetes, frutas em cestos; e atrás dois rapazes seguiam, arrastando um vitelo pelos cornos. Um dos rapazes, tirando a faca do cinto, matou o vitelo de um golpe; e logo o outro, ágil e destramente, o esfolou e retalhou.

Ajudado por uma das raparigas (que era extremamente bonita) Umbopa passou a cozer a carne numa panela de barro, sobre uma alegre fogueira acesa à porta da cubata; e nós mandamos convidar Infandós e Escraga para partilharem do nosso repasto. Quando entraram, notei que, para comer, não se encruzavam no chão à maneira dos zulus; mas se sentavam em pequenos bancos, que abundavam na cubata encostados às paredes. O jantar foi longo e afável. O velho guerreiro todo ele exibia doçura e respeito. Mas o rapaz Escraga parecia olhar para nós, e para cada um dos nossos gestos, com singular desconfiança. Talvez, ao ver que nós comíamos, bebíamos, e tínhamos as necessidades de qualquer cacuana, começava a suspeitar da nossa origem divina. Não me agradou este sentimento, tão real e lógico. Que nos poderia assegurar as vidas, perdidos entre aquelas turbas negras, senão o terror supersticioso?

Depois de jantar acendemos os cachimbos, o que encheu os nossos amigos de espanto. Na terra dos cacuanas, como na dos zulus, a planta do tabaco cresce em abundância, mas eles só a sabem usar torrada e seca, pulverizada. Só conhecem o rapé.

No entanto conversamos a respeito da nossa jornada. Infandós já tudo organizara para que ela continuasse na madrugada seguinte, mandando adiante emissários a prevenir Tuala da nossa chegada ao seu reino. Tuala estava então na sua grande cidade de Lu, preparando-se para a revista de tropas, a dança das flores e caça aos feiticeiros, que constituem a maior solenidade religiosa e militar dos cacuanas, na primeira semana de junho. E segundo afirmava Infandós, nós devíamos (a não ser que nos detivessem os rios transbordados) entrar as portas de Lu ao fim de dois dias de marcha.

Depois, como começavam a luzir as estrelas e a aldeia ia caindo em silêncio, os nossos amigos deixaram a cubata. E três de nós atiraram-se logo para cima dos leitos de peles, enquanto outro, com as carabinas carregadas, velava, no seu turno de sentinela, para prevenir as traições. Mas essa primeira noite na terra dos cacuanas foi muito calma e segura.

 
Tradução de Eça de Queiroz