Um cheiro de toucinho percorre a pequena casa, invadindo as narinas do velho, juntamente com o odor da creolina. Para espantar os bichos-de-pé e pulgas. O cachorro abana preguiçosamente o rabo e fica atento aguardando o dono. Pronto. O velho calça as chinelas, depois de afastar a coberta de penas e de abandonar o colchão de crina, acompanhado de perto pelo cusco. O soalho, de terra batida, já foi varrido e a poeira acomodada pela mão da mulher espargindo água. Um gato brasino emite um fsst, não muito convicto, para o velho cachorro, mantendo o hábito de muitos anos.
Jacintho percorre com desenvoltura o caminho até o puxado ao lado da cozinha. Com gestos precisos, derrama a água límpida e fresca da bilha na bacia para a higiene matinal. Lava o rosto com vigor e faz um bochecho, cuspindo de lado. Em algum lugar próximo dali, a vaca reclama a hora de esvaziar o úbere. Mas Corina já deve estar a caminho, cuidando dos quefazeres cotidianos.
Na mesa tosca, está pronto o café. O toucinho fumegante, a caneca de folha, a colher de aço areada com cinza, o mel cheiroso, o leite quente, ao lado do pão e da manteiga caseiros, aguardam seu comensal. Quirino, o cachorro espera, dissimulado, o seu quinhão. Depois o som dos passos pesados e da respiração forte da mulher, ouvido por Jacintho, é momentaneamente substituído por seu vulto gordo, adivinhado, acomodando-se na cadeira, entre suspiros. Ele não precisa enxergar, para perceber a presença de Lauro ali, entre os dois, naquela foto amarelecida sobre a cristaleira. Seu menino. Na foto, o sorriso banguela e cheio de sonhos é emoldurado pelo pavilhão nacional e o mapa-mundi. O uniforme branco e a gravata azul-marinho, até hoje guardados entre naftalinas e cadernos escolares amarrados por uma fita mimosa de cor azul desbotada; os cotovelos apoiados na escrivaninha da escola. Conhecem todos os detalhes. Ao lado outro retrato, exibindo um rapaz de ar grave, em uniforme do exército, pernas abertas, mosquetão cruzado no peito. O plástico que o protege não escapou às titicas de moscas de todos aqueles anos.
Na parede, a última folhinha, com um Coração de Maria estampado, enviada pelo filho. Vai ficar ali até ele voltar. Como as cartas garatujadas, esperando que alguém as leia para eles. Quem sabe o menino mesmo. Um maço delas, em tinta descolorida, presas por um barbante engordurado. Menino bom. Fazia bem uns cinco anos que fora prestar serviço. De lá para cá vários escritos, algum dinheiro cuidadosamente oculto dentro daquela galinha azul de vidro ordinário. Gastar onde? Ficasse lá para o menino. Corina, de esguelha, como se fosse possível o marido apanhá-la em flagrante, percorria com minúcias os retratos, num ritual saudoso de amor represado, mil vezes repetido. Soubesse desenhar, reproduziria com fidelidade aquela foto. Até os patinhos nadando ao fundo, e a ilha artificial. O silêncio é bruscamente rompido por ela:
- Acho que até amanhã, o tempo desanda. - A voz pretende soar firme, contrastando com a mão a retirar um cisco hipotético da toalha bordada em ponto-de-cruz.
- Não faz nem dez dias mal-cheios, chovia também. - A conversa é a mesma repetida incessantemente desde o desaparecimento do filho.
Corina desvia o olhar posto na cristaleira e anima-se, súbito, improvisando outra fala:
- A Bisteca, aquela vaca sonsa, deve estar prenhe.
- Como é que você sabe? - um lampejo fugaz corre nos olhos de Jacintho.
- Palpite. E também por causa do Veludo. Não larga dela por nada e, voce já conhece, quando está para vir cria nova o bicho fica bobo. Parece gente. - E seus olhos escorregam pela enésima vez, naquele dia, para o rosto impresso no papel. Como estaria, agora? E onde?
A tardinha, sob o ar abafado, pinta de vermelho o mato seco. A última chuva dominou o calor rebelde. Depois, pachorrenta, desistiu e deixou o sol tomar conta e abrasar de novo a atmosfera, dando aquele tom ao solo e criando imagens no ar.
Os dois velhos sorvem o mate doce sentados à porta da casa. Uma brisa aproxima-se anunciada pelas folhas em redemoinho, lá adiante, bem onde a vista de Corina alcança. Quando Lauro era pequeno, afirmava haver um saci dentro de cada redemoinho. O ventinho jovem chega, como quem não quer nada, ganhando força à medida que encurta seus passos em direção à casa. Na linha de costura entre o céu e a terra, uma nuvem preguiçosa se enovela, passando do rubro ao chumbo. Os animais se agitam, inquietos e pressagos. É a tempestade, Corina acomoda a cuia ao lado da chaleira de ferro e se arrasta com esforço, recolhendo as roupas, àquela altura executando passos de uma vertiginiosa coreografia no varal. Depois sai em direção ao campo para verificar se os animais estão em segurança. É quando percebe o vulto, ainda impreciso, tomando forma alhures. Leva a mão ao peito: Quem sabe o coração acalma?
Jacintho de pé à soleira da porta, atento como um cão de caça, adivinha uma presença. Homem e montaria aproximam-se, formando um quadro singular engastado entre nuvens escuras. Corina dissimula a ansiedade correndo, com insuspeitada leveza, rumo ao cercado das galinhas. Mantém a atenção rigidamente ligada ao recolher das aves. Jacintho, ereto e expectante, permanece à porta. Um trovão ribomba ao longe iluminando cavalo e cavaleiro mas o homem, chapéu desabado, mantém o passo vacilante do animal.
O flash de um relâmpago imobiliza o tempo e a paisagem, nada mais se move e a mata, palpitante, aguarda a chuva redentora. Imitando o momento, o homem estaca, apeia amarra o cavalo e abre a porteira. Jacintho, dominando velhos anseios, serve a cuia, tenso. Corina, olhar apaziguado, busca mais uma cadeira. A chuva, por enquanto, só teve início nos olhos do homem, face sulcada e sofrida, olhar grávido de saudade. Estende a mão, trêmulo, e apanha a cuia e os dedos magros do pai. Entre eles, o silêncio. Às lágrimas do homem, juntam-se o pranto silencioso dos velhos e os primeiros pingos da chuva abençoada. O cheiro da terra úmida é uma promessa. Do escuro, vez a vez iluminada por um corisco, a foto contempla o quadro. |