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MARIZA
MAGALHÃES

 

Para Roberto Drummond
(in memorian)

 

 

(...) "Assim vou entrando em meu nada como já entrei em minha sombra. Tal vez não seja intrínseca luzintrínseco pensar, mas sombra interior emorte interior. Ah! Mas não acreditarei sempre (...) que minha entranha não é treva, é de luz..."
Jorge Luis Borges, Textos Recobrados

O fio de Ariadne
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Como o céu a revestir-se de chumbo no inverno, pouco a pouco, o sorriso escancarado foi perdendo o jeito, como roupas torcidas no varal: limpas, as indefectíveis rugas bem marcadas. O riso não ecoava mais nos jardins, e a gargalhada indecorosa estancara de vez alhures ou nos interstícios da garganta.

De imediato, nem ela percebeu a inesperada desconexão, incônscia da gravidade recente e excessiva sombreando a face e da dificuldade, cada vez maior, de desembaraçar os músculos num riso fácil. O rosto foi cobrindo-se de nuvens, e a testa deu à luz um vinco, já nascido com modos de quem fica. Primeiro raso e minguado sulco, depois uma cicatriz vetusta e permanente.

Buscava ocupar o corpo e entorpecer a mente no ato de mergulhar as mãos - já ostentando as primeiras manchas pardas no dorso - na água gelada do tanque; na mistura de detergente do balde, coalhada de roupas alvas, ou na pia generosa em suas louças desafiantes. Xícaras, mais exatamente testemunhas dos cafés, ou colheres lambidas das suas últimas doçuras.

Então, um dia ocorreu algo prenhe de corriqueirice, uma ninharia: faltou água. Não rolava nem uma esquálida gota das torneiras, e o que escasseou das bicas escorregou fácil de seus olhos, subitamente escuros e reentrantes, iguais a um poço abandonado no fundo de um quintal deserto. Ao retornar da água nas torneiras, uma curiosa conexão deu-se com os olhos da mulher. Chorou copiosamente por trinta e sete dias e trinta e oito noites, como se houvera descascado todas as cebolas do sistema solar.

O pranto passou a ser natural, chegando a permitir-lhe cumprir com todos os seus compromissos femininos e avoengos. Fazia as compras chorando com tanta naturalidade quanto cantava em festas de aniversário, as lágrimas descendo pelo rosto maquiado - de leve - de maneira a não borrar. Após o dilúvio lacrimal, uma secura deixou seu rosto estéril cobrindo-a de tristeza, numa espécie de saudade prematura do choro tormentoso. Uma melancolia enraizada alastrou-se e, então, percebeu ter perdido em definitivo a capacidade de sorrir. Quando o tentava, o máximo alcançado era um esgar bizarro e sem significado.

Foi nesse tempo que caiu prostrada sob uma carga de melancolia. Perdeu o contato com o mundo como se rompesse os laços com os sonhos. Ficou triste e pronto. E, sempre entristecida, olhos de areia fina, tecia, cosia, sovava pães e assava bolos dourados e cheirosos. Entristecendo tanto, até quase sucumbir apoiada a uma improvisada bengala, extraída de delicado pessegueiro em flor, para não desmoronar extenuada pela fadiga do não ser feliz.

As roupas sujas, agora, formando uma pirâmide colorida, impregnada de um fartum antigo. O chão crescia, laborioso, pelo efeito da poeira acumulada, enquanto do teto pendiam caprichosas rendas tecidas por aranhas aplicadas. O ferro de passar enferrujou, cobrindo-se do ar desalentado de coisa esquecida. As lâmpadas ficaram bordadas por um pó negro, e a calçada em frente à casa metamorfoseou-se em selva, resultante de um amontoado de folhas secas ou apodrecidas, onde as pernas afundavam assustadas.

Aí todos aperceberam-se do poço de melancolia em que a mulher mantinha-se submersa, imóvel por completo, no buraco nascido sob o peso do corpo no colchão viciado. Primeiro trataram de investigar possíveis causas daquele absurdo estado letárgico-merencório; amigos, quase esquecidos, deram de procurar a família num cortejo ondulante e sombrio, como espectros, em torno da mulher.

Familiares, irreconhecíveis depois de secular ausência, tentaram arrancá-la a fórceps do poço, num esforço desesperado para aliviar a própria negligência e para equilibrar a reconhecida falta por tantos anos de olvido. Em vão. Ela parecia um felino ensandecido. O marido desvelava-se a seu lado ressuscitando mortas paixões, mas ela não reagia, perdida num labirinto de pesares.

Esgotadas as tentativas caseiras familiares e da vizinhança aflita, passaram a explorar todos os recursos da medicina. E toca a bater radiografias e fotografias dos orgãos e da alma atormentada. Quem sabe o espírito adoecera.

Ao final de mil dias de tristeza - prestes a contagiar a todos irremediavelmente - a mulher teve de manter um rigoroso isolamento. Tempos depois, o médico pedia orientação ao marido, sobre se contava ou não à entristecida, tomadas as devidas precauções, o apurado quanto ao seu estado de saúde. Deliberaram por permitir, talvez o choque a trouxesse de volta da solitária ilha onde se aquartelara. Ao redor da cama, tomados de ansiedade, perceberam a gradativa mudança operada no rosto da doente quando o médico anunciou-lhe, voz contida e reticente, o tempo exato de vida: setenta e sete horas, nem um milésimo de segundo a mais.

Um sorriso desajeitado e sem prática riscou o canto da boca. Vacilante a princípio, contudo ganhando força e rasgando caminhos no rosto hirto até firmar-se afinal, pleno, transformando a face seca num lago de beleza reconquistada. E de seus olhos nasceram peixes e borboletas, sua boca pariu laranjeiras em flor, enquanto de seus dedos surgiram violetas lilás e cascatas marulhantes. O corpo diluiu-se em luz e no quarto, de súbito alvo, restou apenas o eco de uma gargalhada cristalina e o cheiro de uma brisa marinha povoada de sereias, lobos marinhos e gaivotas.