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MARIZA MAGALHÃES

 

 

 

 

 

 


Ecos noturnos
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O estampido seco da espingarda corta o ar deixando um cheiro acre de pólvora. Após a debandada dos pássaros, alertados pelo tiro, a paz volta a reinar desde a mata até à superfície do lago avermelhado pelos reflexos solares. O homem, olhos áridos perdidos num ponto qualquer, abaixa a Rossi e os ombros desanimado. Acaricia o cabo carcomido da espingarda e volta a olhar para as águas, os cabelos brancos levemente revoltos no compasso da brisa.

Levanta com cautela para não acordar a criança no berço ao lado e sussura, manso no ouvido da mulher. Dalva desperta, rápida, dedica-se a fazer o fogo e logo se erguem, alegres, as primeiras labaredas. Olinto ceva o chimarrão enquanto conversam baixinho. O cheiro do bife feito na chapa alia-se ao odor do café novo, recém-passado. Ainda mastigando o pão, observa pelo espaço aberto com as costas da mão no vidro embaciado a noite gelada de julho, negra e espessa depois apressa-se a verificar os últimos preparativos. A faca de campanha, o lampião a querosene, a cambona, a manta verde do exército, os velhos reiúnos e os de comer, acomodados junto ao cantil, na mochila de lona. Confere a barraca enrolada ao lado, a ver se está tudo em ordem e a Rossi, sua última aquisição, depositada a um canto, cano voltado para cima. Indiferente ao minuano, um galo retardatário dá sinal de sua presença, num cocoricó arrastado e sonolento. Ao som da buzina ele e Dalva correm a carregar os objetos para a rua.

Martim, motorista do grupo - não confio o jeep a esses cueras - tirita de frio no volante e esfrega as mãos enluvadas:

- Barbaridade este frio, companheiro. Não trouxeste nem uma cachacinha aí no cantil? Eu já ajeitei aqui - exibe uma guampa arrolhada semi-oculta debaixo do banco uma pinga com butiá. Com essa temperatura, só mesmo um traquinho para esquentar. Ô Rui, acorda, vivente - o outro, enrodilhado na manta dorme, a bom dormir, no banco de trás - o Olinto tem de entrar, se ajeite homem. - E emenda:

- Bom de cama, esse daí... Dorme até encostado em moirão, feito cavalo velho.

Olinto acomoda seus pertences, fecha a grossa japona até em cima e volta-se para a mulher:

- Até a madrugada de segunda-feira, será que aguentas? - E sorri, divertido, acrescentando: - E nos espera com muita água fervendo para limpar a caça. - Dá um beijo rápido na mulher e o veículo sacolejante se perde na noite.

Nos últimos anos não havia variações naquele cerimonial repetido entre os quatro, amigos e companheiros de farda. Além do gosto pela caçada, todos exímios atiradores. Aos fins-de-semana o grupo reunia as famílias para os mocotós acompanhados de vinho tinto, feijoadas e, não raro, gordos churrascos regados a Norteña. À tarde os piás dormiam, caras lambuzadas dos doces e compotas servidos de sobremesa, e os adultos reuniam-se na cozinha jogando pif-paf entre rodadas de chimarrão e muitos causos. Ao se despedirem, já engatilhavam a data do próximo encontro.

Na madrugada de segunda retornaram embarrados e exaustos, porém satisfeitos como se vindos de uma parada. Olinto, auxiliado pelos outros arrastara, a caro custo, um capincho enorme casa adentro. Ainda cansado, na mesma manhã estava no quartel onde sua rotina era sempre igual. A continência para a sentinela, cumprimentos aqui e ali e, finalmente, chegava à sua sala, a Sala do Sargento. Os problemas, quando os tinha, eram referentes a um ou outro pracinha implorando, pelo amor de Deus o dispensasse.- Tinha mãe doente, era arrimo de família. O senhor sabe como é... Casquete retorcido entre os dedos pálidos, dava explicações ouvidas com bondade por Olinto. Claro que entendia, ué gente, como não? Também fora jovem e tivera de preocupar-se com a família, os tempos eram difíceis. E aconselhava até esclarecer bem o recruta dispensando-o, afinal, de olhos vermelhos e imbuido de outros sentimentos. Na instrução encontrava-se com o grupo e recomeçavam as brincadeiras de costume ou as disputas relativas aos times de futebol, um ou outro comentário sobre a família ou relacionado ao serviço, assunto não lhes faltava.

Quase no final de um agosto, durante um dos almoços, Rui sugeriu outra caçada. Andava seco por umas noitadas ao relento, umas picadas de mutuca e uns tiros no meio da noite.

- Vão dizer que não estão sentindo saudades da cozinheira - debochou afetado, mão na cintura. - Riram todos, à exceção de Índio. Seu sorriso jamais passava de um peculiar retorcer do canto da boca.

- Quem sabe marcamos para a próxima semana. Mesmo porque a temporada está no finzito. Depois, só no próximo ano. E de mais a mais, aonde a Dona Benta aí vai conseguir outras cobaias para embuchar com seus grudes? - Propunha Mario.

As mulheres limitavam-se a ouvir e a comentar entre si:

- São uns doidos. - Elas também gostavam de carne de caça, lá isto gostavam, mas só mesmo loucos como eles para ficar duas, às vezes três noites dormindo em pleno mato, abaixo de chuva e com um frio de enregelar os sentidos. A mulher de Rui, então, odiava caçadas:

- Tenho lá meus motivos, fico com dó dos pobres bichos. Sabe-se lá não têm filhotes. - Chegava a imaginar-lhes a angústia na lenta morte pela fome, a espera inútil do leite ou do bico salvador. Quando pequena encontrei uma família de gatos abandonados. A mãe fora envenenada e morrera quase ao lado deles, quando os localizei pelos miados angustiantes, estavam quase mortos de fome, todos enroscados por cima do corpo em decomposição da mãe. - Não, decididamente, não aprecio. - Se Rui caçava, não era com a concordância dela, não. Nem limpar os bichos, limpava. Achava mesmo uma judiação inútil, comprassem carne no açougue. E completava: - Lá em casa é que ele não aparece com lebres, capivaras, perdizes ou qualquer bicho morto. Já viram o olhar dos bichos abatidos? Deus me livre.

No dia seguinte, enquanto todos conversavam animadamente na cantina, Rui quedava-se absorto, a um canto. Laura não estava mais concordando com aquelas caçadas. Não era mais um rapazola para expor-se ao tempo daquele jeito, dali a um pouco estaria torto e até entrevado pelo reumatismo. Já pensara nos efeitos daquela umidade à qual se expunham? E no risco das cobras cruzeiras? E rememorara Venâncio, picado por uma delas durante uma pescaria, quando não houve tempo para fazer qualquer coisa. E do choro do infeliz, lembrava? O tempo todo implorando para não o deixarem morrer. Já esquecera? Lembrava, claro. Tinha sido um dos seus melhores amigos, como iria esquecê-lo assim, de uma hora para a outra. Mas Laura continuara, inflexível. Sem falar no finado Antônio. Coisa bem triste. Um exímio nadador acabar por ser fisgado de dentro do rio, crivado de anzóis e emaranhado nas linhas de pesca, olhos arregalados, muito grandes, iguais aos dos peixes pescados horas antes... A voz de Mário fez-se ouvir:

- Mas e aí, Rui... Ô, Rui. Ué, a Dona Benta, concentrada desse jeito, deve de estar pensando num suculento mocotó. Na Martha Rocha, ô alemoa bem linda... Ou nas pernas da Leocádia. Gente, vocs já viram as pernas daquela mulatinha? São de fechar o comércio, não sei como a Laura não a despediu ainda.

Rui irrita-se:

- Bah, vocês são uns depravados mesmo. Só pensam besteira. Tamanhos homens velhos, deviam era ter vergonha. E, depois, quem disse que a Martha Rocha é alemoa, ignorante?

Olinto surpreende-se:

- Algum bicho picou esse vivente - assunta, concluindo: - Tá mais rabugento que china velha quando perde o terço.

Na ponta de uma mesa, limpando um cisco qualquer da bota lustrosa, Índio apenas esboça um sorriso. Pouco depois, à guisa de desculpas, Rui, algo vexado, dá um tapa na cabeça de cada um e a cena é esquecida.

O silêncio da mata mal é quebrado por um ou outro estalido de galhos agitando-se, suaves. Ao longe um quero-quero grita e, como se obedecendo a uma convenção, pouco a pouco o entardecer se enche de ruídos a povoar a mata de vida. Olinto permanece absorto à margem do lago, agora levemente encrespado pela aragem primaveril. Quanto anos teriam se passado? De há muito tenta não contar o tempo. A seu lado, refletindo os restos do sol, a velha espingarda repousa, um brilho sinistro contrastante na paz absoluta.

Quando o sol se pôs, os quatro caçadores, sem fazer o mais leve ruído, posicionaram-se próximo ao lago. Os bornais estavam repletos de aves abatidas. Perdizes, marecos, codornas, numa profusão de sangue, ossos fraturados e olhos agônicos entreabertos. Haviam disfarçado o próprio cheiro com excremento seco e agora aproximavam-se mais da água limitando, ao máximo, seus movimentos. Já estavam assim há quase duas horas, quando ouviram um breve farfalhar na mata. Uma capivara imensa aproximava-se, sestrosa. Parou, comprimindo as narinas ao farejar o ar com cautela e percorreu as redondezas com os olhos miúdos. Uma coruja piou e empreendeu vôo, num espalhafatoso ruflar de asas. Foi o bastante para a capivara iniciar, atropeladamente, a retirada. Os quatro tiros soaram em uníssono, as línguas alaranjadas partindo de direções opostas, enquanto pássaros voavam para todos os lados acossados pelos estampidos. Mas inexplicavelmente o animal continuara sua fuga, em desesperada carreira, jogando-se na água. Depois da estupefação o silêncio foi trincado por um grito. Restaram no ar murmúrios perplexos, um cheiro de sangue, a fumaça, o odor da pólvora e a dúvida.

Nos dias posteriores à caçada os três tentaram conversar. O assunto permanecia entre eles, denso, quase palpável dispensando palavras. Sabiam ter sido um acidente, porém uma angústia coletiva tomava conta de todos. Nas reuniões subsequentes, cada vez mais raras e esporádicas, havia aquele inquietante vazio e a pergunta muda.

Passado o velório, nunca mais viram Laura, tampouco atreveram-se a procurá-la. Da mesma forma nunca tentaram descobrir o autor do tiro. Até, por fim, afastarem-se em definitivo.

Olinto olha para a arma ainda luzindo sob os últimos raios de sol. Apanha-a com cuidado e dirige-se para o lago, novamente estático. Entra na água gelada, em contraste com as lágrimas escaldantes descendo até o queixo por entre a barba malfeita. Avança até sentir a água pela coxa, faz mira bem na linha do horizonte e dispara. Gira sobre si mesmo a espingarda, imprimindo velocidade cada vez maior, até sentir o som cortar o ar e, finalmente, joga-a longe nas águas silenciosas. Observa o brilho metálico a revolutear no espaço antes do mergulho pesado. Círculos concêntricos se formam, se fecham e a paz volta a reinar no sepulcro do silêncio.