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MARIZA MAGALHÃES

 

 

 

 

 

"Em quase todos (...) se observa uma impaciência frenética, uma expressão perturbada ou uma consternaçao carrancuda. Não estão ausentes apenas de seu país, de sua casa; estão ausentes também de si mesmos."

Luigi Pirandello

Déjà Vu
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O calor dentro do carro é sufocante, abrasivo; e o homem, rosto afogueado e tenso, afrouxa a gravata, agônico. Ligou o ar condicionado mas a temperatura ainda lhe parece morna, espêssa.

Bem próximo, entre as reverberações produzidas pela alta temperatura no asfalto, do vidro traseiro de outro automóvel uma menina e um ursinho de pelúcia acenam alegres. O homem, num arremêdo de sorriso, acena em resposta enquanto observa, pelo retrovisor, o pára-choque de um flamejante caminhão vermelho. Liga o rádio e Roberto Carlos entoa melodia de Detalhes naquela cápsula infernal, quente como um forno de barro; por alguns instantes entretém-se e consegue esquecer aquele sol de torrar cérebro, batendo em cheio no asfalto e criando minúsculos lagos imaginários.

Em que ano mesmo ouvira aquela música, em que década. Setenta? De novo vê o rosto da menina e a carinha do urso no carro à frente. Não, não é um ursinho, é um panda e sorri. A lateral do caminhão vermelho reaparece no retrovisor: "Droga de trânsito engarrafado..."

Não conciliara o sono na noite anterior, atormentado por pesadelos. Graças aos céus esquecidos ao acordar, todavia restara aquela sensação de náusea. (Urgência?) Não obstante, tinha a convicção de estar esquecendo algo.

O suor escorre em abundância manchando a camisa no peito e sob os braços. Tem vontade de tirar a roupa e arremessar longe, assim como fizera com a gravata jogada, de qualquer jeito, sobre o estofamento azul-marinho. A menina e seu ursinho - onde vira aquele ursinho antes? - desapareceram por entre os carros, anseia por aumentar a velocidade, vencer o mau-estar mas uma espécie de torpor o impede. Deve ser efeito do calor. Mesmo pensando assim acelera, com visível esforço, para livrar-se mais rápido daquela prisão de fogo.

De qualquer forma tomaria distância do maldito caminhão vermelho, odiava veículos de transporte e mais ainda quando trafegavam tão perto. Caminhoneiros eram sempre tão prevalecidos, não conhecera um só capaz de ser gentil com motoristas de carros de passeio. Normalmente tomavam conta de todos os espaços, ultrapassavam sem o menor cuidado qualquer coisa em seu caminho, empurrando para o acostamento como o fariam com um besouro ou simplesmente obrigando os motoristas a um andar de tartarugas, formando longas e resignadas filas.

Olhou as horas e constatou faltarem apenas duas para chegar a seu destino. Aturdido, reparou ter dito a hora em voz alta, antes de olhar o relógio. De imediato, olhou para o lado para verificar se o motorista daquele Vectra percebera... Não, não olhou para conferir mas por saber que o outro ria do fato de estar falando sozinho e balançando a cabeça, de alguma forma previra isto. Tinha a impressão de ter vivido essas cenas.

Respirou fundo, afrouxou o cinto e desligou o rádio. Precisava concentrar-se, aquele calor estava dando-lhe nos nervos. Coincidência. Sim, era isto: mera coincidência, não entendia seus próprios sobressaltos. Uma vez ouvira alguém comentar sobre as tais sensações de já ter vivido algo antes, havia até a teoria de mundos paralelos. Outra vez sacudiu a cabeça. Bobagens. Contudo, estarrecido e sem dar conta de si, viu-se acenando para a menina e recolhendo a mão, em pânico, já consciente da inutilidade de qualquer reflexo. Tinha certeza de algo se repetindo. O resto foi muito rápido. Vagamente captou em seu campo visual um para-choque vermelho avançando. Quando recolocou a mão que acenava outra vez no volante, o carro saltou empurrado por força titânica e, de um lugar muito próximo, ouviu o barulho de vidros quebrados e um som rascante de ferro contra ferro.

Percebia, embora vagamente, de onde lembrava do rosto da menina, tal como adivinhava o que precisava ser feito. Então freou, em desespero, desviou o carro para o lado oposto e, assim, foi atirado pelo vermelho do caminhão, para o meio da pista. Viu, com crescente horror, o ônibus aproximando-se pelo lado oposto, os olhos do motorista fixos nos seus e, de relance, ao voltar-se na direção ao seu lado direito, viu o panda da menina ser arremessado pela janela vindo parar no pára-brisas do seu carro. Tentou ainda voltar para a pista, contudo não havia mais tempo.

Sabia, agora. Teve certeza disto, pelo mirar angustiado do motorista do ônibus. O mesmo olhar de prece. Como o dele. Então, os pesadelos explodiram em sua memória.