De manhã, abriu os olhos; acordou dominado por uma letargia dolorosa. O corpo, outrora sedento de repouso, estava saturado de imobilidade, como um copo que vazio tornara-se pequeno para o que em si fora entornado.
Lentamente, foi recuperando todos os sentidos. O ar pareceu-lhe viciado e a luz estranhamente forte; tentando levantar-se, lembrou-se, ao longo do movimento, do sonho que teve, sem conseguir especificar, no entanto, quanto tempo teria durado. Recordou-se que sentira-se frio e ferido por um núcleo que cuspia gumes gélidos que o rasgavam de dentro para fora, causando hemorragias e espalhando um vírus, gangrenando o corpo, do osso à pele; sentira o rasganço da carne, a rotura dos vasos sanguíneos, permitindo a extravasão do sangue para a massa outrora muscular.
Sonhou não se ver; sentiu ser para si, invisível. Mas, rapidamente, um som agudo produzido em si, devolveu-lhe a sensação de existência fisica de uma forma que só a dor sabe fazer.
Dentes aguçados rasparam a sua carne, chiando pela casa. Farejado, sentiu a língua passar-lhe pela mão arrancando-lhe o dedo mindinho que se estilhaçou pelo chão. Amarrado pelo pavor, viu aqueles olhos muito abertos e admirados virem ao seu encontro; o nariz cheirou-o sofregamente; uma pata arranhou-o no peito. Um silvo rasgou o ar e o cão bateu em retirada.
O sonho não era filho do sono. Nem sonho que fora sonhado mas realidade que fora recordada. Estaria o sonho dentro dele ou ele dentro do sonho, terá pensado. Os globos oculares rodaram nas suas órbitas e viram o seu mundo. As paredes estavam vestidas de esponjas, multiformes e multicolores, reforçadas nas esquinas. Um manto de retalhos num imperfeito patchwork. O quarto despojado dos seus móveis reteve somente a cama onde Manuel estava deitado; uma pequena amálgama de esponjas, de vários tamanhos e cores, cobriam o que deveria ser uma mesa-de-cabeceira, onde uma pequena vela se equilibrava à vários anos sem uso.
A janela estava fechada e os estores corridos fragmentavam a luz solar. Quando olhou directamente para a janela foi trespassado da íris à nuca pelos raios solares.
Fechou os olhos mas de nada valeu.
Entregou-se à imobilidade, rendendo-se, momentaneamente, ao desprezo que o corpo mantia sobre a vontade. Pelo canto do olho viu algo caido no chão; num esforço instável, movimentou o braço, esticou a mão e os dedos, carpo, metacarpo e falanges transparentes. A clavicula quase cedeu; uma costela estilhaçou-se.
Recolheu o envelope, amarelado pelo tempo, e ao tentar abri-lo rasgou-o ao meio, esvoaçando metade para um lado e metade para outro. Olhou espantado através das mãos. Nove dedos, contou ele.
Pensou como poderia ele voltar a ter a carta inteira se em nada podia tocar. Pensou. A sua memória estava aguçada como nunca esteve. As luvas. Abriu a cómoda para as retirar mas ali não estavam . Juraria que as tinha deixado naquele sitio. Ele não sabe que a sua mulher tirou-as de lá, estavam velhas, e comprou outras.
Onde estarão as luvas, pensou.
Devagar, rodou os seus olhos de vidro, incolores, encaixados nas orbitas. Com cautela mexeu o pescoço. Foi movendo cada músculo como se se pudesse partir. Os cabelos era pequenos filamentos transparentes, assim como as sobrancelhas. As pequenas e frágeis pestanas partiriam a qualquer movimento mais rápido ou mesmo expostos a uma brisa.Os lábios não os tinha e os dentes eram de predador, afiadíssimos. Na sua face que outrora fora rósea, não havia cor nem expressão.
Movimentou os dedos, os ossos não estavam partidos; viu as suas unhas, pequenas fímbrias cristalinas. Flectiu os joelhos, sentiu as rótulas; olhou para as pernas e viu a fina e insegura fibula que poderia partir-se a qualquer sopro.
A luz atravessava-o sem pudor.
Tentou olhar em sua volta; reparou que não sentia os seus músculos a contrair-se; olhou para o seu tronco e dentro dele viu, através da sua carne cristalina, os ossos também transparentes e baços. Cuidadosamente, rodou o seu pescoço em pequenos movimentos e viu a sua caixa tóracica e as suas costelas, partidas e inteiras; desviou o olhar quando chegou ao esterno. Estava exposto aos seus olhos. Levantou os braços ao céu; vigilante, inspeccionou o úmero, a tróclea, o rádio e a ulna. Estava tudo inteiro.Baixou-os novamente. Quando roçou o dedo no lençol, sentiu no dedo mindinho que ainda lhe restava um tecido mais áspero; eram as luvas. Dois dias demorou para as vestir.
Sentou-se. Cerca de um mês depois conseguiu alcançar o envelope. Outro mês demorou a voltar à cama.
Não podia começar com maior sobressalto; de acordo com a data, a carta tinha sido escrita havia oitenta anos. Olhou e voltou a olhar para esta, pensou estar a perceber mal, mas concluiu que os números não deixavam dúvidas, estavam bem desenhados, era um dois não era um oito, era um zero não era um três. Avançou pela folha e a leitura fez-se conturbada e irracional.
«O que terá acontecido, não o sei. Vários médicos vieram cá a casa, mas não souberam explicar. Perguntaram se terias tomado algo para dormir. Eu não vi. Mas já dormias há 20 dias; qual o comprimido que te faria dormir tanto? Nenhum.»
No chão estavam caixas de medicamentos com as letras comidas.
«Tentámos acordar-te mas não conseguimos. Demos-te vários medicamentos, mas tu nunca reagiste»
Um pesadelo. Isto só pode ser um pesadelo. Onde já se viu ou ouviu um homem dormir oitenta anos e acordar assim, transparente, em vidro?! - Pensou.
A carta era longa, várias páginas, numerada, escrita de uma só face.
«Serei eu a compor este tempo em que dormes, tentando preencher estas folhas em branco com as palavras que não ouves, relato do que não vês, porque tudo muda quando são outros olhos; a história é a mesma e mais parece outra; e é tudo pobre quando se pinta a uma só cor, monocromático, falso.»
Sentiu o peito inquieto, tão inquieto que teve medo que rebentasse, espalhando-se pelo chão. Não aguentou mais; tinha lido várias páginas e teve de parar. A comoção impedia-o de continuar. Mas estava tanto por responder; tanto por perguntar.
Porque teria ficado assim?
«Começaste a empalidecer. Pensei que irias morrer. Deixei de chamar médicos; ninguém sabia dizer nada, tu não melhoravas e depois começaram a insinuar que eu te envenenava, que estava a tentar matar-te. Parei. Não vieram mais. Tinha medo.»
«Acordei e continuaste a dormir. Não estranhei, era Sábado e não precisavas de trabalhar. Mas continuaste e continuaste a dormir. Passou o almoço, passou o jantar, abanei-te, respiravas mas não acordavas. Dia após dia, semana após semana, e começou a romaria de médicos cá a casa.»
Lembrou-se que tinha adormecido no sofá enquanto lia o jornal. Ontem à noite, pensou ele; há oitenta anos, sabemos nós.
«Disseram-me tanto, percebi tão pouco; vi os teus músculos a rasgarem-se; mais tarde, explicaram-me o que se passava; defronte dos meus olhos, na tua carne, aconteceu o desnervamento e a decadência da tua actividade muscular; o falecimento dos miotábulos, sim, miotábulos, tive que escrever para não me esquecer; tudo incompreensível para mim, não fosse ver as tuas convulsões musculares, a tua carne a desaparecer, os teus tendões a puxarem os dedos sem tu dares ordem; mas ainda não acabou, o doutor disse-me mais; eu escrevi; ele continuou, depois aconteceu o terminus da síntese contínua de miofibras, a separação do retículo sarcoplasmático e do sistema tubular; fusão dos miócitos em mioblastos e ... ficaste assim. Vejo-te os ossos; respiras de forma leve e dormes profundamente.»
Ele continuou a ler, a tentar perceber o motivo.
«Perguntei por que razão ainda sobrevivias; disseram-me que a única razão que existia era a tua vontade de viver. O teu corpo estava morto, mas tu teimavas em não largar a vida».
Mas eu não quero morrer - respondeu Manuel
Nada fiz que mereça tal destino; Porquê eu?!; Tanta gente sem fazer nada ou a fazer mal e a morte é a mim que vem buscar?!!
«Estou a olhar para ti. Vejo-te. A ti e através de ti.»
Não morro!
«Penso se terá valido de algo, o tempo que desperdiçaste em busca de aprovação alheia. O teu patrão, os teus colegas de trabalho...bem... nenhum te veio ver. Recebi uma carta de demissão quando deixaste de comparecer. O que te valeu as horas que lá ficaste sem receberes nada??»
«Quem me tira da cabeça que foram eles??!!»
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