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......................................JÚLIO DINIS.........

As Pupilas do Senhor Reitor

Capítulo Final

Muito antes da hora, à qual o reitor viera encontrar Margarida abandonada das suas discípulas, e possuído de indignação, a constrangera a acompanhá-lo em passeio pelas caminhos da aldeia, saiu Clara do cemitério paroquial onde fora visitar a sepultura de sua mãe. Caminhava vagarosa e pensativa, a irmã de Margarida, por a alameda contígua, e tão distraída ia que, ao passar pela porta lateral da igreja, não reparou que uma sua conhecida, e nossa também, a estava observando de lá.

Era a Senhorª Joana, que achando-se com vagar aquela manhã, resolveu cumprir uma antiga promessa a Santa Luzia, que a livrara, havia meses. de impertinente doença de olhos. Outra causa, porém, além desta, e menos piedosa, a impelira a devoção tão matinal.

Depois da altercação, que violentamente sustentara na véspera com a tia Josefa da Graça, a criada de João Semana, de volta aos lares domésticos, lembrou-se de uma coisa, que lhe podia ter dito, e que na ocasião não lhe ocorrera.

Isto que sucedeu a Joana, quer-me parecer que há de ter já sucedido também ao leitor; quase sempre as grandes, as boas lembranças, os argumentos mais felizes para fazer emudecer adversários, vêm-nos extemporâneos, quando a discussão findou; salteiam-nos à mesa do jantar, visitam-nos à cabeceira do leito, luminosos, mas tardios.

A Senhorª Joana ganhou pois vontade de ter novo encontro com a sua contendora, para a mimosear com a formidável adenda de amabilidades, que lhe estavam ocorrendo, a todo instante, e cada vez mais preciosas.

Frustrou-se porém este plano, porque a beata tinha sido chamada aquela manhã por suas devoções a uma outra Igreja.

Joana ia retirar-se desconsolada, quando avistou Clara na alameda.

Vendo que não era percebida por ela, chamou-a:

- Fale à gente. Então que modos são esses agora? Passa por uma pessoa, como cão por vinha vindimada!

- Não a tinha visto - disse Clara, parando à espera dela.

E ambas continuaram depois por o mesmo caminho.

- Então que doidices foram aquela lá por casa? - perguntou Joana, que não era para rodeio, e ia logo direta ao fim que tinha em vista. - Aquilo é coisa que se faça? Ainda se fosse consigo, não me admirava eu tanto, mas a Guida!

Clara ficou surpreendida com o que ouvia a Joana. Margarida para acalmar à irmã os escrúpulos em aceitar o sacrifício, dera-lhe a entender que, a exceção de Pedro, ninguém mais na aldeia suspeitava a cena do quintal. Agora adquiriu ela certeza do contrário.

- Então você sabe?... - perguntou timidamente, não ousando olhar para Joana.

- Se eu sei! E quem não o há de saber, filha, se por aí não se fala em outra coisa?

- Que diz, Joana?

- Pois que cuidava? Ai está bom, está! é o que eu digo! Aí tem que ontem... Mas a mim custa-me a crer! pois a Guida?

- Joana! por quem é, não fale dessa maneira. Se soubesse...

- Pois não falo, não... Ainda que de eu falar não é que vem o mal. Assim não andassem por aí outras línguas danadas...

- Então dizem? ó meu Deus! meu Deus!

- Dizem tudo, e mais alguma coisa: é o costume. Pois ainda aí está! Bem o digo eu!

- Jesus Senhor! E falam de Guida?!

- Que dúvida! Há lá manjar mais doce para essas boquinhas cá da terra, do que uma novidade daquelas? Falam dela, e de modo que já me fizeram ferver o sangue. Olhe que estive para obrigar uma das tais a engolir a língua peçonhenta, a ver se a envenenava com ela. Ora imagine a Zefa da Graça a contar história e veja lá o que não diria!

Clara ocultou o rosto com as mãos; a dor e a desesperação estavam-na torturando.

- E então o pior não é isso - continuava Joana. - O pior é que a essas desalmadas meteu-se-lhes em cabeça que as filhas corriam perigo, continuando a ser ensinadas por a sua irmã; e é de crer que já hoje... Mas veja aquelas tolas, que mais o que sabem é estragar os filhos com maus exemplos e com más palavras, a fazerem-se agora de escrúpulos! Impostoras!

- Oh! isto é demais! - bradou Clara, tremendo de indignação.

- A Rosa alfaiata, por exemplo - prosseguiu Joana. - Ora digam se não é mesmo de uma pessoa perder a paciência ouvir aquela desbocada com medos que lhe estraguem a filha? a filha, que se não sair das que nem o demônio quer, não há de ser por falta de diligências que faça a mãe para isso.

Clara não podia já reter as lágrimas.

- E a Joaquina do Moleiro? Pois não querem ver aquela senhora também com delicadezas? Ora isto! Isto é de uma pessoa morrer com riso. A Joaquina do Moleiro , que eu conheci... Cala-te, boca

E por esta forma continuou a Senhorª Joana fazendo a severa crítica das suas escrupulosas patrícias, e aumentando, sem o saber, a grande aflição em que estava Clara.

Ao separar-se da velha governante de João Semana, ia Clara com uma resolução formada, a qual se lhe podia adivinhar na firmeza do olhar e na expressão do semblante.

- É demais! murmurava ela - vou procurar Pedro; vou dizer-lhe tudo; quero que todos saibam...

Ia pensando nisto, quando se achou em frente dos dois irmãos, que se aproximavam conversando afetuosamente. Daniel vinha pálido: voltava naquele momento da entrevista que inesperadamente tivera com Margarida.

Ao vê-los assim de súbito, faltou a Clara a coragem para cumprir o que tinha resolvido.

Só com Pedro teria ânimo para a confissão, mas, diante de ambos!... Era demais para as suas forças. Calou-se.

Passadas algumas horas, voltou a casa, e entrou na sala em que estava já Margarida, o reitor e o José das Dornas.

Este último tinha ares meditabundos, como se estivesse ponderando idéias graves e não sei que misteriosos planos.

Clara foi direita à irmã. Trazia ainda no rosto toda a indignação causada por o que tinha ouvido a Joana e depois vira confirmação já. Tinham-lhe contado a ofensa que a irmã recebera aquela manhã, não lhe aparecendo discípulas; conservando ainda vermelhos os olhos, de tanto que, por isso, havia chorado.

Chamando Margarida à parte, disse-lhe com voz trêmula de raiva:

- Margarida, estou resolvida a acabar com isto. Não devo, não posso, não hei de consentir que assim te percas por mim. Vou dizer tudo. Se tu és forte, eu também tenho forças; menos para isto, para te ver assim insultar, Guida, minha pobre Guida.

E as lágrimas saltavam-lhe dos olhos, ao abraçar a irmã.

- Cala-te, cala-te, não digas loucuras. Se soubesses?... Olha, já estou de bem com essa gente toda, essa pobre gente, que é boa no fundo, afinal, coitada. Ainda agora...

E Margarida contou, com sorrisos, toda a cena do largo.

- Pois sim - disse Clara, depois de ouvi-la - mas ficarão suspeitosos; ouvirás ditos, viverás debaixo das desconfianças desses, que, todos juntos, te não valem, Guida; e isso não me deixaria sossegar. Ora, diz-me, se, por alguma coisa do mundo, aceitarias de mim um sacrifício tamanho?

- Quem sabe? - disse Margarida, fazendo por sorrir; e depois acrescentou: - Outra coisa me aflige, neste momento, mais, bem mais, que tudo isso. Não sabes que morreu o nosso pobre amigo?

- Sei; soube-o de Daniel, que vinha de lá.

- Pois falaste-lhe? - perguntou Margarida, baixando os olhos, por se lembrar da cena que no capítulo antecedente descrevemos.

- Falei. Foi ele quem me disse que tinha morrido aquele infeliz. Fui-lhe rezar junto do leito. E lá, outra vez, aconselhou-me Deus que não abandonasse a minha idéia.

- Então que idéia tiveste tu? - perguntou Margarida.

Clara continuou:

- Guida, agora isto em mim é decidido. Ou tu aceitas o oferecimento de Daniel, ou eu digo tudo.

- Doida; nem me fales nisso.

- Agora, juro-te, pela salvação da minha alma, que é tenção firme, e te não darei ouvidos, Guida.

- Clara!

- Juro-to.

- Queres fazer-me desgraçada?

- Quero fazer-te feliz.

- Matavas-me.

- A morte te estás tu a dar com esse teu gênio, Guida. Esse teu bom coração consome-se assim. Queres fingir-te mais forte do que és. Escondes-te para chorar. E olha, quando se não chora parece que as lágrimas nos caem todas cá dentro e queimam; e o padecimento é então de morte.

- Estás enganada, Clara; a gente costuma-se afinal a tudo, até a tristeza.

- Para que estás tu a mentir-me assim? Aprendi mais de ti neste dois dias, do que em tantos anos, que te conheço. Dantes eu dizia, como todos: - Esta minha irmã é feliz no meio das suas tristezas; vai tanto sossego naquela alma, que a vida para ela deve ser como um dormir de criança, em que se não fazem sonhos maus; mas ontem, ó Guida, como te vi ontem! Eu que tenho este gênio forte, nunca me senti assim. Imaginei o que ia pelo teu coração naquele momento, minha boa irmã, e assustei-me. Mas ainda isso não era nada. Que horas terão havido na tua vida de vinte e três anos, minha Guida? o que terá ido lá por dentro nesse coração, que não abres a ninguém? Nem a mim, Guida, que precisei de adivinhar-to, se quis. É mal feito. Mas cada vez que penso nisto, cada vez que me lembro de quanto terás chorado, escondida, de quanto terás penado, calada, sinto quase que terror. Não era sem causa essa distração, em que tantas vezes caías, e que me fazia rir. Que cega que eu era, e que má, sem o querer ser, ao rir assim! Quantas vezes estarias tu sofrendo como eu nem penso que se sofra, e eu a rir-me! Perdoa-me, Guida, perdoa-me aquela maldade; mas bem vês que eu não te conhecia bem. Não, tu não é de gelo como dizias. Quem sabia perdoar, como tu, e desde bem pequena principiaste a fazê-lo! quem sabia, como tu, estimar e proteger uma irmã, podia lá ter fechado o coração para o mais? para o amor? E que amor que lá guardas, há tanto! e que ainda agora queres abafar; como julgas que o há de fazer, doida? Que hás de por tu no lugar dele?

- A tua amizade, Clara - redargüiu Margarida, beijando-a sensibilizada. - Essa me bastará. Amava-te já muito, minha filha, mas agora sinto que hei de vir amar-te mais. Até aqui, estremecia-te como uma a uma criança bonita, meiga, carinhosa, e - acrescentou com um leve sorriso - com suas perrices também. Tudo que nos agrada, que nos enfeitiça nas crianças, agradava-me, enfeitiçava-me em ti. Mas agora, Clara, apareces-me outra. Como se aquele momento de dor, que passaste, te fizesse de repente mulher, falas-me, como ainda não te ouvira, sentes, pensas, e ... adivinhas até, como julguei que nunca o farias. Agora sim, vejo que terminou a minha tarefa de protetora, a tarefa que tua mãe me encarregou. Estás uma mulher, Clarinha. Agora posso tomar-te por confidente, e conselheira até. Tens direito a sê-lo, tu, a única pessoa que me adivinhou. É teu o meu segredo... porque mo roubaste, vamos. Vê, que já me não envergonho de dizer-te que me adivinhaste. Sim, é certo que, este... esta loucura viveu comigo, cresceu comigo, e quem sabe até se comigo morrerá? É uma companhia a que me afiz, mas nunca deixei de a conhecer pelo que ela é, uma loucura. Estou como aquela viúva do Outeiro, que rodeia de cuidados e amor o filho doido que tem. E queres agora que vá assim arriscar o meu futuro, o futuro do meu coração, que é o que eu mais prezo, para satisfazer esta loucura? Diz; não, tu não hás de exigir isso de mim. Promete-me sempre a tua amizade de irmã, e eu serei... feliz...

- Não serás; nunca o foste. Agora sou eu que devo ordenar. A minha tenção é firme.

- Então, Clara!

- Escolhe. Não sejas má contigo e com ele.

- Com ele! - repetiu Margarida, sorrindo amargamente.

- Com ele, sim, que te ama.

- Para que afirmas o que sabes que é mentira?

- Não é. Há pouco vi-os, como te disse; vi-os, a Pedro e Daniel; encontrei-os por acaso. Aí, Guida, que momento aquele! Se soubesses como tremia! Eu a ver Pedro constrangido diante de mim, sem poder dizer-me uma palavra; aí, como me custou fingir! Não sei o que me não deixou lançar-me aos pés dele e pedir-lhe perdão. Depois o Pedro retirou-se para o lado. Daniel falou-me de ti, disse que viera conversando com o irmão a teu respeito. Pedro teimava com ele para que se casasse contigo; e Daniel respondia-lhe, comovido, que seria para o seu coração grande ventura, mas que tu recusaras. Que ele via agora a razão por que tão de repente te amara assim.

- Deve ser uma razão bem conhecida dele, que tantas vezes a tem sentido com outras - observou Margarida, com a mesma expressão de amargura.

- Não digas isso, má. Daniel recordava-se de tu teres sido a sua companheira , em criança; lembrava-se que fora quem te ensinou a ler, quando te ia procurar ao monte, onde, sozinha, passavas os dias a guardar os rebanhos de nossa casa.

Margarida suspirou, ao ver assim avivadas as imagens daquele tempo.

- De tudo se lembrava Daniel, e tudo me repetia, o que cantavas, o que lhe dizias, os vossos projetos, e até os vossos arrufos. E afligia-se o pobre rapaz tanto, que se o visses, Guida, se o visses... Depois, quando se recordava da maneira por que respondeste ao seu pedido, e de como havia pouco, dizia ele, o tinhas outra vez rejeitado; quando pensava em que o não amavas já; ficava tão triste que metia pena. E então disse-lhe...

- O quê, meu Deus?

- Disse-lhe... que o amavas.

- Ó Clara! que foste fazer? - exclamou Margarida, juntando as mãos.

- O que devia. De que servem os fingimentos? Pois não o amas tu deveras?

- Aí, Clara, Clara; não te perdôo isso, não.

- Nem eu quero que me perdoes; hás de agradecer-me. Se visses como ele ficou, quando eu lhe contei tudo. O teu choro de ontem de manhã, como eu te fui achar. O que te disse, o que me respondeste, tudo enfim. Parecia-me um louco, o rapaz; abraçava-me, ria... Depois eu propus-lhe que viessem, ele e o irmão...

- Que viessem?...

- Que viessem comigo.

- Aonde?

- Aqui? e então...

- E então vieram. Estão naquela sala esperando.

- Ó Clara!

- Pois não fiz bem? Agora vais dizer que sim, quando ele de novo te propuser...

- Não, nunca o direi.

- Como quiseres. Mas lembra-te do que eu te jurei.

- Clara!... Clara!... minha irmã!... minha amiga!... repara ao que me queres obrigar. Pois força-se alguém a uma coisa assim? Diz: Queres que eu me abaixe a...

Neste ponto forem interrompidas por José das Dornas e pelo reitor, que, depois de muito conferenciarem, se aproximaram delas.

- Vocês perdoem, se lhes interrompo a conversa, raparigas; mas é que eu tenho de falar a Margarida - disse José das Dornas, afagando com as mãos a copa do chapéu, e dando mostras de embaraçado.

- Margarida, o meu filho Daniel é um estouvado.

Margarida desviou os olhos, perturbada.

José das Dornas, vendo isto, julgou que teria principiado mal, e dirigiu ao reitor uma interrogação muda. O padre fez-lhe sinal que continuasse, e ele continuou:

- Desde criança o conheci assim. A quem saiu é que eu não posso saber. Lá que com seus estouvamentos e as suas estroinices desse cabo da saúde e da legítima materna, era uma pena, mas enfim... - acrescentou , encolhendo os ombros - entre Deus e ele se decidisse esse negócio. Mas agora, que venha a perder e inquietar os outros com as suas asneiras, isso é que é muito feio; e eu não estou resolvido a sofrer-lho. Muito menos então, quando essa outra pessoa é a pérola cá da nossa terra... Todos o dizem. escusa a menina de fazer esse sinal com a cabeça; que não se precisa cá do seu consentimento para nada.

E ao dizer isto, José das Dornas olhava, sorrindo, para o reitor, em cujo semblante havia também um sorriso de satisfação.

O lavrador prosseguiu:

- Ora muito bem. Mas o rapaz é que não entendeu assim, e pelos modos...

- Bem, bem; adiante. O que aconteceu todos nós sabemos, vamos adiante - atalhou o reitor, que vira formar-se na fronte de Clara uma ruga, que ele julgou prudente alisar a tempo.

- É verdade; pois agora de duas uma, ou ele para remediar o mal que fez, vem aqui pedir para a menina o aceitar por marido, e, se a menina lhe quiser fazer este favor, tudo se remedeia, e eu recebo por filhas, logo de uma assentada, as duas melhores moças da terra, ou então... ou então, ao poder que eu possa, parte-me já o rapaz para o Brasil ou para fora daqui pelo menos; por que já não estou para ver, por causa dele, alguma desgraça cá na terra.

Clara inclinou-se ao ouvido da irmã para lhe dizer:

- E lembra-te de que o culpado, que tens de sentenciar, não está longe daqui.

- Ora é preciso que se saiba - acrescentou o lavrador - que isto não é só lembrança minha; não senhores. Deus me livre de lhe querer dar à força um noivo que a não estimasse como merece; mas, pelos modos, o rapaz tem a sua inclinação para a menina, porque enfim... - e aproveitou esta reticência para um sorriso benevolente - foi o jeito que tomou em pequeno. Amores antigos... Lembra-se Senhor Reitor, que por causa desta é que o rapaz não nos canta hoje a missa? porque dizia ele, já então, que havia de casar com a menina.

- É verdade, é verdade; - respondeu o reitor em tom igualmente jovial - tinha coisas o rapaz!

E os dois velhos desataram a rir, com todas as veras do coração.

- Pois enfim - disse em seguida o lavrador - às vezes são coisas talhadas por Deus. Deixe lá. O Casamento e a mortalha... lá diz o rifão. Eu cá tenho o meu palpite, que, se a menina aceitar, o rapaz toma emenda, o que para ele era uma felicidade, porque, a Margaridinha bem o sabe, isto de cirurgiões e médicos quer-se gente séria, ou não fazem nada. Por isso, resta saber se a menina aceita, porque se não, adeus! faço uma figa ao amor de pai, e não descanso sem pôr o rapaz fora daqui. Pense nisto a menina, e quando Daniel voltar...

- Nada de pensar mais tempo - exclamou Clara, não podendo já reprimir a alegria, que lhe tinham causado as palavras do lavrador. - As coisas querem-se decididas depressa; também é mau pensar demais. Vêm-nos de Deus às vezes certas lembranças, que se perdem se pensamos muito... Eu vou buscar o noivo.

E aproximando os lábios do ouvido de Margarida, a qual se conservava ainda calada e com os olhos fitos no chão, disse-lhe:

- Vê lá agora o que vais fazer; olha que tu a dizeres que não e eu a contar tudo como foi. Ouviste?

E sem esperar resposta, correu à porta, e fez sinal para dentro da sala imediata

Daí a pouco tempo entraram Pedro e Daniel.

- Ah! estavam aí?! Pois melhor!... - disse José das Dornas, ao vê-los.

O reitor sorria de esperanças.

Daniel aproximou-se de Margarida, que tremia sobressaltada.

- Margarida, - disse Daniel com timidez - venho renovar um pedido, que ontem lhe fiz aqui mesmo, e que já hoje lhe repeti; peço-lhe...

- Aí, pois ele já?... - disse José das Dornas para o reitor.

- Já, já; mas cala-te, homem - respondeu este, ansioso por ouvir a resposta de sua pupila.

Durante esta interlocução dos dois, havia Daniel acabado de formular seu pedido.

Margarida ficou por algum tempo silenciosa. Ergueu lentamente os olhos para Clara, viu-a pálida, e notou-lhe no rosto um ar de firmeza, que a assustou. Conheceu que era inabalável a resolução que ela formara.; Margarida dirigiu-lhe ainda um gesto de súplica; Clara respondeu-lhe com um movimento de recusa ambos tão rápidos e tão sutis, que só por ambas podiam ser percebidos.

- Então... minha filha? - disse, quase a medo, o reitor, já pouco tranqüilo com a hesitação de Margarida.

Enfim com voz trêmula e mal percebida, ela respondeu:

- Que direito tenho de recusar uma proposta... tão generosa? Aceito.

Na maneira de dizer aquele - generosa - ia toda a censura.

- Ainda bem! exclamaram os presentes, menos Daniel, porque este apoderara-se da mão de Margarida, e, apertando-a na sua, beijou-a com paixão.

Margarida estremeceu e... - vão lá agora acreditar na firmeza do coração humano, quando jura cerrar-se às branduras do sentimento e às explosões da paixão! - e, por um desses movimentos irresistíveis, por uma dessas soluções, com que se dá no amor o passo tremendo e decisivo das confidências, correspondeu a Daniel, apertando-lhe também a mão.

Neste momento passou na rua uma rapariga cantando:

De pequenina nos montes

Nunca teve outro brincar.

Nas canseiras do trabalho

Seus dias vira passar

Daniel olhou para Margarida, que desta vez não desviou também o olhar.

E agora, como que o passado inteiro, aquele passado de ambos, lhe apareceu com o prestígio da saudade, e dourou-se-lhes o futuro com o fulgor das esperanças.

Estes pensamentos trouxeram-lhe o sorriso aos lábios, e a confiança ao coração.

Margarida, alvoraçada com as novas sensações recebidas, voltou-se para a irmã, que sorria, porque lhe estava a ler na alma.

Margarida corou, e, retirando a sua da mão de Daniel, foi esconder a fronte entre os braços de Clara.

- Então? - disse-lhe esta ao ouvido - devo pedir perdão, ou alvíssaras, minha teimosa? Ora dize-me se o que sentes agora no coração te causa grande dor, e se te obriga a querer-me muito mal por o que fiz?

Margarida respondeu-lhe, apertando-a ao seio.

Era feliz naquele momento.

Nisto ouviu-se uma voz que bradava da rua:

- Ó reitor! ó abade! Ouves? ó Padre Antônio! ó homem!

O reitor chegou à janela, a verificar quem era; conquanto tivesse já, pelo estilo, quase reconhecido o homem.

- Ah! és tu, João Semana? Sobe.

- Nada, nada; desce tu, que tenho que te falar.

E João Semana dizia isto com a voz sobressaltada e o gesto assombrado de inquietação.

- E eu digo-te que subas.

- Não subo tal; o que tenho a contar-te não se pode contar aí.

- Ah! já vejo que ouviste também a história do dia! - disse o reitor, que suspeitou do que se tratava.

- Ouvi, ouvi, e o que me pareces é que tu a não sabes toda, abade; se a soubesses, não estavas com tantas pachorras!

- Achas? Pois eu não me sinto hoje de maré para me afadigar. Sobe, João Semana, sobe.

- E se eu te disser, que enquanto tu aí estás, muito descansado, talvez esteja a correr sangue...

- Então deixaste alguma sangria mal vedada, João Semana? Ah! Ah!...

E o reitor achava deliciosa a mortificação em que via o seu velho amigo.

- Uma figa para a graça! - disse o cirurgião contrariado. - Estás hoje muito contente da vida.!

- Que queres! deu-me para aqui.

- Talvez não leves assim o dia todo. Queres saber o que há, ou não queres?

- Quero, mas sobe.

- Pois, com os diabos, eu subo, e se a notícia estourar aí dentro como uma bomba a culpa é tua.

E dizendo isto, enfiou pelo portal dentro.

Enquanto ele sobe as escadas, direi ao leitor o motivo do desassossego, em que nos aparece o velho clínico.

João Semana só aquela manhã soubera do acontecido no quintal das duas irmãs, na noite de antevéspera.

No dia antecedente andara o cirurgião por longe, aonde a fama ainda não tinha levado a notícia do escândalo. De volta a casa, Joana, mortificando o desejo que sentia de falar, foi de uma discrição admirável a esse respeito. Duas causas a moveram a isto: primeira, o não saber ainda como poderia contar o fato, sem grande prejuízo do seu afeiçoado Daniel; depois, parecendo-lhe quase impossível que João Semana não soubesse já alguma coisa, deu-lhe para tomar à má parte o silêncio que o via guardar, e resolveu, despeitada, não ser mais expansiva do que ele.

O resultado foi sair João Semana, no dia seguinte, ainda em completa ignorância do ocorrido. Ficou portanto surpreendido ao receber à queima roupa, em casa de um cliente, a notícia e sob uma das feições mais pavorosas que ela havia revestido.

Falaram-lhe em projetos sanguinários da parte de Pedro, na fuga de Daniel, no desespero de Clara sobre cuja culpabilidade havia ainda grandes dúvidas na mente do narrador.

João Semana acreditou tudo aquilo, e correu à casa de José das Dornas. Perguntou pelo lavrador, tinha saído; perguntou por Daniel, e depois por Pedro, obteve a mesma resposta.

Pareceu-lhe ver nos criados um ar de susto e de perturbação, que acabou de lhe fazer perder a frieza de ânimo. Correu, em vista disso, à casa do reitor; também o não encontrou. Calculou que estaria em casa das pupilas, e dirigiu-se para lá.

Imagine-se pois se o não irritaria a presença de espírito, o ar de gracejo, com que lhe respondeu o reitor! Subiu as escadas , disposto a pôr de parte todas as cautelas, e a dar a novidade sem lhe importar as conseqüências .

Ao entrar na sala ficou porém imóvel de admiração com o que viu.

José das Dornas, sentado, limpava uma lágrima de satisfação; a uma janela, Pedro e Clara entretinham-se, conversando amigavelmente; à outra, Margarida escutava Daniel, que estava falando do passado e do futuro, da maneira desordenada por que se fala em ocasiões assim.

O velho cirurgião olhava boquiaberto para uns e para outros, sem saber o que pensar daquilo tudo; afinal olhou para o reitor, que lhe pregou uma risada.

- Isto que quer dizer? - perguntou João Semana, conseguindo enfim fazer uso da língua. - Então que diabo me tinham dito?...

- Ora! e tu dessa idade ainda a engolir todas as pílulas que te impigem! É bem feito, que também às vezes as receita de calibre de granada... Então contaram-te coisas horrorosas? Eu logo vi. Estava a ler-tas na cara; pois agora conta tu o resto da história a essa gente, e que façam o favor de se calarem por uma vez com isso.

- Melhor foi assim - disse João Semana um pouco envergonhado de sua credulidade - já vejo que não faço nada aqui; adeus!

E ia retirar-se.

- Espera, onde vais tu com tanta pressa? Então não te alegra o coração com estes espetáculos?

- Alegra, alegra... mas os meus oitenta anos é que são demais para a alegria dos noivos. Eu, tu e José das Dornas deviamo-nos retirar, porque eles estão agora persuadidos que nunca envelhecem nem morrem e nós estamos aqui a bradar-lhes com os nossos cabelos brancos: Memento... et coetera, et coetera. Diz tu o resto do latim se quiseres.

- Isso era bom se eles lembrassem de nós, mas parece-me que nem deram por ti ainda. demora-te, pois, João, demora, que me hás de acompanhar, e mais ao José das Dornas, em uma saúde aos noivos.

- Pois vá lá - respondeu João semana - ainda que saúdes aos noivos, feitas por velhos... Sabes o que dizia o prior de SãoDomingos?

Não podemos saber o que era, porque João Semana disse-o só ao ouvido do reitor o qual não pode suster o riso, ainda que, com um gesto de má vontade, observou ao jovial clínico:

- Valha-te Deus, homem... quando te deixarás dessas histórias?

E o reitor, usando e familiaridade que tinha em casa, foi ele próprio buscar a garrafa e os copos, para a saúde combinada.

Nesse ponto, ouviram-se passos apressados na escada, e à porta da sala assomou a figura ofegante da Senhorª Joana, a quem não sofreu o ânimo que não viesse procurar Margarida.

Encontrando tanta gente na sala e o seu amo incluído no número a boa mulher parou embasbacada.

- Aí vinha outra às vozes, como tu - disse o reitor a João Semana.

- Você que faz por aqui, mulher? - perguntou este à criada.

- Eu?

E Joana não sabia o que dissesse.

- Esturro tenho eu hoje no arroz - disse João Semana, rindo.

- Não há de ter, se Deus quiser.

Clara correu a Joana, e abraçando-a com alegria, disse-lhe:

- Fez bem em vir. Margarida vai ser feliz; olhe.

Joana olhou e compreendeu tudo.

- Ora, sim senhor; teve juízo uma vez aquela cabeça, - disse ela, referindo-se a Daniel, de quem se aproximou; e depois, em tom de familiaridade, perguntou-lhe: - Então a tal senhora que havia de mandar vir da cidade de vestido a arrastar, e não sei que mais? Olhe que esta não tem os cem mil cruzados que queria.

- Mas não vale mais do que todas as outras, Joana?

- Ora, boa pergunta! Afalar a verdade não a merecia muito, não.

E, afastando-se um pouco de Daniel e Margarida, pôs-se Joana a olhar para eles ambos, com ar de contentamento, dizendo depois em voz alta:

- Não que parece que foram mesmo talhadinhos um para o outro.

Os três velhos e Pedro, Clara e Daniel riam da observação de Joana; Margarida sorriu também, mas corando.

E a saúde projetada entre o reitor, João Semana e José das Dornas, fez-se, conforme o estilo, tomando também parte nela Joana, cujo toast não foi o menos eloqüente.

- Nunca fiz um casamento com tanta vontade! - disse o padre esfregando as mãos.

- E fica tudo numa família - observou José das Dornas, todo satisfeito.

- Isso é que é o diabo, se as duas me dão agora as avenças de uma só! - resmungou João Semana, de maneira que todos o ouvissem, fingindo-se apreensivo com isto.

José das Dornas, conquanto bem conhecesse que era aquilo um gracejo do cirurgião, assegurou-o que as avenças redobrariam.

Pedro, achando-se perto de Daniel, abraçou-o com expansão de alegria.

- Ou a noite de antes de ontem, ou o dia de hoje, irmão - dizia ele quase lacrimejando.

- Agora sim! - exclamou o reitor, vendo aqueles contentamentos. - Agora, quando Deus me chamar a si, posso dar contas limpas aos pais destas raparigas. estou certo que deixo felizes as minhas duas pupilas.

O leitor concordará por certo que devemos fechar por aqui a narração.

As suaves alegrias das núpcias, imaginem-nas, pelo que sentiram, os felizes que na vida as gozaram já; os outros fantasiem-nas, pelo que tantas vezes sonham, ao pensarem no futuro.

FIM