Tendo formado esta resolução, João Semana picou a espora de sua égua, a qual, estranhando a insólita amabilidade, de um salto o apresentou junto de Daniel que era, como o leitor sabe já, o vulto em questão.
Daniel, vendo-se descoberto, julgou que o melhor partido era entrar em jogo rasgado.
- Boas-noites, colega - disse ele em tom prazenteiro, e caminhando para João Semana.
Este deu um estremeção na sela ao reconhecer o seu jovem confrade. O não muito favorável conceito que ultimamente formava dele, em relação a certas qualidades morais, fê-lo agourar mal de sua presença naquele lugar.
- Ah! Ah! Você por aqui! Anda a fazer versos?
- Ou a inspirar-me para isso.
- Não é mau o sítio, não. E ao mesmo tempo pode dar-se a estudos de química também; a água desta fonte...
- Já me disseram que é medicinal.
- É excelente.
- Para que moléstias?
- Para muitas. Agora o que não sei é se para certos esvaimentos de cabeça também servirá. Bom era que sim, que anda por aí muito disso.
Daniel fingiu não entender a alusão, e observou com modo natural.
- Está aqui muito agradável.
- Ai, o sítio é bom, lá isso é. E para a caça?! Não gosta de caçar?
- Alguma coisa.
- Pois por estes montes há caça famosa. Ainda agora, quando eu vinha, fugiu daqui uma...lebre, e com uma pressa admirável. Não a viu?
- Não, não vi.
- O que é ser poeta! Não se vê coisa nenhuma. Com os meus oitenta anos vejo eu melhor. Pois é verdade; atravessou neste mesmo instante por esta rua... ia a jurar até que se escondeu ali no quintal; pareceu-me vê-la escapar através daquela porta.
- Tens boa vista, João; mas não tão boa, que te não passe por alto um amigo velho.
A voz, que dissera estas palavras, parecia vir do ar.
João Semana levantou a cabeça e deu com os olhos do reitor muito pachorrentamente estabelecido sobre o tronco de um pinheiro derrubado no topo das escadas que desciam do outeiro.
João Semana ficou espantado com a tal descoberta, e só isso o impedia de notar que Daniel o não ficara menos. Quando, porém, desviou para este os olhos, encontrou-o já sem sinal de perturbação, e até anediando os cabelos com toda a naturalidade.
As suspeitas, vagamente concebidas pelo cirurgião, desfizeram-se.
- Que diabo fazeis vós ambos aqui? e tu então de poleiro, abade?!
- É que isso aí embaixo é úmido como um charco, e eu não quero dar-te o que fazer com o meu reumatismo, João. Mas eu desço, eu desço.
- Não, não, deixa-te lá estar. Lá por isso..
- Não que vão sendo horas também de me chegar até casa. Pois é verdade - continuava o pároco, apoiando-se na bengala, e descendo, com vagar, e cautelosamente, aos poucos suaves degraus, cavados no saibro do monte - pois é verdade; estávamos nós aqui, eu com o Daniel e a Clarita, a conversar...
- Ah! bem me pareceu que era ela...
- Era ela, sim. Então que dúvida? Olha que sempre fizeste uma descoberta!
- Mas para que diabo fugia a rapariga, então?
- Diz antes por que diabo não fugimos nós. Mas o meu reumatismo é que me não deixou. Quando me hás de tu dar um remédio para isto, homem?
- É pregar com os ossos nas Caldas, querendo. Mas, dizias tu fugir? Para que haviam de fugir de mim?
- De todos. Quando se conspira...
- Então vocês?
- Conspirávamos, sim, senhor. Aqui mesmo onde nos vê, estávamos a combinar uma coisa...
- Que diabo era o que combinavam?
- Combinávamos...
O reitor achava-se um pouco embaraçado por nada lhe ocorrer a propósito; por isso exclamou para contemporizar:
- Que maldito costume tu tens, João, de estar sempre com o nome do inimigo na boca! Perde-me esse jeito.
- Pois sim, sim; hei de fazer por isso, apesar de que já vou um pouco tarde. Eu digo agora como aquele franciscano a quem repreendiam por, já na idade avançada, cair anda na fraqueza, em que Noé caiu: "Já agora hei de morrer com isto, dizia ele; porque de duas uma: ou já estou condenado, e então não sei que lhe faça; não vale a pena a emenda; ou não estou, e quem pode perdoar uma bebedeira de quarenta anos, não deve por dúvida em perdoar a de meia dúzia mais". - Mas então o que combinavam vocês?
A renovação da pergunta, depois da referência do caso, fez perder ao reitor as esperanças de eximir-se a responder. Quando João Semana conservava uma idéia fixa, través da narração de qualquer anedota de frades, era para dificilmente a deixar.
Conhecendo isto por experiência, o reitor resignou-se; e, ainda sem saber o que dizia, principiou a responder:
- Combinávamos...
E fingindo arrepender-se, exclamou:
- Mas é boa essa! Não há senão perguntar. Tu não deves entrar no segredo. A coisa é entre nós três.
- Homem, diz lá o que é. Que diabo...
Um gesto dom pároco obrigou João Semana a corrigir-se.
- Que SãoPedro de escrúpulos são esses agora?
A substituição do nome do espírito maligno pelo do apóstolo não lhe valeu a resposta que pedia, e que o reitor de boa vontade lhe dera, se a tivesse para dar.
- E a teimar - dizia o padre ganhando tempo. - Sempre és um curioso.
Daniel interveio enfim
- Olhe, Senhor João Semana, basta que saiba, e depois não pergunte mais nada, que estávamos preparando uma surpresa a meu irmão Pedro, para o dia do casamento dele.
O reitor franziu as sobrancelhas, ao ouvir Daniel. Apesar do auxílio que ele viera lhe dar, desgostou-o a presença de espírito que mostrava, quando devia estar enleado de confusão e de vergonha; foi por isso que acrescentou com num evidente tom de severidade e irritação:
- Casamento que, se Deus quiser, hei de brevemente abençoar. Estás agora satisfeito, João semana? Pois é verdade. Daniel meditava grandes novidades para o dia do casamento do irmão, grandes festas por causa dele e da noiva, et cetera, et cetera. Mas o seu projeto não mereceu, nem merece a minha aprovação.
Daniel baixou os olhos ao ouvir estas palavras do padre.
Este prosseguiu:
- Clara pensa como eu, mas este homem é obstinado, e através de tudo, teima em seguir sua vontade; mas eu protesto que...
- Vejo que não me entendeu, Senhor Reitor - disse Daniel com vivacidade.
- Entendi, entendi, homem. E julgo que não acho a propósito entrar agora em maiores explicações.
Daniel guardou silêncio.
- Mas não podiam tratar disso em casa? teimou João Semana, que não largava assim facilmente uma idéia, de que se tivesse apossado.
- E a dar-lhe! Não há que se lhe faça - dizia o reitor. - Homem, nós não queríamos que a Margarida soubesse nada disto, porque... porque... Mas tu vais a cavalo, e nós a pé. Segue o teu caminho, e apressa-te, que a Joana já há de estar com cuidado pela tua demora.
- E eu com vontade à ceia.
- Então, por que esperas? Vai com Deus, homem.
- Até amanhã, abade. Adeus, Daniel. Olhe lá como se porta, rapaz. Juizinho!... senão está mal servido com a sua vida. Lembre-se daquele frade...
- Aí, se te pegas a contar histórias, não chegas a casa à meia noite.
- Pois já não conto.
E fustigando a égua, desapareceu cedo da vista dos dois.
Logo que se afastou, Daniel ia dirigir-se ao padre.
- Senhor Reitor, foi providencial a sua vinda. Acredite porém...
O gesto cheio de severidade, com que o reitor o acolheu, não o deixou continuar.
- Basta. Não quero escutá-lo. Explicações não as preciso, por que ouvi tudo; justificações não as tem, não as pode ter, para dar. Boas-noites.
E, colocando-se diante da porta de suas pupilas, à frente da qual haviam chegado, afastou-se para deixar passar Daniel.
- Mas... - ia este a dizer.
- Boas-noites - repetiu secamente o reitor, e tão secamente, que fez perder a Daniel a coragem de insistir.
Curvando-se com respeito diante do velho, retirou-se dali.
O reitor, ficando só, entrou em casa das raparigas.
Depois de trocar algumas palavras com Margarida, chamou de parte Clara, e em tom um pouco desabrido, disse-lhe:
- Julgo que recebeste hoje um aviso do teu Anjo da Guarda, Clara. Olha agora se o aproveitas.
Quando a rapariga, levantando para ele os olhos, ia a interrogá-lo, o padre afastou-se, dizendo-lhe simplesmente:
- Adeus.
Dissera bem o reitor.
Clara ouvira de fato o seu Anjo da Guarda.
Aquela noite conheceu o perigo do caminho que seguira, a sorrir; e resolveu fugir-lhe. E iria já a tempo? pensava ela.
Da involuntária entrevista, que tivera com Daniel, saíra salva de todo? de todo livre de suspeitas?
A voz de João Semana, chamando-a de longe, mostrava-lhe que ela fora reconhecida. Mas que se passara depois? O reitor parecia também estar informado do sucedido. Como o teria suspeitado ou previsto?
Mas, por outro lado, o tom moderado das palavras que lhe dissera, levou-a a crer que ele conhecia a verdadeira extensão da sua culpa, e não a exagerava.
No meio desta corrente de pensamentos, Clara, às vezes estremecia.
Se no dia seguinte, lembrava-se então, se levantasse contra si um desses boatos surdos, rápidos a propagar-se, prodigiosos a crescer, que infama, que mancham de lodo as mais firmes reputações, e inoculam seu veneno sutil numa existência inteira?
A esta lembrança, Clara erguia as mãos com terror.
Aos pés de uma imagem da Virgem, pedia então misericórdia, e prometia evitar, dali em diante, todas as ocasiões de novos perigos. Daquela condenação, cuja lembrança bastava só para a assustar assim, a salvara um acaso... ou antes a Providência.
O reitor, a cujos ouvidos continuavam a chegar todos os dias vozes desfavoráveis a respeito de Daniel, andava inquieto por causa da assiduidade com que o vira freqüentar as proximidades da casa das suas pupilas.
Aquelas prolongadas palestras, da rua para a janela, podiam dar que falar, receava ele; e cedo viu que efetivamente iam já dando.
Qual não foi, pois, o seu desassossego, quando da casa de um pobre enfermo que fora confessar, viu às trindades daquele dia, passar furtivamente, e meio disfarçado, um homem, que, apesar e todo o disfarce, o reitor logo conheceu ser Daniel.
Deu-lhe uma pancada o coração, e, mal que pôde, desobrigou-se de sua santa tarefa, saiu apressado, e correu à casa de Margarida, a quem perguntou pela irmã.
Sabendo que naquele momento tinha ela saído para a fonte, para ali se dirigiu também o velho, mas por outro caminho, que o levou ao próximo pinheiral.
Chegou ali justamente quando Daniel aparecia a Clara; e pôde, sem ser visto, assistir a todo o diálogo entre os dois.
Foi por esta forma que o reitor, a quem muitas vezes estava confiado o papel de Providência na sua paróquia, conseguiu salvar oportunamente a boa fama de Clara, no conceito de João Semana, e provavelmente, na opinião geral da terra.
Se as recordações desta noite agitavam o espírito de Clara, não deixavam mais indiferente e tranqüilo o de Daniel.
Cruzando a passos largos o pavimento do quarto, velou grande parte da noite.
Poucas provações mais amargas há para os caracteres humanos do que a de se sentirem desprezados pela própria consciência.
Experimentava-o Daniel, então.
- Têm razão os que desconfiam de mim - pensava ele - conhecem-me melhor que eu próprio. Que sutis distinções ando eu a marcar por aí, entre o meu proceder e o de muitos miseráveis, que me causam tédio e desprezo? Que ridículas lamentações de homem não compreendido são as minhas? É no que se vingam sempre aqueles, cujos sentimentos inspiram aversão geral... Clamam-se que ainda não encontraram o espírito ou coração de harmonia com o seu. Vejamos. Pois não é infame o meu procedimento? Que lhe falta para ser completamente infame? Que espero eu de Clara? Para que a persigo? Para que a procurei hoje? - Não hesitei em dar estes passos, que, na aparência, a podem perder... E hesitaria em perdê-la na realidade? Quem mo assegura? tenho acaso certeza disso?
E, passeando mais agitado ainda, conservou-se por muito tempo sob o domínio desta idéia. depois continuou com mais exaltação:
- Tenho, sim. Não rebaixemos também a tal ponto os nossos sentimentos. Eu sou volúvel, imprudente, inconsiderado; conheço e odeio-me, quando me vejo assim; porém não sou perverso, porém, não sou capaz de uma traição infame... Queria que me acusassem de tudo, mas que não me suspeitassem disso, e muito menos Clara, essa generosa rapariga, e muito menos o reitor, esse homem honrado... Mas o que importam as minhas intenções, se dou lugar a que se diga, a que se possa pensar em calúnia! Se não fosse hoje o reitor, a quem a Providência parece haver inspirado, que se diria amanhã nesta mexeriqueira terra? - de mim, digam lá o que quiserem; mas daquela rapariga... É tempo de me fazer outro homem. E poderei consegui-lo? este meu temperamento é de uma mobilidade! pequenas coisas fazem-lhe perder o equilíbrio, que por momentos a razão consegue dar-lhe. Será pois isto em mim um mal incurável! É verdade que os médicos falam de certos estados nervosos, que pequenas impressões sustentam e exacerbam, e que, muitas vezes, uma profunda comoção consegue serenar, dando a esses pensamentos a estabilidade que não tinham. O estado de meu coração é assim. Talvez ainda não experimentasse a têmpera, que tem de o fortificar; talvez. Em todo o caso devo lutar comigo mesmo. Mas poderei resignar-me à má opinião que de mim conserva aquela rapariga? Não; preciso falar-lhe uma vez ainda para que me perdoe e restitua a sua confiança; serei depois para ela um amigo sincero, um verdadeiro irmão. Hei de falar-lhe.
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