No dia seguinte, Daniel voltou. A família Esquina, até sem exceção do elemento masculino, sorriu-lhe cordialmente.
O que fizera esquecer assim ao tendeiro as suas negras apreensões, e abrira em sorrisos aqueles sobrecenhos da véspera?
O leitor, que toma a peito, decerto, a varonil rijeza de caráter do tesoureiro da confraria do Sacramento, não me perdoaria se eu não explicasse o fenômeno.
Foi o caso que, na véspera, depois que Daniel se retirou, a menina Francisca, ainda pensativa e enleada, veio à janela para o ver passar, e ao perdê-lo de vista, retirou-se suspirando.
Este suspiro entrou pelos ouvidos da mãe, a qual chegava à sala naquela ocasião.
A Senhorª Teresa teve uma idéia.
Este fenômeno dava-se, de vez em quando, na esposa do Senhor João da esquina.
- Tem umas maneiras muito bonitas este rapaz - disse ela, fixando na filha o olhar mais investigador que tinha à sua disposição.
- Tem - respondeu esta secamente.
- Ou ele ou o João Semana, a quem ninguém pode tirar da boca uma palavra delicada. Este é coisa mais fina.
- É - replicou a outra.
- Bem mostra que tem vivido entre gente polida e educada.
- Bem - continuava a menina.
- E não lhe hão de faltar bons casamentos, a esse rapaz.
- Não - dizia a filha.
- Isso há de ser bonito agora. Todas as raparigas da terra a enfeitarem-se para lhe agradar. Há de ter que ver.
- Há de.
A Senhorª Teresa principiava a impacientar-se com o laconismo da filha.
- Mas acham-se muito enganadas - continuou ela - um rapaz assim não cai facilmente. Estas nossas raparigas são umas estúpidas. Louvado seja Deus. Não sabem dizer duas palavras. E desembaraço é o que se quer.
- É...
- E por que não o hás de tu ter, menina? - acrescentou ela, em tom mais baixo e insinuante.
- Eu?
- Tu, sim, por que não? Para que gastou teu pai contigo, a mandar-te aprender os verbos, senão para poderes agora mostrar o que és, e diferençar-te das outras?
A menina desta vez nem um monossílabo pronunciou. Encolheu os ombros só.
- Bem se via que o Senhor Daniel logo conheceu com quem lidava. Cuidas tu que ele se gastava assim com qualquer Maria do monte? Diz-lhe que sim. Ele bem sabe que seria deitar pérolas a porcos. Por isso, menina, não deixes perder a ocasião. Acredita que darás muito gosto a teus pais, se...
A Senhorª Teresa vacilou ao principiar a condicional, em que ela queria conservar a conveniente dignidade materna.
- Se?... perguntou a filha, e foi este de todos os monossílabos, que até ali tinha soltado, o mais embaraçoso para a mãe.
- Se... sim... quero eu dizer, que eu e o teu pais não levaríamos mal se... um dia o Senhor Daniel nos viesse pedir a tua mão.
O ar de satisfação, que se desenhou no rosto da esposa do Senhor João da Esquina, mostrou que ela estava contente consigo pela construção final da frase.
A menina ao ouvi-la, baixou os olhos; devia ver-se corar, se tal fenômeno fosse de possível observação nas faces dela. Enquanto a palavras, limitou-se a balbuciar um "Ora!" eloqüente de graciosa confusão.
A Senhorª Teresa passou à loja, onde estava o marido.
- Ó João, olha que nós temos de conversas - disse-lhe ela, sentando-se ao pé do mostrador.
- Vens falar-me do arsênico outra vez? - perguntou o marido inquieto.
- Não! Ainda que, para dizer a verdade, não sei por que não o hás de tomar.
- E a dar-lhe!
- Mas ouve. Essa visita de Daniel do Dornas não te deu o que pensar?
- Deu-me que pensar, deu. E vou já mandar dizer-lhe que escusa de cá voltar, porque...
- Não sejas tolo, homem! Abre os olhos e vê - exclamou a Senhorª Teresa, com ar de mistério.
- O quê? - perguntou João da esquina, não, podendo deixar de abrir instintivamente os olhos.
- Que idade tem o Daniel?
- Eu sei lá?
- Vinte e tantos anos, vá. E que idade tem a Chica?
- Ela nasceu logo depois do cerco...
- Faz vinte anos para setembro.
- E daí?
- E daí? E quanto virá herdar o Daniel por morte do pais?
- Eu te digo... para cima de trinta mil cruzados, não falando em...
- E ainda perguntas: "E daí?".
João da Esquina olhou para a mulher significativamente, e não deu palavra. Tinham-se compreendido os dois.
Passados momentos, murmurou o homem:
- Olha que não era mau, se...
- Vê lá então agora...
- O pior é...
- Pois sim, eu não digo que...
- Mas ele já?... sim...
- Não, porém...
- Então quem sabe se...
- Isto é... até certo ponto.
- É verdade que também...
- Sim, pois está claro, e...
- E mau era que já...
- Com certeza... demais...
- Agora o que é preciso, é...
- Isso com o tempo... bem vês que...
Não sei se o leitor penetrou bem o sentido deste diálogo, cortado de expressivas reticências, e ao qual falta para o interpretar, a eloqüência do olhar e de gestos, que os dois cônjuges trocavam entre si. É certo que eles se compreenderam assim, e largas horas ficaram discutindo os teres e haveres de Daniel, e as probabilidades e vantagens de uma união entre a casa dos Esquina e a dos Dornas, as quais, com os anos, podiam fornecer sofríveis elementos para a confecção de um brasão heráldico.
A Senhorª Teresa foi encarregada por o marido de excitar na menina o ardor pela conquista, e industriada em dirigir o negócio de maneira a "prender o melro por asa" - foi a frase imaginosa, da qual João da Esquina se serviu.
- O pior há de ser o pai: mas segura-me tu o rapaz, que eu depois tomarei a meu cargo a empresa - dizia ele.
Conspirados assim os dois, sentiam-se radiosos de esperanças no futuro.
João da Esquina estava de tão condescendente disposição de espírito, que a sua cara metade aventurou um pedido.
- Agora para seres bonito, João, devias tomar arsênico.
O tendeiro deu um murro no mostrador.
- Não te calarás com isso, Teresa?!
Aí ficam expostas as razões dos sorrisos, com que o próprio João da Esquina recebeu Daniel, à segunda visita.
A mãe conduziu-o aos aposentos da menina e teve o discreto cuidado de se distrair à janela enquanto Daniel interrogava a doente.
O sistema de tratamento encetado continuou, e com igual êxito. Daniel desta vez, ao retirar-se, levava já a autorização para continuar por escrito as consolações principiadas vocalmente.
A Senhorª Teresa não deixou sair Daniel sem que ele visse todas as obras de crochê das industriosas mãos da menina, e os modelos caligráficos, que escrevera na mestra. De passagem. disse-lhe também que ela havia aprendido os verbos, coisa que pouca gente sabia na terra.
A Senhorª Teresa possuía fé, quase supersticiosa, nesta ciência dos verbos.
João da Esquina quis obrigar Daniel a beber um cálice de vinho, do qual ele a muito custo conseguiu dispensar-se.
- Da rua, Daniel voltou-se para cima, e vendo à janela a descendente dos Esquinas, cortejou-a com um sorriso cheio de amabilidades.
Um cotovelão da Senhorª Teresa fez notar ao marido esta circunstância. O homem conseguiu arranjar um gesto de finura, e recomendou gravidade.
Naquela tarde, Daniel, escrevendo a um seu antigo condiscípulo, dizia, entre outras coisas, o seguinte:
"Participo-te que se está desenvolvendo em mim o gosto pelo gênero campestre. Principio a achar mais dignas do pincel do artista estas formosuras expressivas e, quase direi, enérgicas da aldeia, do que as sempre monotonamente lânguidas maravilhas da cidade. Pena é que o reconhecesse um tanto tarde. Resta-me já pouco alento para as empresas de rapaz, e, demais, a minha nova posição social obriga-me a uma seriedade que me tolhe a ação. Agora só devo aspirar às doçuras emolientes do lar conjugal. Não obstante, andam-me a tentar uns olhos pretos, e eu não sei se sustentarei o equilíbrio por muito tempo. Encomenda a todos os santos a manutenção da minha sisudez, se não queres ver perdida a fama do teu amigo, no ninho seu paterno."
As visitas de Daniel à casa de João da Esquina continuaram.
O mulherio da vizinhança falava já.
A Senhorª Teresa deixava falar o mulherio. Se isso entrava até nos seus planos.
Uma vizinha, comadre e muito íntima da Senhorª Teresa - uma só ocultava à outra o mal que dela dizia pelas costas - falando-lhe um dia, aludiu a Daniel e às suas visitas.
- Então comadre? pelos modos, o nosso cirurgião gosta muito destes sítios.
- Cada um vai para onde mais lhe agrada, comadre.
- Isso lá é assim. E quem sabe o que será?
- Que será o que?
- Sim comadre, ele não é de raça que não seja a sua filha,
- Decerto que não é, não.
- Pois então...
- O futuro só Deus o sabe.
- É verdade. O ponto está que a sua pequena... Se ainda não lhe passou aquela cisma que teve para o Chico, sapateiro...
- O Chico, sapateiro! - exclamou indignada a Senhorª Teresa - Não. que a minha filha é cabedal muito fino, para ir às mãos de um remendão daqueles.
- Nisso tem razão. Inda se fosse com o Joaquim sacristão.
- Qual sacristão, nem meio sacristão! A comadre pensa que uma criatura se sustenta com aparas de hóstia e com escorralhas de galhetas?
A comadre aplaudiu com uma gargalhada o dito, e observou:
- O das estradas é que... está feito... já era assim mais jeitoso esse.
- Pássaro de arribação! Olhe, enfim não sei o que será. Esta pequena é muito difícil de contentar. Que quer? Está estragada de mimo... Mas se ela não o enjeitar... que tem agora ocasião de fazer um bom casamento, isso tem.
- E ele?
- Ele? pois não vê como o rapaz não nos larga a porta?
- Mas será... com boas idéias?
- Ora essa, comadre! Então julga que nós somos?...
- Não digo isso. Mas... Dizem que ele foi um estróina dos meus pecados...
- Pois sim; mas isso é com gente de pouco mais ou menos: mas nós cá...
Neste estado estavam as coisas, e assim duraram alguns dias mais.
Chegou a ocasião da Senhorª Teresa ter obtido alguma alavanca para fazer caminhar o negócio.
Houve neste dia longa conferência entre os cônjuges.
Ficou demonstrado para eles que o "melro estava preso pela asa".
João da Esquina , levantando a sessão, disse com modo solene:
- É ocasião de dar o grande passo!
E, enfiando a sua roupa dos domingos, preparou-se para sair.
Agitava-o certa comoção interior, própria das grandes ocasiões. Queixou-se disto à mulher; esta observou-lhe:
- O culpado és tu.
- Então? - perguntou o marido.
- Se tomasses o...
João da Esquina não ouviu o resto. Saiu impetuosamente.
A Senhorª Teresa, vindo à janela para o ver, dizia consigo:
- Mas por que não há este homem tomar o arsênico?
Que circunstância tinha convocado o conciliábulo conjugal, e o que foi fazer o João da Esquina assim ataviado.
Vê-lo-emos no capítulo seguinte.
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