Almeida Garrett........................Almeida Garrett......

VIAGENS NA MINHA TERRA

Prólogo da 2ª edição
1846

Os editores desta obra, vendo a popularidade extraordinária que ela tinha alcançado quando publicada em fragmentos na Revista, entenderam fazer um serviço às letras e à glória do seu país, imprimindo-a agora reunida em um livro, para melhor se poder avaliar a variedade, a riqueza e a originalidade de seu estilo inimitável, da filosofia profunda que encerra e sobretudo o grande e transcendente pensamento moral a que sempre tende, já quando folga e ri com as mais graves coisas da vida, já quando seriamente discute por suas leviandades e pequenezas.

As Viagens na Minha Terra são um daqueles livros raros que só podem ser escritos por alguém, como o autor de Camões e de Catão, de D. Branca e do Portugal na Balança da Europa, do Auto de Gil Vicente e do Tratado de Educação, do Alfageme e de Frei Luiz de Souza, do Arco de Santana, da História Literária de Portugal, de Adosinda e das Leituras históricas e de tantas produções de tão variado gênero, possui todos os estilos e, dominando uma língua de imenso poder, a costumou a servir-lhe e obedecer-lhe; por quem com a mesma facilidade sobe a orar na tribuna, entra no gabinete nas graves discussões e demonstrações da ciência - voa às mais altas regiões da lírica, da epopéia e da tragédia, lida com as fortes paixões do drama, e baixa às não menos difíceis trivialidades da comédia; por quem ao mesmo tempo, e como que mudando de natureza, pode dar-se todo às mais áridas e materiais ponderações da administração e da política, e redigir com admirável precisão, com uma exação ideológica que talvez ninguém mais tenha entre nós, uma lei administrativa ou de instrução pública, uma constituição política ou um tratado de comércio.

Orador e poeta, historiador e filósofo, crítico e artista, jurisconsulto e administrador, erudito e homem de Estado, religioso cultor da sua língua e falando corretamente as estranhas - educado na pureza clássica da antigüidade, e versado depois em todos as outras literaturas - da meia idade, da renascença e contemporânea - o autor das Viagens na Minha Terra é igualmente familiar com Homero e com Dante, com Platão e com Rousseau, com Tucídides e com Thiers, com Guizot e com Xenofonte, com Horácio e com Lamartine, com Maquiavel e com Chateaubriand, com Shakespeare e Eurípedes, com Camões e Calderón, com Goethe e Vírgilio, Schiller e Sá de Miranda, Sterne e Cervantes, Fénelon e Vieira, Rabelais e Gil Vicente, Addisson e Bayle, Kant e Voltaire, Herder e Smith, Bentham e Cormenin, com os Enciclopedistas e com os Santos Padres, com a Bíblia e com as tradições sânscritas, com tudo que a arte enfim e a ciência moderna têm produzido. Vê-se isto dos seus escritos, e especialmente se vê deste que agora publicamos apesar de composto bem claramente ao correr da pena.

Mas ainda assim, e com isto somente, ele não faria o que faz se não juntasse a tudo isto o profundo conhecimento dos homens e das coisas, do coração humano e da razão humana; se não fosse, além de tudo o mais, um verdadeiro homem do mundo, que tem vivido nas cortes com os príncipes, no campo com os homens de guerra, nos gabinetes com os diplomáticos e homens de Estado, no parlamento, nos tribunais, nas academias, com todas as notabilidades de muitos países - e nos salões enfim com as mulheres e com os frívolos do mundo, com as elegâncias e com as fatuidades do século.

De tantas obras de tão variado gênero com que, em sua vida ainda tão curta, este fecundo escritor tem enriquecido a nossa língua, é esta talvez, tornamos a dizer, a que ele mais descuidadamente escreveu; mas é também a que, em nossa opinião, mais mostra os seus imensos poderes intelectuais, a sua erudição vastíssima, a sua flexibilidade de estilo espantosa, uma filosofia transcendente, e por fim de tudo, o natural indulgente e bom de um coração reto, puro, amigo da justiça, adorador da verdade, e inimigo declarado de todo o sofisma.

Tem sido acusado de céptico: é a acusação mais absurda e que só denuncia, em quem a faz, ou grande ignorância ou grande má fé. Quando o nosso autor lança mão da cortante e destruidora arma do sarcasmo, que ele maneja com tanta força e destridade, e que talvez por isso mesmo, cônscio do seu poder, ele raras vezes toma nas mãos, veja-se que é sempre contra a hipocrisia, contra os sofismas, e contra os hipócritas e sofistas de todas as cores, que ele o faz. Crenças, opiniões, sentimentos, respeita-os sempre. As mesmas suas ironias que tanto ferem, não as dirige nunca sobre indivíduos; vê-se que despreza a fácil vingança, que, com tão poderosas armas, podia tomar de inimigos que não o poupam, de invejosos que o caluniam, e a quem, por cada dictério insulso e efêmero com que o têm pretendido injuriar, ele podia condenar ao eterno opróbio de um pelourinho imortal como as suas obras. Ainda bem que o não faz! mais imortais são as suas obras, e quanto a nós, mais punidos ficam os seus êmulos com esse desprezo do homem superior que se não apercebe de sua malignidade insulsa e insignificante.

Voltando à acusação de cepticismo, ainda dizemos que não pode ser céptico o espírito que concebeu e em si achou cores com que pintar tão vivos caracteres de crenças tão fortes como a de Catão, de Camões, de Frei Luís de Souza, e aqui nesta nossa obra, os de Frei Dinis, de Joaninha, da Irmã Francisca.

Não analisamos agora as Viagens na Minha terra: a obra não está ainda completa e não podia completar-se portanto o juízo: dizemos somente o que todos dizem e o que todos podem julgar já.

A nosso rogo, e por fazer mais digna da sua reputação esta Segunda publicação da obra, o autor prestou-se a dirigi-la ele mesmo, corrigiu-a, aditou-a, alterou-a em muitas partes, e a ilustrou com as notas mais indispensáveis para a geral inteligência do texto: de modo que sairá muito melhorada agora do que primeiro se imprimiu.