Acabei de ler a carta de Carlos, entreguei-a a Frei Dinis em silêncio. Ele tornou-me:
— Leu?
— Li.
— Que mais quer saber? Sinto que lhe posso dizer tudo: não o conheço, mas...
— Mas deve conhecer-me por um homem que se interessa vivamente...
— Em quê! Nas eleições, na agiotagem, nos bens nacionais?
— Não, senhor. Fui camarada de Carlos, não o vejo há muitos anos e...
— Nem o conhecia se o visse agora: engordou, enriqueceu, e é barão...
— Barão!
— É barão, e vai ser deputado qualquer dia.
— Que transformação! como se fez isso santo Deus! E Joaninha? e Georgina?
— Joaninha enlouqueceu e morreu. Georgina é abadessa de um convento em Inglaterra.
— Abadessa?
— Sim. Converteu-se a comunhão católica; era rica, fundou um convento em -shire, e lá está servindo a Deus.
— E esta pobre senhora, a avó de Joaninha?
— Aí está como a vê, morta de alma para tudo. Não vê, não ouve, não fala, e não conhece ninguém. Joaninha veio morrer aqui nesta fatal casa do vale, eu estava ausente, expirou nos braços dela e de Georgina. Desde esse instante a avô caiu naquele estado. Esta morta, e não espero aqui senão a dissolução do corpo para o enterrar, se eu não for primeiro; e Deus queira que não! Quem há de tomar conta dela, ter caridade com a pobre demente? Mas depois... oh! depois,,. espero no Senhor que se compadeça enfim de tanto sofrer e me leve para si.
— Mas Carlos?!
— Carlos é barão: no lho disse já?
— Mas por ser barão?...
— Não sabe o que é ser barão?
— Oh se sei! Tão poucos temos nós?
— Pois barão é o sucedâneo dos...
— Dos frades... Ruim substituição!
— Vi um dos tais papéis liberais em que isso vinha: e é a única coisa que leio dessas há muitos anos, Mas fizeram-mo ler.
— E que lhe pareceu?
— Bem escrito e com verdade. Tivemos culpa nós, é certo; mas os liberais não tiveram menos.
— Erramos ambos.
— Erramos e sem remédio. A sociedade já não é o que foi, não pode tornar a ser o que era: — mas mito menos ainda pode ser o que é. O que há de ser, não sei. Deus proverá.
Dito isto, o frade benzeu-se, pegou no seu breviário e pôs-se a rezar. A velha dobava sempre, sempre. Eu levantei-me, contemplei-os ambos alguns segundos. Nenhum me deu mais atenção nem pareceu cônscio da minha estada ali.
Sentia-me como na presença da morte e aterrei-me.
Fiz um esforço sobre mim mesmo, fui deliberadamente ao meu cavalo, montei, piquei desesperadamente de esporas, e não parei senão no Cartaxo.
Encontrei ali os meus companheiros; era tarde, fomos ficar fora da vila á hospedeira casa do Sr. L. S.
Rimos e folgamos até alta noite: o resto dormimos a sono solto.
Mas eu sonhei com o frade, com a velha — e com uma enorme constelação de barões que luziam num céu de papel, donde choviam, como farrapos de neve, numa noite polar, notas azuis, verdes, brancas, amarelas, de todas as cores e matizes possíveis. Eram milhões e milhões de milhões...
Nunca vi tanto milhão, nem ouvi falar de tanta riqueza senão nas Mil e uma noites.
Acordei no outro dia e não vi nada... só uns pobres que pediam esmola à porta.
Meti a mão na algibeira, e não achei senão notas... papéis!
Parti para Lisboa cheio de agoiros, de enguiços e de tristes pressentimentos.
O vapor vinha quase vazio, mas nem por isso andou mais depressa.
Eram boas cinco horas da tarde quando desembarcamos no Terreiro do Paço.
Assim terminou a minha viagem a Santarém; e assim termina este livro.
Tenho visto alguma coisa do mundo, e apontado alguma coisa do que vi. De todas quantas viagens porém fiz, as que mais me interessaram sempre foram as viagens na minha terra.
Se assim pensares, leitor benévolo, quem sabe? pode ser que eu tome outra vez o bordão de romeiro, e vá peregrinando por esse Portugal fora, em busca de histórias para te contar.
Nos caminhos de ferro dos barões é que eu juro não andar.
Escusada é a jura, porém.
Se as estradas fossem de papel, fá-la-iam, não digo que não.
Mas de metal!
Que tenha o governo juízo, que as faça de pedra, que pode, e viajaremos com muito prazer e com muita utilidade e proveito na nossa boa terra.
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