Não chamem exagerado ao que vai escrito no fim do último capítulo; senti o que escrevi, senti muito mais do que escrevi. O que poderá haver é desacerto nas palavras, porque em verdade não sei explicar a impressão que me jaz uma ruína neste estado. Desafinam-me os nervos, vibram-me numa discordância e dissonância insuportável. Queria ver antes estes altares expostos às chuvas e aos ventos do céu, — que o sol os queimasse de dia, — que à noite, à luz branca da lua, ou ao tíbio reflexo das estrelas, piasse o mocho e sussurrasse a coruja sobre arcos meio caídos.
Não me parecia profanado o templo assim, nem descaído de majestade o monumento. Podia ajoelhar-me no meio das pedras soltas entre as ervas úmidas, e levantar o meu pensamento a Deus, o meu coração à glória, à grandeza, o meu espírito às sublimes aspirações da idealidade. O material, o grosseiro, o pesado da vida não me vinham afligir aí.
Deus, a idéia grande do mundo — Deus, a Razão Eterna — Deus, o amor — Deus, a glória — Deus, a força, a poesia e a nobreza de alma — Deus está nas ruínas escalavradas do Coliseu, como nos zimbórios de bronze e mármore de S. Pedro.
Mas aqui!... nos pardieiros de um convento velho, consertado pelas Obras Públicas para servir de quartel de soldados — aqui não habita espirito nenhum.
Quero-me ir embora daqui!
E como? sem ver o túmulo del-rei Fernando? Não pode ser, é verdade.
Onde está ele?
No coro alto.
Subamos ao coro alto.
Oh! que não sei de nojo como o conte!
O belo jazigo do rei formoso e frívolo, tão dado às delicias do prazer como foi seu pai às austeridades da justiça, em que estado ele está!
Ó nação de bárbaros! Ó maldito povo de iconoclastas que é este!
O túmulo do segundo marido de D. Leonor Teles é um sarcófago de pedra branca, fina e friável, elegante e simplesmente cortada, com mais sobriedade de ornatos do que têm acabada escultura, casta e continente, como o não foi a vida do rei que ai encerraram depois de morto.
Percebem-se ainda vestígios das vivas cores em que foram induzidos os relevos da pedra branca: — estilo bizantino de que não sei outro exemplar em Portugal. Este é — ou antes, era — precioso.
Era: porque a brutalidade da soldadesca o deturpou a um ponto incrível, Imaginou a estúpida cobiça destes álanos modernos que devia de estar ali dentro algum grande haver de riquezas encantadas, — talvez cuidaram achar sobre a caveira do rei a coroa real marchetada de pérolas e rubis com que fosse enterrado, — talvez pensaram encontrar, apertado ainda entre as secas falanges dos dedos mirrados, aquele globo de oiro maciço que lhes figura o rei de espadas do sujo baralho de sua tarimba, e que elas tem pela indispensável e infalível insígnia supremo império: - talvez supuseram que, mesmo depois de morto, um rei devia de ser de oiro... Enfim quem sabe o que eles cuidaram e pensaram? O que se sabe, porque se vê, é que quiseram abrir e arrombar o túmulo. Tentaram, primeiro, levantar a campa; não puderam: tão solidamente está soldada a pedra de cima ao corpo ou caixão do jazigo, que o todo parece maciço e inconsútil. Mas neste empenho quebraram e estalaram os lavores finos dos cantos, os cairéis delicados das orlas; e a campa não cedeu: parece chumbada pelo anjo dos últimos julgamentos com o selo tremendo que só se há de quebrar no dia derradeiro do mundo.
A cobiça estólida dos soldados não se aterrou com a religião do sepulcro nem lhe causou atrição, ao menos, esta resistência quase sobrenatural das pedras do moimento. Vê-se que trabalhou ali, de alavanca e de aríete, algum possante e ponderoso pé-de-cabra; mas que trabalhou em vão muito tempo.
Desenganaram-se enfim com a tampa; e resolveram atacar, mais brutalmente mas com mais vantagem, as paredes do sarcófago, que justamente suspeitaram de menos espessas. Assim era; e conseguiram na parede da frente abrir um rombo grosseiro por onde entra fácil um braço todo e pode explorar o interior do túmulo à vontade.
Assim o fiz eu, que meti o meu braço por essa abertura barrada, e achei terra, pó, alguns ossos de vértebras, e duas caveiras, uma de homem, outra de criança.
Não me lembra que haja memória alguma de infante que aí fosse sepultado também, segundo faziam os antigos muitas vezes que punham os cadáveres das crianças nos jazigos dos pais, dos parentes, até de meros amigos de suas famílias.
Tive, confesso, uma espécie de prazer maligno em imaginar a estúpida compridez de cara com que deviam de ficar os brutais profanadores, quando achassem no túmulo do rei o que só têm os túmulos — de reis ou de mendigos — ossos. terra, cinza, nada!
Por mim, estive tentado a furtar a caveira dei-rei D. Fernando. Se acreditasse na frenologia, parece-me que não tinha resistido. Não creio na ciência, felizmente — neste caso — para a minha consciência. Também não sei o que faria se a caveira fosse de outro homem. Mas o fraco rei que fez fraca a fraca gente não são relíquias as suas que se guardem,
Oh! e quem sabe? Esta profanação, este abandono, este desacato do túmulo de um rei, ali na sua terra predileta — D. Fernando era santareno de afeição — não será ele o juízo severo da posteridade, a vindita pública dos séculos, que tardia mas ultrajante, cai enfim sobre a memória reprovada do mau príncipe, e lhe desonra as cinzas como já lhe desonrara o nome?
Quero acreditar que tal não podia suceder aos túmulos de D. Dinis, de D. Pedro I, dos dois Joanes I e II, de...
Sim: e aonde está o de Camões? O de Duarte Pacheco aonde esteve? que ainda é mais vergonhosa pergunta esta última.
Em Portugal não há' religião de nenhuma espécie. Até a sua falsa sombra, que é a hipocrisia, desapareceu. Ficou o materialismo estúpido, alvar, ignorante, devasso e desfaçado, a fazer gala de sua hedionda nudez cínica no meio das ruínas profanadas de tudo o que elevava o espírito...
Uma nação grande ainda poderá ir vivendo e esperar por melhor tempo, apesar desta paralisia que lhe pasma a vida da alma na mais nobre parte de seu corpo. Mas uma nação pequena, é impossível; há de morrer.
Mais dez anos de barões e de regime da matéria, e infalivelmente nos foge deste corpo agonizante de Portugal o derradeiro suspiro do espírito.
Creio isto firmemente.
Mas ainda espero melhor todavia, porque o povo, o povo povo, está são; os corruptos somos nós, os que cuidamos saber e ignoramos tudo.
Nós, que somos a prosa vil da nação, nós não entendemos a poesia do povo; nós, que só compreendemos o tangível dos sentidos, nós somos estranhos às aspirações sublimes do senso íntimo, que despreza as nossas teorias presunçosas, porque todas vêm de uma acanhada análise que procede curta e mesquinha dos dados materiais, insignificantes e imperfeitos; — enquanto ele, aquele senso intimo do povo, vem da Razão divina, e procede da síntese transcendente, superior, e inspirada pelas grandes e eternas verdades que se não demonstram porque se sentem.
E eu que descrevo isto serei eu demagogo? Não sou.
Serei fanático, jesuíta, hipócrita? Não sou.
Que sou eu, então?
Quem não entender o que eu sou, não vale a pena que lho diga...
Perdoa-me, leitor amigo, uma reflexão última no fim deste capitulo já tão secante, e prometo não refletir nunca mais.
Jesus Cristo, que foi o modelo da paciência, da tolerância, o verdadeiro e único fundador da liberdade e da igualdade entre os homens, Jesus Cristo sofreu com resignação e humildade quantas injustiças, quantos insultos lhe fizeram a ele e à sua missão divina; perdoou ao matador, á adúltera, ao blasfemo, ao ímpio. Mas quando viu os barões a agiotar dentro do templo, não se pode conter, pegou num azorrague e zurziu-os sem dor.
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