— Escuta! — disse eu ao leitor benévolo no fim do último capítulo. Mas não basta que escute, é preciso que tenha a bondade de se recordar do que ouviu no capitulo XXV e da situação em que ai deixamos os dous primos, Carlos e Joaninha.
Neste despropositado e inclassificável livro das minhas Viagens, não é que se quebre, mas enreda-se o fio das histórias e das observações por tal modo, que, bem o vejo e o sinto, só com muita paciência se pode deslindar e seguir em tão embaraçada meada.
Vamos pois com paciência, caro leitor; farei por ser breve e ir direito quanto eu puder.
Lembra-te como numa noite pura, serena e estrelada, aqueles dous se despediram um do outro no meio do vale, como se despediram tristes, duvidosos, infelizes, e já outros, tão outros do que dantes foram.
Nessa mesma noite, a ordenada confusão de um grande movimento de guerra reinava nos postos dos constitucionais. A longa apatia de tantos meses sucedia uma inesperada atividade.
Preparavam-se os sanguinolentos combates de Pernes e de Almoster, que não foram decisivos logo, mas que tanto apressaram o termo da contenda.
Carlos achou ordem de se apresentar no quartel general; partiu imediatamente. O pensamento absorvido por idéias tão diferentes, tão confuso, tão alheado de si mesmo, seguiu maquinalmente o corpo. Foi, chegou, recebeu as instruções que lhe deram, e voltou mais satisfeito, mais tranqüilo.
Tratava-se de morrer. Não sabe o que é verdadeira angústia d'alma o que ainda não abençoou a morte que viu diante de si, o que a não invocou ainda como único remédio de seu mal, ou, o que é mais desesperado, como única saída de suas fatais perplexidades.
Estes momentos são raros na vida, é certo; mas quando ocorrem, não há exageração nenhuma em dizer que antes, muito antes a morte do que eles.
Oh! ese a morte que se contempla é de honra e glória, se o entusiasmo, tirando fortemente a corda dos nervos, os faz vibrar naqueles tons secretos e misteriosos que arrebatam, e elevam o coração do homem a sublime abnegação de si e de tudo o que é pequeno, baixo e vil na sua natureza — oh então a morte parece um triunfo. uma bemaventurança por certo!
Carlos esqueceu-se de tudo, menos da sua espada, que afiou com escrupuloso cuidado, e das suas boas e seguras pistolas inglesas que limpou minuciosamente, carregou e escorvou com um verdadeiro amor de artista que se compraz no ultimo acabamento de um trabalho predileto.
O pouco da noite que lhe restava passou-se nisto; a marcha começou antes do dia. E os primeiros raios do sol foram saudados pelo fuzilar das espingardas e pelo trovejar dos canhões.
Combateu-se larga e encarniçadamente — como entre irmãos que se odeiam de todo o ódio que já foi amor, — o mais cruel ódio que tem a natureza!
O dia declinava já, quando num hospital em Santarém entravam muitas macas de feridos, e entre eles, um todo crivado de balas e coberto de sangue que, assim pelos restos do uniforme como por certo ar bem conhecido — e característico então — se via claramente ser do exército constitucional.
Eram muitas e perigosas as feridas desse homem; estenderam-no numa espécie de tarimba sobre que havia alguma palha, e quando lhe chegou a sua vez foi examinado e pensado como os outros.
Não dava sinal de padecer, tinha os olhos fechados, o pulso forte mas não agitado de febre; não proferia uma silaba, não soltava um ai, e prestava-se a tudo o que lhe diziam e faziam, menos a soltar da mão esquerda, que apertava contra o peito o que quer que fosse que ali tinha seguro e que lhe pendia ao pescoço de uma estreita fita preta.
Assim o deixaram largo tempo: ele adormeceu, Não seria largo, mas foi profundo o seu dormir.
Quando acordou já se não viu no vasto caravançarai daquele confuso hospital, mas num pequeno quarto arejado, limpo, quase confortável que em tudo parecia cela de convento, menos na boa cama em que jazia o doente, e na extremada elegância do enfermeiro que o velava.
O quarto era com efeito uma cela do convento de S. Francisco em Santarém, o doente o nosso Carlos; e o enfermeiro que o velava, uma bela mulher de estatura não acima de ordinária, mas nem uma linha menos, envolvida nas amplíssimas pregas de um longo roupão de seda daquela acertada cor que, em dialeto da rua Vivienne, se diz scabieuse; a cabeça toucada de finíssima Bruxelas, com uns laços de preto e cor de granada que realçavam a transparência das rendas, a infinita graça dos longos e ondeados anéis louros do cabelo, e a pureza simétrica de um rosto oval, clássico, perfeito, sem grande mobilidade de expressão, mas belo, quanto pode ser belo um rosto em que pouco da alma se reflete, e em que a serena languidez de uns olhos azuis entibia e mo dera a energia do sentimento, que não é menos profundo talvez, mas certamente se expande menos.
De joelhos junto ao leito de Carlos, com a mão direita dele nas suas, os olhos secos mas fixos nas descaídas pálpebras do soldado, aquela mulher estava ali como a estátua da dor e da ansiedade. A uma porta interior e que abria para uma espécie de alcova obscura, em pé, os braços cruzados e metidos nas mangas, o capuz na cabeça, estava um frade velho, alto mas curvado do peso dos anos ou dos sofrimentos.
O frade contemplava o enfermo e a enfermeira, mas visivelmente não queria ser visto nessa ocupação, porque ao menor estremecimento do doente recuava apressado e como assustado para o interior da sua alcova.
Uma só vela de cera alumiava este quadro, acidentando-o de fortes sombras, e dando-lhe um tom de solenidade verdadeiramente mágico e sublime.
Carlos segurava ainda na esquerda com o mesmo aferro o relicário ou talismã, ou o que quer que era que não queria desprender de seu coração. A bela enfermeira beijava de vez em quando aquela mão tenaz que estremecia a cada beijo, por mais suave e mimoso que fosse o leve contato desses lábios delicados.
A outra mão estava nas mãos dela, mas era insensível a tudo, essa. O silêncio era o do sepulcro: só se ouvia o respirar incerto e descompassado do enfermo.
De repente Carlos entreabriu as pálpebras e exclamou em inglês: Oh Georgina, Georgina, I love you stiIl. — (Georgina, Georgina, eu ainda te amo.)
Duas lágrimas — duas pérolas, destas que se criam com tanta dor no coração e que às vezes saem com tanto prazer dos olhos — romperam do celeste azul dos olhos da dama e suavemente correram por aquelas faces de urna alvura pálida e mortal.
Carlos acordou de todo, abriu os olhos e cravou-os fixamente no rosto angélico dessa mulher.
Esteve assim minutos: ela não dizia nada nem de voz nem de gestos: falavam-lhe só as lágrimas que corriam quietas, quietas, como corre uma fonte perene e nativa de água que mana sem esforço nem ímpeto, por um declive natural e fácil.
— Onde estou eu, Georgina?
— Nos meus braços.
— Que me sucedeu?
— Que não podes ser feliz senão neles: bem sabes, Sei..: devia saber,
— Devias: só agora hás de sabê-lo. O passado...
— O passado! qual?
— O passado deixou de existir.
— E o futuro?
— Eu não creio no futuro.
— Porquê?
— Porque tu me disseste que não cresse. Eu!... Eu sou um...
— Um homem. Oh!
— Basta e descansa. Amanha falaremos.
— Estou ferido, muito; e dói-me agora... não me doía.
— Estás, mas sem perigo: e estou eu aqui. Dorme.
— Não posso. Que casa é esta?
— S. Francisco de Santarém.
— Deus de misericórdia!
— És prisioneiro: sara e eu te livrarei.
— Tu? E tu aqui, como?
— Vim buscar-te, e achei-te assim.
— Georgina!
— Que tens tu ai tão seguro na mão esquerda?
— Vê: a medalha com o teu cabelo.
— Então amas-me tu ainda?
— Se te amo! Como no primeiro...
— Não mintas, Carlos... E dorme.
— O meu Deus, meu Deus! Georgina aqui, eu neste estado e... E a minha gente?
— A tua gente está salva.
— Aonde?
— Aqui mesmo, em Santarém.
— Quero... não quero. Oh sim, quero mas é morrer. Tende misericórdia de mim, meu Deus!
— Sossega, Carlos.
Mas Carlos não sossegava; emudeceu porque a torrente de seus pensamentos, o encontrado deles, e o inesperado daquela situação lhe embargavam a voz, e o quebrantamento das forças lhe tolhia os movimentos do corpo: mas o espírito inquieto e alvoroçado revolvia-se dentro com um frenesi louco. Era de pasmar o que ele sofria.
À força de bebidas calmantes o acesso diminuiu, a noite passou mais tranqüila; e pela manhã o doente não dava cuidado ao facultativo que o veio ver.
Proibiram-lhe falar; e Georgina tinha a coragem de lhe resistir, de lhe não responder todas as vezes que ele tentava quebrar o preceito de que dependia a sua vida... e a dela, porque a infeliz amava-o... oh! amava-o como se não ama senão uma vez neste mundo.
Passaram dias, semanas. Carlos estava melhor, estava salvo: Georgina pode dizer-lhe um dia:
— Carlos, meu Carlos, tu estas livre de perigo, vou restituir-te aos teus.
— Os meus!
— Os teus. Tua avó, tua prima...
— Joaninha! oh! Joaninha...
— Tua avó, que também tem estado a morrer, mas que enfim está escapa, ignora que tu estejas aqui. Ocultamo-lo igualmente a tua prima.
— Ah!
— Sim, assentamos de lho não dizer a uma nem a outra até que tivéssemos certeza da tua melhora.
Hoje porém vais vê-las. E eu...
— Tu!
— Eu não tenho aqui mais nada que fazer,
— Georgina!
— Carlos!
— Tu já me não amas?
— Não.
Seguiu-se um silêncio torvo e abafado como o da calma que precede as grandes tempestades. O rosto de Georgina estava impassível. Carlos estorcia-se debaixo de uma compressão horrível e incapaz de se descrever.
|