Eram as últimas horas do dia quando chegamos ao principio da calçada que leva ao alto de Santarém. A pouca freqüência do povo, as hortas e pomares mal cultivados, as casas de campo arruinadas, tudo indicava as vizinhanças de uma grande povoação descaída e desamparada. O mais belo, contudo, de seus ornatos e glórias suburbanas ainda o possui a nobre vila, não lhoestruíram de todo; são os seus olivais. Os olivais de Santarém, cuja riqueza e formosura proverbial é uma das nossas crenças populares mais gerais e mais queridas!... os olivais de Santarém lá estão ainda. Reconheceu-os o meu coração e alegrou-se de os ver; saudei neles o símbolo patriarcal da nossa antiga existência. Naqueles troncos velhos e coroados de verdura, figurou-se-me ver, como nas selvas encantadas do Tasso, as venerandas imagens de nossos passados; e no murmúrio das folhas, que o vento agitava a espaços o triste suspirar de seus lamentos pela vergonhosa degeneração dos netos...
Estragado como os outros, profanado como todos, o olival de Santarém é ainda um monumento.
Os povos do meio-dia, infelizmente, não professam com o mesmo respeito e austeridade aquela religião dos bosques, tão sagrada para as nações do norte. Os olivais de Santarém são excepção: há muito pouco entre nós o culto das arvores.
Subimos, a bom trotar das mulinhas, a empinada ladeira — eu alvoraçado e impaciente por me achar face a face com aquela profusão de monumentos e de ruínas que a imaginação me tinha figurado e que ora temia, ora desejava comparar com a realidade.
Chegámos enfim ao alto; a majestosa entrada da grande vila está diante de mim. Não me enganou a imaginação... grandiosa e magnífica cena!
Fora-de-Vila é um vasto largo, irregular e caprichoso como um poema romântico; ao primeiro aspecto, àquela hora tardia e de pouca luz, é de um efeito admirável e sublime. Palácios, conventos, igrejas ocupam gravemente e tristemente os seus antigos lugares, enfileirados sem ordem aos lados daquela imensa praça, em que a vista dos olhos não acha simetria alguma; mas sente-se na alma. E como o ritmo e medição dos grandes versos bíblicos que se não cadenciam por pés nem por silabas, mas caem certos no espírito e na audição interior com uma regularidade admirável.
E tudo deserto, tudo silencioso, mudo, morto! Cuida-se entrar na grande metrópole de um povo extinto, de uma nação que foi poderosa e celebrada, mas que desapareceu da face da terra e só deixou o monumento de suas construções gigantescas.
À esquerda o imenso convento do Sitio ou de Jesus, logo o das Donas, depois o de S. Domingos, célebre pelo jazigo do nosso Fausto português - seja dito sem irreverência à memória de S. Frei Gil que, é verdade, veio a ser grande santo, mas que primeiro foi grande bruxo. Defronte o antiqüíssimo mosteiro das claras, e ao pé as baixas arcadas góticas de S. Francisco... de cujo último guardião, o austero Frei Dinis, tanta coisa te contei, amigo leitor, e tantas mais tenho ainda para te contar! À direita o grandioso edifício filipino, perfeito exemplar da maciça e pedante arquitetura reacionária do século dezessete, o Colégio, tipo largo e belo no seu gênero, e quanto o seu gênero pode ser, das construções jesuíticas...
Não há alma não há gênio, não há espirito naquelas massas pesadas, sem elegância nem simplicidade; mas há uma certa grandeza que impõe, uma solidez travada, uma simetria de cálculo, umas proporções frias, mas bem assentadas e esquadriadas com método que revelam o pensamento do século e do instituto que tanto o caracterizou.
Não são as fortes crenças da Meia Idade que se elevam no arco agudo da ogiva; não é a relaxação florida do século quinze e dezesseis que já vacila entre o bizantino e o clássico, entre o místico ideal do cristianismo que arrefece e os símbolos materiais do paganismo que acorda; não, aqui a Renascença triunfou, e depois de triunfar, degenerou. É a Inquisição, são os jesuítas, são os Filipes, é a reação católica edificando templos para que se creia e se ore, não porque se crê e se ora.
Até aqui o mosteiro e a catedral, a ermida e o convento eram a expressão da idéia popular, agora são a fórmula do pensamento governativo.
Ali estão — olhai para eles — defronte uns dos outros, os monumentos das duas religiões, o qual mais expressivo e loquaz, dizendo mais claro que os livros, que os escritos, que as tradições, o pensamento das idades que os ergueram, e que ali os deixaram gravados sem saber o que faziam.
Mais em baixo e no fundo desse declive, aquela massa negra é o resto ainda soberbo do já imenso palácio dos condes de Unhão.
Rodeamos o largo e fomos entrar em Marvila pelo lado do norte. Estamos dentro dos muros da antiga Santarém. Tão magnífica é a entrada, tão mesquinho é agora tudo cá dentro, a maior parte destas casas velhas sem serem antigas, destas ruas mourescas sem nada de árabe, sem o menor vestígio de sua origem mais que a estreiteza e pouco asseio.
As igrejas quase todas, porém, as muralhas e os bastões, algumas das portas, e poucas habitações particulares, conservam bastante da fisionomia antiga e fazem esquecer a vulgaridade do resto.
Seguimos a triste e pobre rua Direita, centro do débil comércio que ainda aqui há: poucas e mal providas lojas, quase nenhum movimento. Cá está a curiosa torre das Cabaças, a velha igreja de S. João de Alporão. Amanhã iremos ver tudo isso de nosso vagar. Agora vamos à Alcáçova!
Entramos a ponta da antiga cidadela. — Que espantosa e desgraciosa confusão de entulhos, de pedras, de montes de terra e caliça! Não há ruas, não há caminhos, é um labirinto de ruínas feias e torpes. O nosso destino, a casa do nosso amigo é ao pé mesmo da famosa e histórica igreja de Santa Maria de Alcáçova. Há de custar a achar em tanta confusão.
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