As estrelas luziam no céu azul e diáfano, a brisa temperada da primavera suspirava brandamente; na larga solidão e no vasto silêncio do vale distintamente se ouvia o doce murmúrio da voz de Joaninha, claramente si via o vulto da sua figura e da do companheiro que ela levava pela mão e que maquinalmente a seguia como sem vontade própria, obedecendo ao poder de um magnetismo superior e irresistível.
Passavam, sem ver e sem refletir onde estavam, por entre as vedetas de ambos os campos... e ao mesmo tempo de umas e outras lhe bradou a voz breve e estridente das sentinelas: — Quem vem lá?
Estremeceram involuntariamente ambos com o som repentino da guerra e de alarma que os chamava à esquecida realidade do sítio, da hora, das circunstâncias em que se achavam... Daquele sonho encantado que os transportara ao Éden querido de sua infância , acordaram sobressaltados... viram-se na terra erma e bruta, viram a espada flamejante da guerra civil que os perseguia, que os desunia, que os expulsava pára sempre do paraíso de delícias em que tinham nascido...
Oh! que imagem eram esses dois, no meio daquele vale nu e aberto, à luz das estrelas cintilantes, entre duas linhas de vultos negros, aqui e ali dispersos e luzindo acaso do transiente reflexo que fazia brilhar uma baioneta, um fuzil!... que imagem não eram dos verdadeiros e mais santos sentimentos da natureza expostos e sacrificados sempre no meio das lutas bárbaras e estúpidas, no conflito de falsos princípios em que se estorce continuamente o que os homens chamaram sociedade!
Joaninha abraçou-se com o primo; ele parou de repente e com a mão ao punho da espada.
— Quem vem lá? — tornaram a bradar as sentinelas.
— Ouves, Joana? — disse Carlos em voz baixa e sentida: — Ouves estes brados? É o grito da guerra que nos manda separar; é o clamor cioso e vigilante dos partidos que não tolera a nossa intimidade, que separa o irmão da irmã, o pai do filho!...
Quem vem lá? — bradaram ainda mais forte as sentinelas e ouviu-se aquele estridor baço e breve que de tão froixo é e tão forte impressão faz nos mais bravos ânimos... era o som dos gatilhos que se aramavam nas espingardas.
O momento era supremo, o perigo iminente e já inevitável... ali podiam ficar ambos, traspassados opostas dos dois campos contendores.
Como esses que, fiados em sua inocência e abnegação, cuidam poder passar por entre as discórdias civis sem tomar parte nelas, e que são, por isso mesmo, objeto de todas as desconfianças, alvo de todos os tiros — assim estavam ali os dois primos na mais arriscada e falsa posição que têm as revoluções.
Joaninha conheceu o perigo que os ameaçava; e com aquela rapidez de resolução que a mulher tem mais pronta e segura nas grandes ocasiões, disse para Carlos:
— Fala aos teus, faze-te conhecer e põe-te a salvo. Amanhã nos tornaremos a ver: eu te avisarei! Adeus!
— E tu, tu?... E as sentinelas dos realistas?...
— Não tenhas cuidado em mim. Desta banda todos me conhecem.
Deu alguns passos para o lado de sua casa e levantou a voz:
— Joaninha! Sou eu, camaradas, sou eu!
Imediatamente se ouviu o som retinido das coronhas no chão, e o riso contente dos soldados que reconheciam a benquista e bem-vinda voz de Joaninha... da “menina dos rouxinóis”.
— Vês, Carlos?... Adeus! até amanhã — disse ela baixo.
— Até amanhã, se...
— Se!... Pois tu?...
— Ouve: não digas a tua avó que me viste, que estou aqui: é forçoso, é indispensável, exijo-o de ti...
— E amanhã me dirás?...
— Sim.
— Prometo: não direi nada... Mas, oh! Carlos...
— Adeus!
Carlos deu dois passos para a banda das suas vedetas. Joana correu para o lado oposto. Mas ele parou e não tirou os olhos daquela forma gentil que deslizava como uma sombra pelo horizonte do vale, até que desapareceu e todo.
E ele imóvel ainda!
Faiscaram de repente como relâmpago um, dois, três... e a detonações que os seguiram, e o assovio das balas que vinham de após elas... Eram as sentinelas constitucionais que faziam fogo sobre o seu comandante que não conheciam, cujo silêncio e imobilidade o fazia suspeito.
Uma das balas ainda o feriu levemente no braço esquerdo.
— Bem, camaradas! — bradou Carlos caminhando rapidamente para eles, e erguendo a voz forte e cheia que tão conhecida era nas fileiras: — Bem! Fizeram a sua obrigação. Um de vocês que me aperte aqui o braço com este lenço.
— Carlos! — gritou ao longe uma voz fina, aguda, vibrante de terror pelo espaço; — Carlos! fala-me, responde: não te sucedeu nada?
— Nada, nada! Sossega.
E tornou a cair tudo no silêncio. Carlos retirou-se ao seu quartel numa choupana próxima. Os soldados olharam-se ente si e sorriram.
Um mais doutro disse para os outros:
— O nosso capitão não se descuida: ainda hoje chegou, e já nós lá vamos, hein?
— O nosso capitão é daqui, não sabes?
— Hum! tenho percebido. E ainda lhe dura? O homem é capaz!...
— Silêncio! Eu te direi logo a história toda: é uma prima.
— Ah! prima. Então não há nada que dizer.
— É a que eles chamam aqui...
— A menina dos rouxinóis? Essa é maluca.
— Gosta delas assim, que ele também o é.
— Pois a freira de S. Gonçalo, na Terceira?
— Maluca.
— E a Lady inglesa, que?...
— Maluquíssima essa! Não me há de admirar se a vir cair do ar um dia por aí como bomba. E não há de dar mau estalo!
— Pudera! E encontrando-se com a prima então!...
— Mas ela é prima ou é irmã?
— É uma tal parentela enrevezada a dessa gente da casa do vale!... dizem coisas por aí, que se eu as entendo!... E há um frade no caso, já se sabe...
— Oh!, ele há frade no caso?
— Há, e que frade! Um apostólico às direitas! Tão feio, tão magro! aparece por aí às vezes. Eu já o lobriguei um dia: e que famoso tiro que era! Quase que me arrependo de não ter...
— Isso! hoje íamos matando o nosso capitão por instantes. Ora agora se lhe matas o tio, ou pai, ou o que quer que é ...
— Um frade!
— Um frade não é gente?
— Não senhor.
— Está bom: basta de conversar por hoje. O que me parece é que nós temos cedo muita pancada rija.
— Venha ela, que isto já me aborrece.
Acenderam os cigarros e fumaram.
Com o mesmo sossego de espírito... santo Deus! acendem os homens a guerra civil, que altera e confunde por este modo todas as idéias, todos os sentimentos da natureza.
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