O frade entregou a carta a Joaninha, que, lançando os olhos ao sobrescrito, ficou inquieta e indecisa como quem receia e deseja e teme de saber alguma coisa. Ele com voz trêmula e sobressaltada acrescentou:
- Adeus, que são horas!... Leiam, e sexta feira que vem... me dirão...
Pois quê - disse timidamente a velha - não quer ouvir o que ele nos escreve?
- Sexta feira que vem - continuou Frei Dinis, sem ouvir ou sem entender a pergunta; - sexta feira que vem eu tomarei conta da resposta, e lha farei chegar pela mesma via... Só uma coisa! Nem palavra a meu respeito: eu para Carlos... morri.
- Dinis! - exclamou a velha fora de si -Dinis!...
O frade tornou de repente ao seu tom austero, e respondendo gravemente: - O quê, minha irmã?
- Era - disse ela tímida e submissa outra vez - era se, era que... Pois não há de ouvir ler a carta dele?
Frei Dinis não respondeu, mas ficou sentado: descaiu-lhe a cabeça sobre o peito, e abraçando-se com o bordão, não deu mais sinal de si.
A velha escutou em silêncio alguns segundos, e com aquele ouvido agudíssimo - penetrante vista dos cegos - percebeu sem dúvida o que se passava, e com mais conforto e serenidade na voz disse:
- Abra, Joana, lê, minha filha.
Joaninha abriu a carta, e percorreu com avidez as poucas linhas que ela encerrava.
- Não lês? - acudiu a avó com impaciência : - Lê, lê alto, Joaninha.
- É para mim só a carta - disse ela friamente,
- Para ti só, como? - tornou a outra.
- É para mim só esta carta... não diz nada que...
- Não diz nada! - replicou a avó. - Pois!... Lê, lê alto: seja como for, lê, e oiçamos.
Joaninha parecia hesitar ainda lançou os olhos ao frade, achou-o na mesma atitude impassível; voltou-se para a avó, viu-a ansiada e ansiosa... leu.
A carta era com efeito para ela só, e carta bem singela não continha senão as ingênuas expressões de um amor fraterno nunca esquecido, longas saudades do passado, poucas esperanças no futuro, quase nenhuma de se tornarem a ver tão cedo. Tudo isto porém era com a prima; para a desconsolada avó, para ninguém mais... nem uma palavra.
Joaninha ia lendo, lendo... e a voz a descair-lhe: no fim ajuntou uns abraços, umas saudosas lembranças, e não sei que frase incompleta e mal articulada em que se pedia a benção da avó.
A velha abanou a cabeça tristemente e disse:
- Ora pois... bendito, seja Deus!
Joaninha corou até o branco dos olhos... Inda bem que a não podia ver a avó! Mas viu-a Frei Dinis, e com a mão trêmula e os olhos arrasados de água lhe fez um mudo e expressivo sinal de aprovação e agradecimento. Joaninha corou outra vez, e logo se fez pálida como a morte; era a primeira vez que mentia ... e Frei Dinis, o austero Frei Dinis, aprová-la!
O frade levantou-se, e sem dizer palavra, tomou o caminho de Santarém.
Ouvia-se ao longe o arquejar de uns soluços sufocados... Seriam dele?
A avó e a neta abraçaram-se chorando.
Nenhuma delas disse palavra sobre a carta: a velha tinha percebido a piedosa fraude de Joaninha.
Oh! que existências que eram aquelas quatro! Esse frade, essa velha, essas duas crianças! E a maior parte da gente que é gente, vive assim... E querem, querem-na assim mesmo, a vida, têm-lhe apego! Oh, que enigma é o homem!
Tornou a passar outra semana, e o frade tornou a vir no prazo costumado, e levou a resposta da carta - resposta que Joaninha só escreveu e só viu - e dirigiu-a em Lisboa pela via segura que indicara.
Soube-se que fora entregue; mas semanas e semanas decorreram , os meses passaram de ano... e outra carta não veio.
No entretanto a guerra civil progredia; e depois das suas tremendas peripécias, o grande drama da Restauração chegava rapidamente ao fim. Eram meados do ano de 33, a operação de Algarve sucedera milagrosamente aos constitucionais, a esquadra de D. Miguel fora tomada, Lisboa estava em poder deles. Os tardios e inúteis esforços dos realistas para retomar a capital tinham ocupado o resto do verão. Já outubro se descoroava de seus últimos frutos, e as folhas começavam a empalidecer e a cair, quando uma sexta-feira, ao pôr do sol, Frei Dinis aparecia no vale mais curvado e mais trêmulo que nunca. Vinha do exército realista que então cercava Lisboa.
Joaninha não era ali, a velha estava só.
- Que nos traz, padre? - clamou ela mal o sentiu: - Soube dele? Tem escapado a estas desgraças, a esses combates mortais?
- Não sei nada, minha irmã; há três dias que de Lisboa se não pode obter a menor informação. As linhas estão fechadas e guarnecidas como nunca: tudo indica havermos de ter cedo algum combate decisivo.
- Deus seja com...
- Com quem, minha irmã?
- Com quem tiver justiça.
- Nenhum a tem. De um lado e de outro está a ambição e a cobiça, de um lado e de outro a imoralidade, a perdição e o desprezo da palavra de Deus. Por isso, vença quem vencer, nenhum há de triunfar.
- Ai, o meu pobre filho, o meu Carlos!
- Isso, irmã Francisca, isso! Peça a Deus que dê a vitória a seu neto e à impiedade por que ele combate. peça a Deus que vençam os inimigos declarados do seu nome, os destruidores dos seus altares, os profanadores de seus templos... Oh! que dia belo e grande não há de ser esse, quando Carlos... o seu Carlos vier expulsar às baionetas do pobre convento de S. Francisco, o velho guardião - que lhe não há de fugir, minha irmã!... dele menos que nenhum outro... que ajoelhado diante do altar inclinará a cabeça como os antigos mártires para cair na presença do seu Deus às mãos do seu...
- Dinis!... Padre!... Padre Frei Dinis, que horrorosas palavras saem da sua boca!... Meu neto, o meu Carlos não é capaz... ó meu Deus!...
- Seu neto detesta-me... e tem... tem razão.
- Não sabe a verdade ele... Carlos esta enganado, cuida... não sabe senão meia verdade: e eu, eu hei de - custe o que me custar - eu hei de...
- Há de o quê?
- Hei de desenganá-lo, hei de lhe dizer a verdade toda. Hei de prostrar-me na sua presença, hei de humilhar-me diante do filho da minha filha, hei de arrastar na poeira de seus pés estas cãs e estas rugas... morrerei de vergonha e de remorsos diante de meu filho, mas ele há de saber a verdade.
Saiam com tal ímpeto e com tão desacostumada energia estas misteriosas e tremendas palavras da boca da velha, que Frei Dinis não ousou contê-la; ouviu até ao fim, deixou quebrar o ímpeto da torrente, e erguendo então a sua voz austera mas pausada, disse naquele tom friamente decisivo que tanto se impõe aos ânimos apaixonados.
- Se tal fizesse, mulher, a minha maldição, a maldição eterna de Deus cairia sobre sua cabeça para sempre!... Ó mulher, pois não basta que ele me aborreça - não lhe basta que seu neto lhe perdesse o amor... quer... quer também que nos despreze?
A velha gemeu profundamente e, por um jeito de antiga reminiscência, levou as mãos aos olhos como se os tapasse para não ver. Então disse com desconsoladas lágrimas na voz:
- A vontade de Deus seja feita!
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