Passaram-se aqueles oito dias no vale, não já como se tinham passado tantas outras semanas em vagas de tristeza, em desconsolação e desconforto, mas em positiva ansiedade e aguda aflição pela certeza que trouxera o frade de se achar Carlos no Porto fazendo parte do pequeno exército de D. Pedro.
Incertos rumores, daqueles que percorrem um país em tempos semelhantes e que aumentam e exageram, confundem todo o sucesso, tinham chegado até as pacíficas solidões do vale com as notícias de combates sanguinários, de comoções violentas, de desacatos sacrílegos, de vinganças e represálias atrozes tomadas pelos agressores, retribuídas pelos que se defendiam.
Chegou a sexta-feira; e as horas desse dia, sempre desejado e sempre temido, foram contadas minuto a minuto - o qual mais longo, o qual mais pesado e lento de volver, quanto mais se aproximava o derradeiro.
O sol declinava já... e Frei Dinis sem aparecer!
No seu poiso ordinário ao pé da porta da casa, Joaninha com os olhos estendidos, a velha com os ouvidos alerta, devoravam o espaço na direção do nascente, esperando a cada momento, temendo a cada instante ver aparecer o conhecido vulto, ouvir o som familiar dos passos do frade.
E tão atentas, tão absortas estavam ainda neste cuidado, que não deram fé dum religioso que pelo lado oposto, isto é, da banda de Lisboa para ali se encaminhava a passos arrastados mas pressurosos.
Chegou rente a elas sem o sentirem; e uma voz conhecida, porém mais cava e funda do que nunca a ouviram, pronunciou a fórmula de saudação costumada:
- Deus seja nesta casa!
- Amém! - responderam ambas maquinalmente, com um estremeção involuntário, e voltando de repente a cara para o lado donde vinha a voz.
- Jesus! - disse depois a velha tornando a si, - Padre Frei Dinis, de onde vem tão tarde?
- Chego de Lisboa.
- De Lisboa? Deus lho pague!... Foi saber?...
- Fui, fui saber novas desta horrível guerra, desta tremenda visitação do Senhor à condenada terra de Portugal...
-E então, diga...
- Boas novas, boas novas trago!
- Sente-se, padre, sente-se. Joaninha chegue uma cadeira: descanse
- Não é tempo de descansar este, mas de vigiar e de orar.
- Pois que sucedeu, Padre? Não me tenha nessa horrível suspensão. Diga: onde está ele? Alguma desgraça grande lhe aconteceu, ó meu Deus!...
- E que me importa a mim o que aconteceu ou podia acontecer a mais um de tantos perdidos? Encherá a sua medida, irá após dos outros... caminha nas trevas com eles, e como eles só há de parar no abismo.
A estas derradeiras palavras do frade asperamente pronunciadas e em tom de indiferença e desprezo, seguiu-se aquele silêncio comprimido, aquela pausa de toda a conversação grave e íntima em que os pensamentos são tantos que se atropelam e não acham saída na voz.
Frei Dinis mentia....na dureza daquelas expressões mentia ao seu coração - não mentia ao seu espírito. Como o cáustico se aplica à epiderme para deslocar a inflamação interior, ele roçava o peito com as asperidões de sua doutrina e de seus princípios rígidos para amortecer dentro a viva dor d'alma que o consumia.
O frade estava por fora, o homem por dentro.
O observador vulgar não via senão o burel e a corda que amortalhavam o cadáver. O que atentasse bem naqueles olhos, o que reparasse bem nas inflexões daquela voz, diria: "Frade, tu mentes; mentes sem saberes que mentes: és sincero na tua fé, na tua austeridade, na tua abnegação: mas o teu sacrifício é como o de Abraão na montanha, e Deus sabe que tu não tens força para o cumprir."
Não o percebeu assim a pobre velha, a quem os rigores de Frei Dinis faziam tremer, e que para toda a afeição, para todo o sentimento humano julgava morto o coração do cenobita.
Ela que no silêncio das suas noites sempre veladas, na perpétua escuridão de seus dias sempre triste lutava há tanto tempo, lutava debalde para desprender das afeições do mundo aquele seu pobre coração, que queria imolar ao Senhor, ela via com santa inveja e admiração as sobre-humanas forças que imaginava no frade; e desanimada de o poder seguir nessas alturas da perfeição evangélica, recaía, mais desalentada e mais miserável que nunca, em toda sua fraqueza de mulher e de mãe.
Oh! não sabe o que é tormento, o que é inferno neste mundo, o que não sofreu destas angústias!
Mas permite Deus que as padeça quem não tem grandes culpas, grandes e irreparáveis erros que expiar neste mundo?
Eu creio firmemente que não.
Cansada e exausta já de tão porfiada luta, a velha perdeu de todo a razão com as derradeiras palavras do frade, e num paroxismo de choro exclamou:
- Dinis!... Frei Dinis, por aquele penhor sagrado que eu tenho em meu poder, por aquela preciosa cruz sobre a qual se derramaram as últimas lágrimas da minha desgraçada filha, Dinis!...
- Silêncio! - bradou o frade, arrancando um brado de dentro do peito que fez gemer os ecos todos do vale: - Silêncio, mulher! Não conjure o demônio que eu trago encarcerado neste seio, que à força de penitência mal pude domar ainda... que só a morte poderá talvez expelir. Mulher, mulher! este cadáver que já morreu, que já apodreceu em tudo o mais, que já o comem sem ele sentir, os bichos todos da destruição... este cadáver tem um único ponto vivo no coração... e o dedo do teu egoísmo aí foi tocar, ó mulher!... Pecado que estás sempre contra mim! Justiça eterna de Deus, quando serás satisfeita?
Rompera na maior violência a voz do frade, mas descaiu num tom baixo e medonho ao fazer esta última imprecação misteriosa. As derradeiras sílabas quase lhe morreram nos beiços convulsos, e ao balbuciá-las deixou-se cair, exausto e como quem mais não podia, na cadeira que Joaninha lhe chegara.
A velha, aterrada e confusa, tremia do que fizera, como diante do espírito imundo que seus malefícios evocaram, treme a maga assustada do seu próprio poder.
Passaram alguns segundos que nenhumas palavras podem descrever.
O frade levantou o rosto, olhou para ela, olhou para Joaninha... e como quem emerge, por grande esforço, de um peso enorme de águas que o submergiam, sacudiu a cabeça, sorveu um longo trago de ar, e disse na sua voz ordinária, só mais débil.
- Carlos, Senhora... minha irmã, Carlos está vivo; e eis aqui, vinda pelo cônsul de França, uma carta dele.
Tirou uma carta da manga e entregou a Joaninha.
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