Este é o único privilégio dos poetas: que até morrer podem estar namorados. Também não lhes conheço outro. A mais gente tem as suas épocas na vida, fora das quais lhes não é permitido apaixonarem-se. Pretenderam acolher-se ao mesmo benefício os filósofos, mas não lhes foi consentido pela rainha Opinião, que é soberana absoluta e juiz supremo de que se não apela nem agrava ninguém.
Anacreonte cantou, de cabelos brancos, os seus amores, e não se estranhou. Aristóteles mal teria a barba ruça quando foi daquele seu último namoro por que ainda hoje lhe apouqüentam a fama.
Ora eu filósofo seguramente não sou, já o disse; de poeta tenho o meu pouco, padeci, a falar a verdade, meus ataques assaz agudos dessa moléstia, e bem pudera desculpar-me com eles de certas fragilidades de coração... Mas não senhor, não quero desculpar-me como quem tem culpa, senão defender-me como quem tem razão e justiça por si.
Estou, com o meu amigo Yorick, o ajuizadíssimo bobo de el-rei de Dinamarca, o que alguns anos depois ressuscitou em Sterne com tão elegante pena, estou sim. "Toda a minha vida" diz ele "tenho andado apaixonado já por esta já por aquela princesa, e assim hei de ir, espero, até morrer, firmemente persuadido que se algum dia fizer uma ação baixa, mesquinha, nunca há de ser senão no intervalo de uma paixão à outra: nesses interregnos sinto fechar-se-me o coração, esfria-me o sentimento, não acho dez réis que dar a um pobre... por isso fujo às carreiras de semelhante estado; e mal me sinto aceso de novo, sou todo generosidade e benevolência outra vez".
Yorick tem razão, tinha muito mais razão e juízo que seu augusto amo el-rei de Dinamarca. Por pouco mais que se generalize o princípio, fica indisputável, inexcepcionável para sempre e para tudo. O coração humano é como o estômago humano, não pode estar vazio, precisa de alimento sempre: são e generoso só as afeições lho podem dar; o ódio, a inveja e toda a outra paixão má é estímulo que só irrita mas não sustenta. Se a razão e a moral nos mandam abster destas paixões, se as quimeras filosóficas, ou outras, nos vedarem aquelas, que alimento dareis ao coração, que há de ele fazer? Gastar-se sobre si mesmo, consumir-se... Altera-se a vida, apressa-se a dissolução moral da existência, a saúde da alma é impossível.
O que pode viver assim, vive para fazer mal ou para não fazer nada.
Ora o que não ama, que não ama apaixonadamente, seu filho se o tem, sua mãe se a conserva, ou a mulher que prefere a todas, esse homem é o tal, e Deus me livre dele.
Sobretudo que não escreva: há de ser um maçador terrível. Talvez seja este o motivo da indefinida permissão que é dada aos poetas de andarem namorados sempre. O romancista goza do mesmo foro e tem as mesmas obrigações. É como o privilégio de desembargador que tiravam dantes os fidalgos, quando ser desembargador valia alguma coisa... e tanta coisa!
Como hei de eu então, eu que nesta grave Odisséia das minhas viagens tenho de inserir o mais interessante e misterioso episódio de amor que ainda foi contado ou cantado, como hei de eu fazê-lo, eu que já não tenho que amar neste mundo senão uma saudade e uma esperança - um filho no berço e uma mulher na cova?...
Será isto bastante? Dizei-o vós, ó benévolas leitoras, pode com isto só alimentar-se a vida do coração?
- Pode sim.
- Não pode, não.
- Estão divididos os sufrágios: peço votação.
- Nominal?
- Não, não.
- Porquê?
- Porque há muita coisa que a gente pensa e crê e diz assim a conversar, mas que não ousa confessar publicamente, professar aberta e nomeadamente no mundo...
Ah! sim... ele é isso? Bem as entendo, minhas senhoras: reservemos sempre uma saída para os casos difíceis, para as circunstâncias extraordinárias. Não é assim?
Pois o mesmo farei eu.
E posto que hoje, faz hoje um mês, em tal dia como hoje, dia para sempre assinalado na minha vida, me aparecesse uma visão, uma visão celeste que me surpreendeu a alma por um modo novo e estranho, e do qual não podia dizer decerto como a rainha Dido à mana Anica:
Reconheço o queimar da chama antiga
Agnosco veteris vestigia flammae;
posto que a visão passou e desapareceu... mas deixou gravada na alma a certeza de que... Posto que seja assim tudo isto, a confidência não passará daqui, minhas senhoras: tanto basta para se saber que estou suficientemente habilitado para cronista da minha história, e a minha história é esta.
Era no ano de 1832, uma tarde de verão como hoje calmosa, seca, mas o céu puro e desabafado. Á porta dessa casa entre o arvoredo, estava sentada uma velhinha bem passante dos setenta, mas que o não mostrava. Vestia uma espécie de túnica roxa, que apertava na cintura com um largo cinto de couro preto, e que fazia ressair a alvura da cara e das mãos longas, descarnadas, mas não ossudas como usam de ser mãos de velhas; toucava-se com um lenço da mais escrupulosa brancura, e posto de um jeito particular a modo de toalha de freira; um mandil da mesma brancura, que tinha no peito e que afetava, não menos, a forma de um escapulário de monja, completava o estranho vestuário da velha. Estava sentada numa cadeira baixa do mais clássico feitio: textualmente parecia a que serviu de modelo a Rafael para o seu belo quadro da Madonna della Sedia.
Como nota histórica e ilustração artística, seja-me permitido juntar aqui em parêntesis que, não há muito, vi em casa de um sapateiro remendão, em Lisboa, no Bairro Alto, uma cadeira tal e qual; torneados piramidais, simples, sem nobreza, mas elegantes.
Tornemos à velhinha.
Estava ela ali sentada na dita cadeira, e diante de si tinha uma dobadoira, que se movia regularmente com o tirar do fio que lhe vinha ter às mãos e enrolar-se no já crescido novelo.
Era o único sinal de vida que havia em todo esse quadro. Sem isso, velha, cadeira, dobadoira, tudo pareceria uma graciosa escultura de Antônio Ferreira ou um daqueles quadros tão verdadeiros do morgado de Setúbal.
O movimento bem visível da dobadoira era regular, e respondia ao movimento quase imperceptível das mãos da velha. Era regular o movimento, mas durava um minuto e parava, depois ia seguindo outros dois, três minutos, tornava a parar: e nesta regularidade de intermitências se ia alternando como o pulso de um que treme sezões.
Mas a velha não tremia, antes se tinha muito direita e aprumada: o parar do seu lavor era porque o trabalho interior do espírito dobrava, de vez em quando, de intensidade, e lhe suspendia todo o movimento externo. Mas a suspensão era curta e mesurada; reagia a vontade, e a dobadoira tornava a andar.
Os olhos da velha é que tinham uma expressão singular: voltada para o poente, não os tirou dessa direção nem os inclinava de modo algum para a dobadoira que lhe ficava um pouco mais à esquerda. Não pestanejavam, e o azul de suas pupilas, que devia ter sido brilhante como o das safiras, parecia desbotado e sem lume.
O movimento da dobadoira estacou agora de repente, a velha poisou tranqüilamente as mãos e o novelo no regaço, e chamou para dentro da casa:
- Joaninha?
Uma voz doce, pura, mas vibrante, destas vozes que se ouvem rara vez, que retinem dentro da alma e que não esquecem nunca mais, respondeu de dentro:
- Senhora? Eu vou, minha avó, eu vou.
- Querida filha!... Como ela me ouviu logo! Deixa, deixa: vem quando puderes. É a meada que se me embaraçou.
A velha era cega, cega de gota serena, e paciente, resignada como a providência misericordiosa de Deus permite quase sempre que sejam os que neste mundo destinou à dura provança de tão desconsolado martírio. |