Escolheu uma grande tela, três ou quatro vezes maior que ele próprio, e instalou diante do cavalete uma plataforma móvel. De modo que poderia deslizar em todas as direções sem interromper o gesto, caso necessário, ou simplesmente afastar-se no mesmo nível do quadro, para avaliá-lo à distância.
Arriscou alguns traços rápidos, que logo abandonou. Arrependido, cobriu toda a superfície com um tom ocre e se pôs à deriva. Perseguiu verdes profundos, ensaiou vermelhos e novamente naufragou: acabou encalhado numa espécie de cinza subjacente, avesso a qualquer idéia.
Como não sabia que rumo tomar, entregou-se ao acaso. Espalha tinta em todas as direções e provoca a tela de ponta a ponta, até cair exausto. Mas nenhuma figura ou forma vem prestar socorro ao desamparo que sente. Um vento cortante arranha-lhe a espinha nua. E a viagem em torno de si mesmo desafia o caos.
As cores borbulham na tela formando um denso pântano, onde o espanto e a dor podem florescer a qualquer momento, suspeita Aquiles.
Ondas de claro/escuro varrem com ímpeto sua crescente ansiedade. Súbito,uma gargalhada cristaliza-se no amarelo retorcido. Ele estremece e tenta afugentar o medo.
O que aconteceria se atirasse uma pedra no misterioso azul que acaba de se instalar no ponto de tensão, embaixo? Pode ser um rio apto a correr, uma fonte pronta a jorrar. Ou talvez seja o próprio mar, disfarçado numa minúscula poça d'água.
Aquiles sabe da sede. Quanto ao significado do azul, escapa-lhe por completo.
No momento seguinte, uma mancha parda aparece no canto direito do quadro, perturbando a linha do horizonte. Sua forma inacabada sugere um falcão preste a alçar vôo, preste a abandonar o que poderia ser um frágil tronco, caso tivesse o artista esboçado uma árvore.
Sob ela, entretanto, um jovem arma seu arco, escolhe o alvo e, sem hesitar, dispara. Em seguida adormece à sombra do carvalho, ignorando o destino do pássaro e da flecha.
Deixai-o repousar, que a sorte bem pode esperá-lo. Deixai-o. O fim no começo está.
Um breve raio de sol pulsa na face suada do pintor e de novo se esconde. Nasce o dia lá pelos três quartos da tela, mas de forma suave, quem sabe amornando a poça d'água. Enquanto o diabo esfrega o olho, o pássaro alça vôo e mergulha na amplidão. Atrás dele segue a flecha disparada pelo jovem, um segundo depois.
O falcão dá uma volta completa, sem saber a terra redonda, mas cumprindo seu destino, e vem de volta fechando o círculo, a flecha em seu encalço, um segundo depois. E a densa floresta fica para trás.
É tempo do arqueiro retomar seu caminho. Através dos seus olhos que sabem a mel, todas as coisas deste mundo devem ser doces, arrematadas por tons dourados e quentes, puxando ao avelã. Mas disso não se pode ter certeza.
O fato é que o arqueiro desperta e que seus cabelos se confundem com o sol. Resplandece. Disposto a seguir viagem, tenciona os músculos, flexiona de leve a coluna e inclina a cabeça, preparando-se para o salto.
Ao se pôr de pé, imagina ouvir um ruflar de asas. Espreguiça comprido, boceja e abre os braços, entregando-se inteiro ao momento.
Recebe a flecha no meio do peito, na mesma velocidade do pássaro, na mesma direção que ele, mas um segundo depois. Gotas rubras esvoaçam tontas e um filete de sangue abre caminho na túnica alva.
Instintivamente, Aquiles empurra a plataforma e contempla a tela à distância.
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