Procurar imagens
     
Procurar textos
 

 

 

 

 

 

ALEXANDRE HERCULANO
O Bispo Negro (1130)
 

VIII

Um clérigo velho, montado em uma alentada mula branca, vindo de Coimbra seguia o caminho da Vimieira e, de instante a instante, espicaçava os ilhais da cavalgadura com seus acicates de prata. Em outras duas mulas iam ao lado dele dois mancebos com caras e meneios de beatos, vestidos de opas e tonsurados, mostrando em seu porte e idade que aprendiam ainda as pueris ou ouviam as gramaticais. Eram o cardeal, que se ia a Roma, e dois sobrinhos seus, que o haviam acompanhado.

Entretanto o príncipe partida de Coimbra sozinho. Quando pela manhã Gonçalo de Sousa e Lourenço Viegas o procuraram em seus paços, souberam que era partido após o legado. Temendo o carácter violento de Afonso Henriques, os dois cavaleiros seguiram-lhe a pista à rédea solta, e iam já muito longe quando viram o pó que ele alevantava, correndo ao longo da estrada, e o cintilar do sol, batendo-lhe de chapa na cervilheira, semelhante ao dorso de um crocodilho.

Os dois fidalgos esporearam com mais força os ginetes, e breve alcançaram o infante.

- Senhor, senhor; aonde ides sem vossos leais cavaleiros, tão cedo e açodadamente?

- Vou pedir ao legado do papa que se amerceie de mim...

A estas palavras, os cavaleiros transpunham uma assomada que encobria o caminho: pela encosta abaixo ia o cardeal com os dois mancebos das opas e cabelos tonsurados.

- Oh! ... - disse o príncipe. Esta única interjeição lhe fugiu da boca; mas que discurso houvera aí que a igualasse? Era o rugido de prazer do tigre, no momento em que salta do fojo sobre a preia descuidada.

- Memento mei, Domine, secundum magnam misericordiam tuam! - rezou o cardeal em voz baixa e trémula, quando, ouvindo o tropear dos cavalos, voltou os olhos e conheceu Afonso Henriques.

Em um instante este o havia alcançado. Ao perpassar por ele, travou-lhe do cabeção do vestido e, de relance, ergueu o monante: felizmente os dois cavaleiros arrancaram as espadas e cruzaram-nas debaixo do golpe, que já descia sobre a cabeça do legado. Os três ferros feriram fogo; mas a pancada deu em vão, aliás i crânio do pobre clérico teria ido fazer mais de quadro redemoinhos nos ares.

- Senhor, que vos perdeis e nos perdeis, ferindo o ungido de Deus - gritaram os dois fidalgos, com vozes aflitas.

- Príncipe - disse o velho, chorando -, não me faças mal; que estou à tua mercê! - Os dois mancebos também choravam.

Afonso Henriques deixou descair o montante, e ficou em silêncio alguns momentos.

- Estás à minha mercê? - disse ele por fim. - Pois bem! Viverás, se desfizeres o mal que causaste. Que seja alevantada a excomunhão lançada sobre Coimbra, e jura-me, em nome do apostólico, que nunca mais em meus dias será posto interdito nesta terra portuguesa, conquistada aos Mouros por preço de tanto sangue. Em reféns deste pacto ficarão teus sobrinhos. Se, no fim de quatro meses, de Roma não vierem letras de bênção, tem tu por certo que as cabeças lhes voarão de cima dos ombros. Apraz-te este contrato?

- Sim, sim! - respondeu o legado com voz sumida.

- Juras?

- Juro.

- Mancebos, acompanhai-me.

Dizendo isto, o infante fez um aceno aos sobrinhos do legado, que, com muitas lágrimas, se despediu deles, e sòzinho seguiu o caminho da terra de Santa Maria.

Daí a quatro meses, D. Çoleima dizia missa pontifical na capela-mor da Sé de Coimbra, e os sinos da cidade repicavam alegremente. Tinham chegado letras de bênção de Roma; e os sobrinhos do cardeal, montados em boas mulas, iam cantando devotamente pelo caminho  da Vimieira o salmo que começa:

In exitu Israel de AEgypto.

Conta-se, todavia, que o papa levara a mal, no princípio, o pacto feito pelo legado; mas que, por fim, tivera dó do pobre velho, que muitas vezes lhe dizia:

- Se tu, santo padre, viras sobre ti um cavaleiro tão bravo ter-te pelo cabeção, e a espada nua para te cortar a cabeça, e seu cavalo, tão feroz, arranhar a terra, que já te fazia a cova para ter enterrar, não sòmente deras as letras, mas também o papado e a cadeira apostolical.

 

>>>>>>>Nota