Solene era o espectáculo que apresentava a crasta da Sé de Coimbra. O sol dava, com todo o brilho de manhã puríssimo, por entre os pilares que sustinham as abóbadas dos cobertos que cercavam o pátio interior. Ao longo desses cobertos caminhavam os cónegos com passos lentos, e as largas roupas ondeavam-lhes ao bago suave do vento matutino. No topo da crasta estava o príncipe em pé, encostado ao punho da espada, e, um pouco atrás dele, Lourenço Viegas e os dois pajens. Os cónegos iam chegando e formavam um semicírculo a pouco distância de el-rei, em cuja cervilheira de malha de ferro ferviam buliçosos os raios do sol.
Toda a clerezia da Sé estava ali apinhada, e o príncipe, sem dar palavra e com os olhos fitos no chão, parecia envolto em fundo pensar. O silêncio era completo.
Por fim Afonso Henriques ergue o rosto carrancudo e ameaçador e disse:
- Cónegos da Sé de Coimbra, sabeis a que vem aqui o infante de Portugal?
Ninguém respondeu palavra.
- Se não sabeis, dir-vo-lo-ei eu - prosseguiu o príncipe -: vem assistir à eleição do bispo de Coimbra.
- Senhor, bispo havemos. Não cabe aí nova eleição - disse o mais e velho e autorizado dos cónegos que estavam presentes e que era o adaião.
- Ámen - responderam os outros.
Esse que vós dizeis - bradou o infante cheio de cólera -, esse jamais o será. Tirar-me quis ele o nome de filho de Deus; eu lhe tirarei o nome do seu vigário. Juro que nunca em meus dias porá Dom Bernardo pés em Coimbra: nunca mais da cadeira episcopal ensinará um rebelde a fé das santas escrituras! Elegei outro: eu aprovarei vossa escolha.
- Senhor, bispo havemos. Não cabe aí nova eleição - repetiu o adaião.
- Ámen - responderam os mais.
O furor de Afonso Henriques subiu de ponto com esta resistência.
- Pois bem! - disse ele, com a voz presa na garganta, depois de olhar terrível que lançou pela assembléia, e de alguns momentos de silêncio. - Pois bem! Saí daqui, gente orgulhosa e má! Saí, vos digo eu! Alguém por vós elegerá um bispo...
Os cónegos, fazendo profundas reverências, encaminharam-se para as suas celas, ao longo das arcarias da crasta.
Entre os que ali se achavam, um negro, vestido de hábitos clericais, tinha estado encostado a um dos pilares, observando aquela cena; os seus cabelos revoltos contrastavam pela alvura com a pretidão da tez. Quando o príncipe falava, ele sorria-se e meneava a cabeça, como quem aprovava o dito. Os cónegos começavam a retirar-se, e o negro ia após eles. Afonso Henriques fez-lhe um sinal com a mão. O negro voltou para trás.
- Como hás nome? - perguntou-lhe o príncipe.
- Senhor, hei nome Çoleima.
- És bom clérigo?
- Na companhia não há dois que sejam melhores.
- Bispo serás, Dom Çoleima. Vai tomar teus guisamentos, que hoje me cantarás missa.
O clérigo recuou: naquela face tisnada viu-se uma contracção de susto.
- Missa não vos cantarei eu, senhor - respondeu o negro com voz trémula -, que para tal auto não tenho as ordens requeridas.
- Dom Çoleima, repara bem no que te digo! Sou eu que te mando vás vestir as vestiduras de missa. Escolhe: ou hoje tu subirás os degraus do altar-mor da Sé de Coimbra, ou a cabeça te descerá de cima dos ombros e rolará pelas lájeas deste pavimento.
O clérigo curvou a fronte.
- Kirie-eleyson... Kirie-eleyson... Kirie-eleysom! - garganteava daí a pouco Dom Çoleima, revestido dos hábitos episcopais, junto ao altar da capela-mor. O infante Afonso Henriques, o Espadeiro e os dois pajens, de joelhos, ouviam missa com profunda devoção.
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