Aproximava-se o meado do duodécimo século. O príncipe de Portugal Afonso Henriques, depois de uma revolução feliz, tinha arrancado o poder das mãos de sua mãe. Se a história se contenta com o triste espectáculo de um filho condenado ao exílio aquela que o gerou, a tradição carrega as tintas do quadro, pintando-nos a desditosa viúva do conde Henrique a arrastar grilhões no fundo de um calabouço. A história conta-nos o facto; a tradição verosímil; e o verosímil é o que importa ao que busca as lendas da pátria.
Em uma das torres do velho alcácer de Coimbra, assentado entre duas ameias, a horas em que o sol fugia do horizonte, o príncipe conversava com Lourenço Viegas, o Espadeiro, e com ele dispunha meios e apurava traças para guerrear a mourisma.
E lançou casualmente os olhos para o caminho que guiava ao alcácer e viu o bispo D. Bernardo, que, montado em sua nédia mula, cavalgava apressado pela encosta acima.
- Vedes vós – disse ele ao Espadeiro – o nosso leal Dom Bernardo, que para cá se encaminha? Negócio grave, por certo, o faz sair a tais desoras da crasta da sua sé. Desçamos à sala de armas e vejamos o que ele quer. – E desceram.
Grandes lampadários ardiam já na sala de armas do alcácer de Coimbra, pendurados de cadeiras de ferro chumbadas nos fechos dos arcos de volta de ferradura que sustentavam os tectos de grossa cantaria. Pelos feixes de colunas delgadas, entre si separadas, mas ligadas sob os fustes por base comum, pendiam corpos de armas, que reverberavam a luz das lâmpadas e pareciam cavaleiros armados, que em silêncio guardavam aquele amplo aposento. Alguns homens de mesnada faziam retumbar as abóbadas, passeando de um para outro lado.
Uma portinha, que ficava em um ângulo da quadra, abriu-se, e dela saíram o príncipe e Lourenço Viegas, que desciam da torre. Quase ao mesmo tempo assomou no grande portal de entre o vulto venerável e solene do bispo D. Bernardo.
- Guardai-vos Deus, dom bispo! Que mui urgente negócio vos traz aqui esta noute? - disse o príncipe a D. Bernardo.
- Más novas, senhor. Trazem-me aqui a mim letras do papa, que ora recebi.
- E que quer de vós o papa?
- Que de sua parte vos ordene solteis vossa mãe...
- Nem pelo papa, nem por ninguém o farei.
- E manda-me que vos declare excomungado, se não quiserdes cumprir seu mandado.
- E vós que intentais fazer?
- Obedecer ao sucessor de São Pedro.
- Quê? Dom Bernardo amaldiçoaria aquele a quem deve o bago pontifical; aquele que o alevantou do nada? Vós, bispo de Coimbra, excomungaríeis o vosso príncipe, porque ele não quer pôr a risco a liberdade desta terra remida das opressões do senhor de Trava e do jugo do rei de Leão; desta terra que é só minha e dos cavaleiros portugueses?
- Tudo vos devo, senhor - atalhou o bispo - salvo a minha alma, que pertence a Deus, a minha fé, que devo a Cristo, e a minha obediência, que guardarei ao papa.
- Dom Bernardo! Dom Bernardo! - disse o príncipe, sufocado de cólera -, lembrai-vos de que afronta que se me fizesse nunca ficou sem paga!
- Quereis, senhor infante, soltar vossa mãe?
- Não! Mil vezes não!
- Guardai-vos!
E o bispo saiu, sem dizer mais palavras. Afonso Henriques ficou pensativo por algum tempo; depois, falou em voz baixa com Lourenço Viegas, o Espadeiro, e encaminhou-se para a sua câmara. Daí a pouco o alcácer de Coimbra jazia, como o resto da cidade, no mais profundo silêncio.
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