Era noite alta no Sítio São Caetano, na Serra do Paraopeba, e padre Inácio de Sousa Ferreira enclausurara-se dentro da capela. Não estava só. Do lado de fora, Caetano Borges, escondido atrás das árvores, espreitava os movimentos. Descobrira ao acaso, havia cerca de um mês, aqueles encontros furtivos durante a madrugada. Minutos após padre Inácio, a mulher entrou no santuário, escondida sob uma longa capa cujo capuz escondia o rosto. Da última vez, Caetano conseguiu se aproximar da capela. Ouviu vozes sem distinguir o teor da conversa, entrecortada de sussurros e gemidos abafados que não deixaram dúvidas sobre o que ocorria no interior do templo.
Embora dono da propriedade que mantinha com José Borges e o tio Francisco Borges de Carvalho, era padre Inácio o responsável pelo cumprimento das rígidas normas do lugar, o líder à frente do contrabando de ouro e fundição de moedas falsas. Desde o início daquela operação clandestina, em 1729, os parentes deixaram de exercer o comando e Caetano, ao descobrir a atividade ilícita, tinha um trunfo nas mãos que certamente abalaria a autoridade de padre Inácio. Naquela noite, Caetano estava decidido a descobrir a identidade da concubina. Tinha consigo arma de fogo e faca na algibeira, além de uma garrafa de cachaça para suportar não só o frio do ambiente, mas um tremor interno. Era uma sensação de pavor diante da missão imposta a si mesmo: seguir a mulher e desvendar a identidade da amante de padre Inácio. O próximo passo seria encontrar uma forma de desestabilizá-lo diante dos sócios da comunidade. Pouco antes do nascer do sol, os dois abandonaram a capela. Primeiro, padre Inácio. Depois, a mulher, que deixou o lugar através de uma trilha no meio da mata.
No final da manhã do mesmo dia, todos se reuniram na casa de pedra, fachada da fábrica de fundição de moedas falsas. Padre Inácio Ferreira era sempre o último a chegar. Abridores de cunhos, ferreiros, fundidores, escravos e uma dúzia de sócios o esperavam para a oratória semanal. A altivez estampada no rosto e o olhar frio silenciavam o ambiente assim que entrava. A fala grave impunha respeito ao relembrar as normas e os severos castigos a serem impostos a quem desobedecesse às regras. Todos ouviam os mandamentos régios em absoluto silêncio. O ritual, precedido da leitura de trechos da Bíblia, ganhava às vezes dimensões épicas. Padre Inácio discursava, gesticulava e alterava a modulação da voz - ora bradava, ora empregava um tom travestido de conselho, súplica ou queixa.
- Este negócio é dos mais graves que viu o mundo porque é crime de lesa-majestade e da primeira cabeça e por isso castigado com duras e severas penas, como são perder a vida na fogueira, todos os bens para a Coroa e ficar por sentença infame toda a geração. Incorre neste crime quem ajudou, aconselhou ou deu favor, pelo que os presentes já estamos compreendidos na terribilidade do referido caso em que entramos, uns obrigados da necessidade, outros sem correspondência, como os que para outros meios se não encontram. Sabemos que os modos de viver no país se cansaram, de sorte que é apontado com o dedo o que faz fortuna.
Inácio Ferreira, padre português, antigo capitão de Nau da Índia, chefiava, há dois anos, a operação. Fugiu das sucessivas perseguições do governo Luís Vaia Monteiro aos falsificadores do Fisco Real no Rio de Janeiro para dar continuidade ao negócio em Minas Gerais. Inteligente, culto e com incrível capacidade de comando, Inácio Ferreira contava com a conivência do governo de Minas e até de importantes integrantes da corte de Dom João V, embora o próprio rei estivesse à procura de falsificadores de barras de ouro e de moedas em toda a Colônia.
As dificuldades encontradas no Rio de Janeiro forçaram a instalação da fábrica em Minas Gerais. Os comparsas se beneficiaram do apoio de Manuel de C. Fonseca, secretário do governador de Minas Gerais, Dom Lourenço Almeida. Cúmplice da atividade, favoreceu a produção de barras de ouro falsas, conseguidas a partir de liga de latão, além de moedas com cunhos legítimos, furtados das Casas de Fundição oficiais.
Padre Inácio costumava interromper o ritual para molhar as palavras. Bebia solenemente a água retirada da moringa. Qual momento da eucaristia, levantava o braço direito sustentando o copo e prosseguia a leitura dos sacramentos sociais da comunidade para comungar a doutrina, uma espécie de Código de Honra:
- Nem o vinho nem a aguardente hão de entrar aqui. Salomão não proíbe esta bebida, sendo moderada. Pelo risco que há de passar de moderada a excessiva, diz que nem olhemos para tal, por entrar branda e no fim morder como a serpente e matar como o basilisco. De nada aproveita e pode desarrumar muito, bastando só este risco, ainda que dele se não seguisse dano algum.
Nesse momento, Caetano olhou de esguelha para o tio, buscava apoio para a decisão a ser tomada. Bastava apenas se levantar e contar a todos o que sabia. No fundo, porém, Caetano tinha a consciência de que não seria fácil convencê-los apenas com uma oratória contundente. Não tinha provas a apresentar. Além do cansaço, a ansiedade o consumia. As palavras de padre Inácio não encontravam mais eco dentro dele. A única saída para Caetano era contar ao tio e a José Borges o que descobrira, no entanto uma força estranha parecia freá-lo.
- Não nego o chocolate por ser sem perigo e substancial, mas não há de haver jogos, porque deles se seguem disputas e liberdades e delas desconfianças, lição que alguns me ensinaram em poucos dias de escola. Devo fechar a porta à desunião que entrará sem dúvida, pelo jogo.
O comandante da comunidade exercia a autoridade de um imperador naquele lugar, cujo trono, uma cadeira em jacarandá de assento e espaldar de couro lavrado localizada na capela, era refúgio no final do dia e durante certas madrugadas. Apenas Caetano tinha conhecimento do prolongado recolhimento do padre em horários nada convencionais. Pouco antes de deixar a propriedade, a mulher foi surpreendida por Caetano. Armado, obrigou a amante de padre Inácio a retirar o capuz. Reconheceu Joana, fornecedora de víveres do lugar.
Os mandamentos régios não proibiam o sexo, porém nada de encontros desse tipo dentro da fortaleza, uma vez que a atividade de falsificação ficava exposta a estranhos. E as mulheres eram vistas por padre Inácio com desconfiança, pelo menos nos discursos, onde assumiam o papel de Eva, responsável pela destruição do paraíso ao não conseguir guardar segredo da aventura mantida com Adão. Na teoria do líder, a serpente apenas fornecera a maçã. A entrada de mulher na fortaleza só era permitida durante o dia, e aos domingos, desde que fossem fornecedoras de mantimentos ou moradoras da vizinhança que compareciam às missas.
Para se divertir com as mulheres, cada sócio tinha a permissão de sair uma vez por semana, quando freqüentavam uma das bodegas encontradas nas estradas fora do vilarejo. Ninguém podia, no entanto, ausentar-se sem a devida licença, tampouco enviar ou receber cartas sem que passassem pelas mãos de padre Inácio. Manifestação artística, porém, era permitida.
- Não proíbo se gaste algum tempo, atendidas as obrigações da casa, em cantar e tocar, porque deste divertimento se segue o negócio de se congregarem cada vez mais os ânimos. Não haverá descomposição e, como a faca é supérflua na algibeira e nela arriscada, todos a porão em um mesmo lugar, assentando cada um consigo que ela não há de aproveitar de nada para os domésticos e companheiros, e para os de fora, havendo cuidado, haverá tempo de usarem de armas ofensivas de longe, assentando que não têm que desconfiar nem brigar com companheiro, considerando que somos levantados, isto é fora da lei, que dependemos de nós para nós mesmos, para nos conservarmos, e que somos soldados ou passageiros de Nau de Guerra com obediência ao Capitão dela que castiga com severidade a quem dentro da Nau faz movimentos.
O padre e capitão, após repassar as funções e obrigações de cada sócio, terminava o discurso com a reafirmação da própria autoridade:
- Armas, vigílias e gravíssima união e obediência à minha vontade, que graças a Deus testemunha para nosso cômodo, há de ser a salvação de todos em tanto risco, em tanto temor, que sempre deve andar diante dos olhos com prudência para prevenir o futuro e não para chorar como meninos. Pela parte de vosmicês está muito pouca coisa ou nada, que é a obediência. Pela minha parte está quase tudo, que são considerações indivisíveis e desembolso perpétuo.
A casa de fundição de moeda falsa no Paraopeba funcionava como regimento militar e tudo estava previsto para garantir segurança e resistência a tempo, diante da iminente chegada do inimigo. Havia uma implacável rotina diária em que todos tinham suas obrigações. As armas deveriam ser examinadas após o pôr do sol e estar carregadas e, caso necessário, os responsáveis providenciariam, com antecedência, o provimento de gêneros de pólvora, bala e pederneiras.
A alimentação também passava por rigoroso controle para que nada faltasse, principalmente nos períodos de seca. Os almoços, merendas, jantares e ceias eram fartos. A gula não era vista como pecado, desde que tudo estivesse na provisão. Comia-se com fartura e o desperdício era punido com rigor, com o cancelamento da refeição.
Todos os dias, um escravo e um branco providenciavam a lenha da cozinha e faziam carvão. Em qualquer área, o sócio que deixasse de trabalhar de acordo com as normas, perderia o salário da semana e corria o risco de perder todo o pagamento realizado para ser repartido entre todos. E quem ficasse doente era obrigado a executar as tarefas em dobro ao melhorar.
A entrada e saída de ouro passavam por controle ainda mais rígido. Sempre havia um sócio responsável pelos registros de produção e de qualquer irregularidade. A arrecadação de ouro, guardado em cofres, tinha o mesmo acompanhamento, assim como o ouro em pó originário do Serro. Na casa principal, onde ficavam os cofres, era proibido o acesso de escravos, bem como todos os cachorros não poderiam entrar nos alojamentos. Para Inácio Ferreira, os cães, do lado de fora, se sentiriam melhor e eram peças estratégicas na comunidade. Os latidos funcionariam como senhas eficazes em caso de invasão do inimigo. Durante as saídas do Sítio São Caetano, a comunidade jamais poderia ficar sem pelo menos um terço dos sócios.
Uma das coisas que mais deixava padre Inácio Ferreira incomodado era a segurança. Cada vez que a cancela, de dia ou de noite, fosse encontrada sem correntes e cadeados, todos que estivessem dentro da casa deveriam pagar uma multa de duzentos mil réis. Por isso, quem fosse sair da propriedade, deveria chamar alguém para fechá-la. Quem não avisasse, também pagaria duzentos mil réis e carregaria o carvão, junto com os escravos, durante quatro semanas.
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Em 20 de fevereiro de 1731, José Borges de Carvalho apeou do cavalo na porta da casa de Diogo Cotrim, em Sabará. Caminhou pensativo antes de anunciar a sua presença na casa do ouvidor. Não conseguira absorver, até então, a maneira covarde com que mataram Caetano, assassinado com um tiro pelas costas. Tinha a convicção de quem estava por trás do crime.
Não foi no mesmo dia da descoberta que Caetano contou a José Borges e ao tio Francisco o que sabia sobre padre Inácio. Joana era vistosa, cobiçada por quase todos os homens da comunidade. Acabou seduzindo Caetano na tentativa de evitar a queda de padre Inácio diante dos comparsas. Não porque gostasse daquele homem, mas as moedas de ouro que recebia do padre eram indispensáveis para sustentar a criação de porcos, galinha, a produção de farinha e verduras, além de financiar o comércio de escravos mantido pelo pai. No início, a mulher evitou contar a padre Inácio o que ocorrera, não só porque se sentiu atraída por Caetano, mas porque ficou com medo de ser acusada de não ter tido o devido cuidado para impedir de ser vista após a saída da capela.
Durante alguns meses, Joana recebeu as bênçãos de padre Inácio dentro do templo e a unção de Caetano no rio Paraopeba. Até o dia em que um dos homens de confiança de padre Inácio, escondido próximo à beira do rio, acompanhou o ritual pagão e denunciou o sócio ao comandante. No dia anterior ao crime, Caetano, que notara a mudança de comportamento de padre Inácio, contou toda a história ao tio. Com a morte do sobrinho, Francisco Borges decidiu por um fim à sociedade com padre Inácio. Após um primeiro contato com Diogo Cotrim, depois de retornar de uma viagem a Ouro Preto, Francisco entregou a José Borges um longo documento com minuciosa descrição da fazenda, um mapa com a demarcação de todos os locais de trabalho, depósitos e alojamentos.
José Borges entregou a missiva a Diogo Cotrim. O texto de seis páginas foi lido minuciosamente pelo corregedor da Comarca do Rio das Velhas:
"Senhor Doutor Ouvidor Geral Diogo Cotrim de Souza,
Obedecendo a Vossa Mercê, logo que cheguei a esta fazenda cuidei por todos os meios como havia para conseguir retirar meu sobrinho deste inferno e para lhe ir servir de guia com o pretexto de que vai para o Serro do Frio. Vossa Mercê, logo que ele seja chegado a essa Vila, e falando-lhe em segredo, como lhe encomendo, o mande por em parte oculta, para que não seja visto até se por pronta a diligência. Na serra, de dia, andam vigias contínuos. Assim que Vossa Mercê não deve continuar a marcha do Sítio do Rodeão por dia, senão muito já junto da noite. Chegado ao Boqueirão da Serra, se continuará o caminho na volta dele, junto a um despenhadeiro muito grande, donde deve haver muita cautela..."
Diogo Cotrim absorveu com precisão cada detalhe descrito por Francisco Borges. Ficaria atento à porteira principal, tomaria cuidado com as possíveis ciladas na descida entre os rochedos, nas pontes e na casa de vivenda. Até mesmo a senzala era perigosa, pólvora sob sol escaldante. Os escravos de confiança possuíam armas de fogo, muitas de dois tiros, baionetas, escopetas, cartucheiras, chuchos de ferro, hastes de pau comprido, balas de chumbo e barris de pólvora.
De todas as partes se poderia fazer fogo a peito coberto, com danos para os de fora. Os mapas descreviam cada lugar, os residentes das casas, a quantidade de armas e munições existentes, além de demarcar as distâncias entre a senzala, capela-mor, olaria, ferraria, casa de fundição e moeda, um pequeno rancho, uma roça, pontes e córregos. Diogo Cotrim cercaria também a saída para o rio Paraopeba, ponto de fuga da vivenda.
Ao término da carta, o ouvidor começou a organizar uma expedição à fábrica de fundição de moedas falsas. Convocou a Ordenança de Sabará, com alguns soldados de Dragões, conduzidos por homens de confiança, e algumas Companhias de Ordenanças de Morro Vermelho e Congonhas do Campo. Iniciou a viagem à serra no dia 5 de março de 1731, chegando à fortaleza do Paraopeba três dias depois. Eram mais de cem pessoas bem armadas, entre brancos e negros, que entraram na fazenda no meio da madrugada.
Depois de atravessar densa mata, os homens de Diogo Cotrim foram vistos próximos à porteira por Antônio Pereira de Sousa, sobrinho de padre Inácio. Assustado, começou a gritar e a atirar para o alto. Como não havia outra saída, a comitiva avançou. Rapidamente chegou até a porteira, sem corrente e fechadura como fora combinado com Francisco Borges. Um grupo se deslocou até a senzala e conseguiu desarmar os escravos. Parte dos homens, comandados pelo capitão de Morro Vermelho, cercou a capela e prendeu os que corriam assustados. Dali, somente fugiu um negro cozinheiro, que deu o alarme nas moradas mais distantes, inclusive nas casas de fundição, ferraria e moeda.
Tiros incertos foram disparados em várias direções. Ao invés de mostrarem resistência, muitos comparsas fugiram desnorteados pela mata. Durante a correria, peças de fabrico de moedas foram enterradas no mato, juntamente com algumas arrobas de ouro. Brancos e escravos fugiram pelo rio, desceram por canoas até o Rio das Velhas e dali seguiram viagem até o São Francisco; os mais afoitos tentaram escapar a nado.
A comitiva de Cotrim gastou quase uma hora para cercar a região e dominar os criminosos; os cachorros não ofereceram resistência, com exceção de um cão, que quase arrancou a perna de um dos homens do ouvidor. Foram poucas baixas e o corregedor iniciou a identificação dos objetos utilizados na fábrica de falsificação. Os homens de Diogo Cotrim encontraram barras de ouro fundido, arrobas em lingotes, ouro em pó, latão, almocafres e diversas peças utilizadas na fundição. Debaixo de um monte de lixo, a comitiva resgatou um embrulho com moedas recentemente fundidas.
Havia provas suficientes para incriminar os falsificadores, mas o chefe da fortaleza não foi encontrado na casa de pedra nem nos alojamentos. Ao entrar na capela-mor, Diogo Cotrim foi recebido a tiros, que passaram de raspão no seu braço. Sem perder tempo e para evitar a recarga da arma inimiga, os homens de Cotrim entraram na capela e correram em direção ao altar. Viram sob o retábulo um arcaz de sucupira semi-aberto, de onde partiram os tiros. O ouvidor se surpreendeu ao abrir o móvel; encontrou um homem encolhido, de joelhos, tentando recarregar a arma. Ao lado dele, havia um ostensório, uma bíblia, aguardente e chocolate. Era padre Inácio, com sinais de embriaguez, levado por Dom Diogo sem conseguir manifestar resistência.
Uma das marcas dessa história repousa há mais de dois séculos sobre a Serra da Moeda, em Brumadinho. A casa de pedra preserva as paredes de aspecto sombrio. As molduras das janelas e de uma única porta, vazadas pela luminosidade diáfana das brumas da serra, parecem deixar escapar tênues fios magnéticos a seduzirem o caminhante que descobre o lugar. Dentro da antiga fundição, lingotes e moedas cederam lugar a troncos enraizados de uma seiva dourada que brilha de longe sobre as copas das árvores. |