Procurar textos
 
 

 

 

 







ADRIANO MACEDO

A CABEÇA DAS BOTAS NEGRAS - INDEX

A primeira amante

     Morava em Belo Horizonte, no bairro Luxemburgo, num edifício de dez andares. Sob os alicerces do prédio, construído sobre uma encosta de morro, com seis andares abaixo do nível da rua, ficava a sala da zeladora, administrada naquela época pela dona Antônia. Ali, com mais dois comparsas mirins, decidimos entrar pelo basculante da janela lateral, que dava para um lote vago recheado de pés de mamona. A expedição despretensiosa ganhou dimensão de aventura porque buscávamos um tesouro. Cruzaríamos a fronteira do proibido. Sabíamos que Antônia, responsável pelo recolhimento de jornais e revistas velhas, descartados pelos moradores, depositava as publicações naquele quartinho. Incitado a ser o primeiro a entrar, atravessei o basculante aberto e desci apoiado numa mesa disposta ao lado da janela. Nenhum dos dois se dispôs a entrar antes que eu sinalizasse a existência do que procurávamos.

         Não perdi tempo. O cômodo, pequeno, recebia luz natural. Uma pilha de jornais e revistas encontrava-se do outro lado, junto a caixas de papelão dobradas. Tomei cuidado para não fazer barulho. Meu coração batia forte. Edições do Estado de Minas e do Jornal de Casa dividiam espaço com exemplares das revistas Veja, Manchete, Fatos & Fotos e das que perseguíamos, a Playboy.

         Fiquei fascinado quando me deparei com aquelas mulheres formidáveis nas capas, especialmente uma garota pela qual me apaixonei e já conhecia da novela Dancin’Days. Era Lídia Brondi. Vestia uma malha azul sob um short dourado, bem justo ao corpo. O bumbum saliente escapava para fora da roupa. Peguei mais duas revistas para sair logo dali. Não me recordo das capas. Quando caminhava para a janela, fui surpreendido por dona Antônia, que destrancou e abriu a porta mais rapidamente do que minha capacidade de reação.

         - Quê que você tá fazendo aí, menino?

         - Na... nada não.

         Dona Antônia viu o basculante entreaberto, olhou para o lado, constatou a pilha de revistas remexida, reparou no volume debaixo da minha camisa e, com voz serena, foi ela quem deu explicações.

         - Essas revistas dão um bom dinheirinho, meu filho. Ajudam a pagar as despesas do mês.

         Embora mais tranqüilo diante da reação de dona Antônia, não mostrei a ela o que tinha furtado. Por vergonha. Minha reação imediata foi propor uma oferta irrecusável. Poderia trazer-lhe uma dúzia de publicações. Meu pai assinava Veja e ainda tínhamos umas duas dezenas de revistas O Cruzeiro. Minha mãe não via a hora de se desfazer delas. 

         Ao sair, reparti as revistas com os vizinhos, menos a da Lídia Brondi, guardada debaixo da cama, entre o colchão e o estrado.

         Durante meses mantivemos essa relação secreta, silenciosa, platônica. Eu e Lídia Brondi. Dedicava algumas horas diárias à minha primeira musa da infância. Não fazia qualquer exigência. Aliás, não havia exigências a fazer, ela já me dera o que precisava, a oportunidade de conhecê-la por inteiro.

         É curioso o que se passa na cabeça de uma criança. Embora tivesse nas mãos aquela beldade, tinha tanto carinho com ela que não conseguia entender o que a motivava a tirar a roupa para tantas pessoas. Ainda não tinha muito o valor do dinheiro, mas a certeza de que, se um dia tivesse uma Lídia Brondi só para mim, não a deixaria ficar nua para ninguém.

         E vivíamos assim, eu e Lídia Brondi, nesses diálogos, sonhos e pensamentos mudos, até o dia em que minha mãe descobriu: eu me relacionava com uma mulher. “Um absurdo!”, “Onde conseguiu isso?”, “Você só tem oito anos!”. Pressionado, acabei contando toda a história. Sobrou para dona Antônia, a quem traí para salvar minha pele e com quem minha mãe só não foi “às vias de fato” porque seu Amauri, o porteiro, evitou o pior. De vergonha, nunca mais olhei nos olhos de Antônia. Quando a via, desviava o caminho. Chorei dias e dias após ver minha mãe transformar Lídia Brondi em papel picado, tão cruel quanto o destino que ela teve, o lixo.

         

* Adriano Macedo. Do livro “O Retrato da Dama” (Autêntica Editora, 2008)

Adriano Macedo é jornalista e escritor, nascido em Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais (Brasil). Começou na poesia, durante a convivência com os grêmios estudantis, onde participou de festivais escolares. Num deles, aos 15 anos, ficou em primeiro lugar com o poema "Sem Anos de Abolição, Sem Anos de Liberdade", em homenagem ao centenário da abolição da escravatura no Brasil (1888-1988). Mas rompeu com a poesia aos 17 anos, quando começou a militar no jornalismo ao lançar um jornal de bairro, o "Flash Local", e descobrir outra linguagem. Na imprensa, desenvolveu e implantou projetos gráficos e editoriais, além de ter trabalhado como editor da Gazeta Mercantil, de 1996 a 2002.  Desde então, está envolvido na organização e curadoria de eventos literários, entre eles o Salão do Livro de Minas Gerais e o Salão do Livro de Ipatinga. De 2004 para 2005, morou em Paris para desenvolver uma pesquisa independente no campo do jornalismo literário. Publicou seu primeiro livro em 2008, a antologia de contos «O Retrato da Dama». Tem ainda textos publicados na revista eletrônica Tanto, neste sítio e na coletânea de minicontos Pitanga.