Morava em Belo Horizonte, no bairro Luxemburgo, num edifício de dez
andares. Sob os alicerces do prédio, construído sobre uma encosta de
morro, com seis andares abaixo do nível da rua, ficava a sala da
zeladora, administrada naquela época pela dona Antônia. Ali, com mais
dois comparsas mirins, decidimos entrar pelo basculante da janela
lateral, que dava para um lote vago recheado de pés de mamona. A
expedição despretensiosa ganhou dimensão de aventura porque buscávamos
um tesouro. Cruzaríamos a fronteira do proibido. Sabíamos que Antônia,
responsável pelo recolhimento de jornais e revistas velhas, descartados
pelos moradores, depositava as publicações naquele quartinho. Incitado a
ser o primeiro a entrar, atravessei o basculante aberto e desci apoiado
numa mesa disposta ao lado da janela. Nenhum dos dois se dispôs a entrar
antes que eu sinalizasse a existência do que procurávamos.
Não perdi tempo. O cômodo, pequeno, recebia luz natural. Uma pilha de
jornais e revistas encontrava-se do outro lado, junto a caixas de
papelão dobradas. Tomei cuidado para não fazer barulho. Meu coração
batia forte. Edições do Estado de Minas e do Jornal de Casa dividiam
espaço com exemplares das revistas Veja, Manchete, Fatos & Fotos e das
que perseguíamos, a Playboy.
Fiquei fascinado quando me deparei com aquelas mulheres formidáveis nas
capas, especialmente uma garota pela qual me apaixonei e já conhecia da
novela Dancin’Days. Era Lídia Brondi. Vestia uma malha azul sob um short
dourado, bem justo ao corpo. O bumbum saliente escapava para fora da
roupa. Peguei mais duas revistas para sair logo dali. Não me recordo das
capas. Quando caminhava para a janela, fui surpreendido por dona
Antônia, que destrancou e abriu a porta mais rapidamente do que minha
capacidade de reação.
- Quê que você tá fazendo aí, menino?
- Na... nada não.
Dona Antônia viu o basculante entreaberto, olhou para o lado, constatou
a pilha de revistas remexida, reparou no volume debaixo da minha camisa
e, com voz serena, foi ela quem deu explicações.
- Essas revistas dão um bom dinheirinho, meu filho. Ajudam a pagar as
despesas do mês.
Embora mais tranqüilo diante da reação de dona Antônia, não mostrei a
ela o que tinha furtado. Por vergonha. Minha reação imediata foi propor
uma oferta irrecusável. Poderia trazer-lhe uma dúzia de publicações. Meu
pai assinava Veja e ainda tínhamos umas duas dezenas de revistas O
Cruzeiro. Minha mãe não via a hora de se desfazer delas.
Ao sair, reparti as revistas com os vizinhos, menos a da Lídia Brondi,
guardada debaixo da cama, entre o colchão e o estrado.
Durante meses mantivemos essa relação secreta, silenciosa, platônica. Eu
e Lídia Brondi. Dedicava algumas horas diárias à minha primeira musa da
infância. Não fazia qualquer exigência. Aliás, não havia exigências a
fazer, ela já me dera o que precisava, a oportunidade de conhecê-la por
inteiro.
É curioso o que se passa na cabeça de uma criança. Embora tivesse nas
mãos aquela beldade, tinha tanto carinho com ela que não conseguia
entender o que a motivava a tirar a roupa para tantas pessoas. Ainda não
tinha muito o valor do dinheiro, mas a certeza de que, se um dia tivesse
uma Lídia Brondi só para mim, não a deixaria ficar nua para ninguém.
E vivíamos assim, eu e Lídia Brondi, nesses diálogos, sonhos e
pensamentos mudos, até o dia em que minha mãe descobriu: eu me
relacionava com uma mulher. “Um absurdo!”, “Onde conseguiu isso?”, “Você
só tem oito anos!”. Pressionado, acabei contando toda a história. Sobrou
para dona Antônia, a quem traí para salvar minha pele e com quem minha
mãe só não foi “às vias de fato” porque seu Amauri, o porteiro, evitou o
pior. De vergonha, nunca mais olhei nos olhos de Antônia. Quando a via,
desviava o caminho. Chorei dias e dias após ver minha mãe transformar
Lídia Brondi em papel picado, tão cruel quanto o destino que ela teve, o
lixo.
*
Adriano Macedo. Do livro “O Retrato da Dama” (Autêntica Editora, 2008) |
Adriano Macedo
é jornalista e escritor, nascido em Belo Horizonte, capital do estado de
Minas Gerais (Brasil). Começou na poesia, durante a convivência com os
grêmios estudantis, onde participou de festivais escolares. Num deles,
aos 15 anos, ficou em primeiro lugar com o poema "Sem Anos de Abolição,
Sem Anos de Liberdade", em homenagem ao centenário da abolição da
escravatura no Brasil (1888-1988). Mas rompeu com a poesia aos 17 anos,
quando começou a militar no jornalismo ao lançar um jornal de bairro, o
"Flash Local", e descobrir outra linguagem. Na imprensa, desenvolveu e
implantou projetos gráficos e editoriais, além de ter trabalhado como
editor da Gazeta Mercantil, de 1996 a 2002. Desde então, está envolvido
na organização e curadoria de eventos literários, entre eles o Salão do
Livro de Minas Gerais e o Salão do Livro de Ipatinga. De 2004 para 2005,
morou em Paris para desenvolver uma pesquisa independente no campo do
jornalismo literário. Publicou seu primeiro livro em 2008, a antologia
de contos «O Retrato da Dama». Tem ainda textos publicados na revista
eletrônica Tanto, neste sítio e na coletânea de minicontos Pitanga.
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