Um dos meus maiores prazeres em Paris era ler no metrô. Isso na época em
que estudava na Sorbonne. E já faz alguns anos. Morava em Batignolles e,
durante o percurso até o bulevar Saint Michel, devorava algumas páginas.
Sempre que possível, sentava-me no banco ao lado da porta.
Nesses momentos, também gostava de acompanhar o ir e vir dos personagens
do metrô. Sob a moldura formada pelo livro aberto, acompanhava os pés
dos passageiros a entrarem no vagão, numa leitura dividida entre a
ficção e a realidade. Divertia-me ao observar os variados pares de
calçados e imaginar a fisionomia dos seus donos, uma brincadeira que dei
o nome de “pé sem cabeça”. Quase nunca conseguia encaixar as peças, ora
porque esbarrava em preconceitos deliberados do meu inconsciente, ora
porque não compreendia o senso estético dos donos daqueles pés.
Chamou-me a atenção, certa vez, um par de botas negras diante de mim.
“Mulher, trinta e poucos anos, cabelos pretos, lábios carnudos bem
passados e pele morena”, pensei. Dissimulado, porque em Paris há um jogo
silencioso em que as pessoas se observam com cautela para não deixarem
ser pegas em flagrante delito, ergui vagarosamente os olhos por cima do
livro para desnudar a dona daquelas botas. Meu olhar escalou os botões
do sobretudo. Qual não foi minha surpresa ao constatar uma jovem de seus
vinte e poucos anos, com características nórdicas, cabelos dourados,
lábios delgados e olhos azuis – e, o pior, congelados na minha direção.
Fiquei desconcertado naqueles poucos segundos em que ela deu um leve
sorriso antes de virar o rosto para a janela. Baixei os olhos e
mergulhei nas páginas do livro, com o pensamento a decifrar as razões da
delicadeza do gesto silencioso.
Aquela brincadeira acabara, mas me transportou para um outro jogo, o da
memória. Ao mesmo tempo em que aquele sorriso acendeu dentro de mim a
vontade de me aproximar, ser surpreendido daquela forma teve o efeito de
me conduzir de volta à infância, quando minha mãe flagrou e censurou
minha primeira grande conquista, um desastre para uma criança de oito
anos.
*
Adriano Macedo. Do livro “O Retrato da Dama” (Autêntica Editora, 2008) |
Adriano Macedo
é jornalista e escritor, nascido em Belo Horizonte, capital do estado de
Minas Gerais (Brasil). Começou na poesia, durante a convivência com os
grêmios estudantis, onde participou de festivais escolares. Num deles,
aos 15 anos, ficou em primeiro lugar com o poema "Sem Anos de Abolição,
Sem Anos de Liberdade", em homenagem ao centenário da abolição da
escravatura no Brasil (1888-1988). Mas rompeu com a poesia aos 17 anos,
quando começou a militar no jornalismo ao lançar um jornal de bairro, o
"Flash Local", e descobrir outra linguagem. Na imprensa, desenvolveu e
implantou projetos gráficos e editoriais, além de ter trabalhado como
editor da Gazeta Mercantil, de 1996 a 2002. Desde então, está envolvido
na organização e curadoria de eventos literários, entre eles o Salão do
Livro de Minas Gerais e o Salão do Livro de Ipatinga. De 2004 para 2005,
morou em Paris para desenvolver uma pesquisa independente no campo do
jornalismo literário. Publicou seu primeiro livro em 2008, a antologia
de contos «O Retrato da Dama». Tem ainda textos publicados na revista
eletrônica Tanto, neste sítio e na coletânea de minicontos Pitanga.
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