Arrisquei mais uma espiada à cabeça das botas negras. Ainda olhava para
a janela, mas quando iniciou movimento em minha direção, desviei os
olhos. Constatei no reflexo do vidro, do outro lado do vagão, que ela
mirava para mim. Tive a certeza de que rolara uma certa afinidade entre
nós. Arquitetava a abordagem a ser feita. Retardaria minha ida ao curso
para acompanhá-la onde quer que fosse. Me aproximaria tão logo saltasse.
Essa, no entanto, foi a forma simplista de ensaiar as possibilidades. Já
não era uma criança de oito anos, disposta a experimentações e
aventuras, mas um adulto nascido em uma família tradicional, formado
numa instituição jesuíta e colecionador de incontáveis abordagens
frustradas, quase um tímido profissional.
Ainda na infância, apaixonei-me pela professora de violão, que um dia
prometera se casar comigo quando eu crescesse. A condição me pareceu
simples. Bastava ser um aluno aplicado na música. Saiu da minha vida sem
deixar vestígio. Na adolescência, contabilizei inúmeros foras nas
festinhas de aniversário da escola. Durante uma viagem à Cidade da
Criança, em São Bernardo do Campo, me enamorei de Fernanda, carioca que
morava em Três Rios. Só nos revelamos um ao outro bem depois, por meio
de cartas. Por timidez. Já era tarde, nosso relacionamento não resistiu
à quarta correspondência trocada.
Em outra viagem, de São Thomé das Letras a São Lourenço, conheci no
ônibus uma branquinha de cabelos pretos ondulados e sardas no rosto,
divertidíssima e bem-humorada. Com o frio cortante do Sul de Minas, nos
aconchegamos instintivamente para nos aquecer. Emprestei-lhe uma blusa
de frio. Trocamos beijos e carícias por algumas horas, até que minha
consciência, meio esquentada, precipitou-se e falou alto. Alguém me
esperava em Belo Horizonte, nada certo, ainda uma possibilidade. Mas a
branquinha de cabelos pretos ondulados e sardas no rosto esfriou.
A jovem das botas negras no metrô de Paris me fez relembrar essas
malsucedidas histórias. As bem sucedidas não entraram no palco. Claro
que havia lembranças de relacionamentos com desfechos felizes, mas
tímidos como eu costumam se referenciar nos fracassos para não se expor
a riscos. Às vezes, tenho a sensação de que os melhores romances e as
paixões mais explosivas dos tímidos são as não realizadas. Ficaram
restritas à imaginação, confinadas pela atitude não tomada.
Voltei a olhar para o rosto das botas negras, que novamente
interceptaram minhas intenções. Olhou-me fixamente. Não tirei os olhos
dela. Um frio correu a espinha. Ela sorriu novamente, abaixou a cabeça e
abriu a bolsa. Por instantes, pensei que retiraria dali um cartão ou um
papel para anotar um número de telefone. Não me mexi, não consegui.
Percebi um movimento de quem se preparava para sair. Fiquei na espreita.
De súbito, tirou um pirulito de dentro da bolsa. Seria provocação ou
consentimento explícito para uma abordagem? Desembrulhou o pirulito e
pôs na boca. O metrô reduziu a velocidade, a estação se aproximava. Ela
se levantou. Vou ou fico? Se quisesse trazer aquela mulher para o mundo
real, o momento era agora. A porta do vagão se abriu, ela saiu, seguida
por meia dúzia de passageiros. As botas negras seguiram o rumo ditado
pela cabeça. Não consegui me mover. As portas do metrô se fecharam como
se fossem cortinas após o encerramento de mais um espetáculo.
*
Adriano Macedo. Do livro “O Retrato da Dama” (Autêntica Editora, 2008) |
Adriano Macedo
é jornalista e escritor, nascido em Belo Horizonte, capital do estado de
Minas Gerais (Brasil). Começou na poesia, durante a convivência com os
grêmios estudantis, onde participou de festivais escolares. Num deles,
aos 15 anos, ficou em primeiro lugar com o poema "Sem Anos de Abolição,
Sem Anos de Liberdade", em homenagem ao centenário da abolição da
escravatura no Brasil (1888-1988). Mas rompeu com a poesia aos 17 anos,
quando começou a militar no jornalismo ao lançar um jornal de bairro, o
"Flash Local", e descobrir outra linguagem. Na imprensa, desenvolveu e
implantou projetos gráficos e editoriais, além de ter trabalhado como
editor da Gazeta Mercantil, de 1996 a 2002. Desde então, está envolvido
na organização e curadoria de eventos literários, entre eles o Salão do
Livro de Minas Gerais e o Salão do Livro de Ipatinga. De 2004 para 2005,
morou em Paris para desenvolver uma pesquisa independente no campo do
jornalismo literário. Publicou seu primeiro livro em 2008, a antologia
de contos «O Retrato da Dama». Tem ainda textos publicados na revista
eletrônica Tanto, neste sítio e na coletânea de minicontos Pitanga.
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