Conto do túnel e dos relâmpagos

 

AIRES GAMEIRO


Era milhares de viventes dos países ensoleirados de vinhas e encostas. Todos gostavam de aventuras e de festas populares. Viviam alegres com os seus amigos, colegas e famílias. Passavam o tempo em dezenas de atividades agradáveis que iam desde a vida de família ao emprego e aos muitos lazeres em que passavam as horas do dia e os fins de semana. Passeavam com os filhos, visitavam terras vizinhas e distantes, encontravam-se com amigos e conhecidos em arraiais, feiras e excursões. Liam histórias e jornais populares. Alguns de entre eles, não se entendia bem porquê, começaram a juntar-se quase só em comezainas e beberes de rodadas de agora pago eu, agora pagas tu; e de jogamos à bisca e quem perder paga mais.

Os tempos vão passando sem grandes problemas. Daí a vários anos, alguns andavam mais separados de quase toda a gente. Só se juntavam uns com os outros. Agora já uma parte deles se desinteressava da família, do emprego e ficando adoentados e se isolavam ou se juntavam com os que tinham vida como eles. Era como se vivessem sem outros interesses e atividades. Quase só em lugares tristes, mas não davam por isso.   Os outros é que diziam. De manhã até à noite quase não saíam dos mesmos locais: levantar, ir ao bar, ficavam por lá duas ou três horas com estes ou aqueles companheiros de bebida. Iam deixando de aparecer no trabalho, perdiam o emprego por faltas. Às vezes era preciso que viesse um filho ou a mulher ao bar ou à rua dizer que era a hora do almoço. Esqueciam-se ou adormeciam. Os três ou quatro companheiros do bar ou dos bancos do jardim ao lado eram quase sempre os mesmos. À tarde passavam mais o tempo sozinhos ou voltavam ao bar para mais três ou quatro horas. Passavam semanas e meses que viviam nos mesmos locais sem qualquer outra ocupação. Quase já só gostavam de ir ao arraial de S. Martinho com as castanhas e a outras festas de arraial. Passado tempo até se esqueciam de ir para casa e começaram a ficar pela rua.

Viviam no túnel escuro cada vez mais estreito. O sofrimento aumentava, sem família, sem emprego, com dívidas e sem interesse por quase nada. Não davam por nada de interesse nem para um lado nem para o outro. Era como se vivessem no escuro. De todos os lados só vinha escuridão. Só lá para o fundo do túnel alguns viam uma luz pequenina e um ponto vermelho. O que seria? Às apalpadelas, notavam que paredes do túnel pareciam cada vez mais estreitas e esburacadas, mas não viam nada, talvez por ser de noite, pensavam eles. Às apalpadelas imaginavam que no escuro havia mesas, jarras e copos. E até sonhavam que alguns copos estavam cheios e bebiam, entornavam, escorregavam e caiam no chão onde dormiam.

Eram sonhos e pesadelos. Depois de trambolhões, pisadelas e algum sono acordavam tristes a pensar na miséria em que viviam. Nada lhes dava gosto de viver, aborreciam-se por já não haver copos cheios para esquecer tudo. A vida era pesada. Nalguns momentos ainda desejavam sair dali. Mas como e por onde e quem os podia tirar? Para trás não viam nada, para os lados só paredes escuras a cair aos bocados, pensavam eles. A única saída parecia ser para a frente donde vinha a luzinha muito pálida com o pontinho vermelho. Alguns para animar os outros diziam que só podiam sair para a frente pelo buraquinho luminoso. Alguns tentaram arrastar-se para lá sem conseguir. Nem admira, o túnel ia estreitando sempre mais em funil estreitar-se e a apertar, já nada cabia.

Desanimados, ouviram um deles a dizer que ao fundo do túnel via copos cheios em cima de mesa. Era uma alucinação, mas logo outros acreditaram e apressaram-se para a saída, mas caiem pelo caminho várias vezes; o buraco continuava a afunilar-se mais. Um deles, às apalpadelas, tocou no que lhe pareceu uma espécie de caixilho de janela e logo outro disse que também tinha apalpado outra janela. Talvez se possam abrir para os deixar sair por ali, pensou. Os outros não viam nada daquilo e só cismavam em sair pelo tubinho do funil onde sonhavam com bebidas. E foram caminhando para lá. Não encontraram bebidas nem encontravam saída.

Havia agora dois grupos dentro do túnel-funil a discutir: uns a quererem sair pelo buraco onde na sua ilusão viam copos de bebida; outros já convencidos que por ali não se conseguia sair, procuravam outras saídas. Nesta altura alguns destes ouviram vozes desconhecidas a falar de fora da parede do túnel e até havia vozes de crianças e jovens. Encostaram o ouvido, mas não entendiam bem o que diziam os de fora. Por fim pareceu que diziam: batam com força para sabermos onde estão e ajudarmos a abrir saída. No chão do túnel um apalpou um calhau grande e com ele bateu na parede do túnel. Continuaram a ouvir a chamar e a prometer ajuda. E cada vez as chamadas eram mais fortes.

De repente, pareceu-lhes ouvir um trovão e logo um relâmpago. Num click as paredes do túnel desapareceram e havia muita luz. Viram que estavam numa rua da cidade com pessoas a chamar perto de uma escola e muitas crianças e jovens. Duas crianças aproximaram-se de um deles e disseram: pai, venha para casa, estamos à espera do pai para o almoço que a mãe preparou. Os outros esqueceram logo a luzinha da ponta do funil. Estavam surpreendidos com tantas coisas da vida das quais quase já não se lembravam; afinal a cidade, as ruas, jardins, casas e famílias estavam por ali. Os que já tinham acordado viram pelo chão alguns ainda ensonados e sonhadores de que havia o outro buraquinho para saírem. Para os acordar gritaram: venham ver tantas coisas bonitas que estamos a ver! Como que a acordar de um pesadelo levantaram-se e a cambalear juntaram-se aos outros. Alguns, de tão fracos e adoentados só com ajuda conseguiam caminhar e lá foram ver tantas coisas em que há vários anos nem tinham reparado. Deu-se outro relâmpago suave e todos se viram numa sala grande com uns vinte e cinco homens e mulheres sentados à roda que exclamaram: era mesmo num túnel assim que vivíamos!


Funchal, dia de S. Martinho 2020

Aires Gameiro