Construção

 

MARIANA VARELA


Construção

Da montanha vejo escorrer

O cimento febril e diário.

Ouço, enquanto caminho o som das moedas caindo do cofre.

Cada minuto, uma moeda cada horizonte, um centímetro cúbico e todo o aparato imobiliário.

Caem ações em construções de luxo.

E refletores de prata anunciam corredores de mineração pesada.

Salto na água O barco é do tempo.

Cada centímetro anuncia a engrenagem nova que fizeram com o vento.

Dilúvio

Resta, enfeitiçada, uma matéria de cobre no subterrâneo da terra

A construção, enferrujada lamenta antigos murmúrios.

Na pressão mais alta a voz se esconde por detrás das rochas

Como a água mansa, vibra o mínimo necessário para manter vivo o som do rio.

Sussurra

Oscila

Embala.

A memória é que como a voz:

Água-rio que corre pelas paredes de um antigo navio.

Lua em câncer

Retornamos ao ponto zero: linha árabe infinita que separa o céu da terra.

Há construções na areia da praia muros, jardins, lagos mas o mar volta a cobrir tudo.

Mal saímos de casa e a onda retorna à garganta.

Retornamos, descampados, ao relento insone e buscamos, insolentes,

olhar a lua como quem busca o real espelho do tempo capaz de indicar a colheita dos astros.

Ah, o tempo desfaz as casas ignorando as linhas que criamos.

E tudo que resta é a memória invocando a história presa em nossa garganta.

DOOGTOOTH

ela me chamou por um nome que não era o meu mas sei atender por ele.

comi uma fruta que não estava madura: os dentes da minha boca começaram a cair.

caí eu, quase, incrédula… pela dureza da pedra que confundi.

senti na boca o gosto amargo do tempo – um engano que me trocava os ossos da boca –

[é na boca que o esqueleto se revela – só isso é leal num corpo os dentes, nos quais o esqueleto se descobre¹]

depois da bebida, maremotos e lagos saúdo a pedra do ciclo lunar que me assalta de repente.

eternos dentes, eu pensava! os caninos que não deveriam cair antes que eu lhes pudesse dar palavra

(à minha máquina de escrever faltam letras importantes e escolho mal os nomes dos poemas

acontecem as coisas antes

da palavra que lhes compete o sentido!)

e por isso não terminam no chão os meus dentes, quando caem sob a chuva,

nos hidrantes quebrados, lançam-se em silêncio – corre a água e leva com eles minha carne, minha pele, meu invento…

meus dentes descem a rua mutilados pelas pedras inconscientes do roteiro,

contornam alheios os bueiros descansam no caminho,

são barcos arrastados bandeiras naufragadas amordaçadas pelo tempo.

com estórias esquisitas de pessoas inquietantes saúdam meus colegas,

abandonados e ausentes e andam pela noite como quem caminha pela janela de outra boca de alguém que ria.

o que mais ia com eles? eu me pergunto tamanha ausência ocasionada

pela ida da parte leal de um corpo – os dentes.

(posso chamar de ausência se depois que parto na terra que deixo, crescem sábios abacateiros?)

pele, ossos, dentes: a palavra que nomeia tua ausência ainda não chegou, depois da chuva.

mas consigo ver ali em frente que, de repente, quando te deixo, o que não deixo de mim também?


MARIANA VARELA