Como se aproximar da Luz

 

GLEDSON SOUSA


Ao contrário das mariposas que intrépidas lançam-se em direção ao fogo, nos aproximamos com cuidado de A FEBRE E A MARIPOSA, belíssimo livro de poemas de Beth Brait Alvim, publicado pela Editora Patuá em 2018.

Esse cuidado é o mesmo devido à aproximação às grandes paisagens, aos eventos naturais, aos ciclos cósmicos: corremos o risco da vertigem comum ao gozo e a vertigem pode nos levar à queda, se não soubermos contemplar.

Porque a poesia de Beth Brait Alvim, entranhada de sua alma sutil e de história, toca em nossas feridas com a força de uma varinha de condão, que nos transformará em qualquer matéria cósmica incomum.

Poemas como INSÔNIA II: O menino e a fome / engasgam os meus pesadelos / não abafam os afagos do homem deus / decadente há mil anos / ei / não bastaram tóxicos e convulsões de outro século / o grande evento de Hiroshima / o jogo sobre Guernica / o fim do grande amor / e vêm vêm vêm notícias insuportáveis / do ping pong ao light my fire / e tropeçamos em corpos / isso mesmo /  oh dreams of my heart oh meninos que dançam em torno de ventres decompostos / oh minha mente cansada e lúcida…trazem um século inteiro aos nossos olhos e de que permanecemos ainda imersos num imenso pesadelo, capazes da angústia da noite e da insônia.

Há um motivo pessoal para ter citado esse poema no meio de tantos outros poemas tão fortes quanto: às vezes também sofro de insônia e parece-me que essa insônia poética parte da mesma base de uma angústia poética comum aos poetas pelo destino das coisas, por não conseguir solucionar em si as contradições do tempo e da história, porque o ato poético não é meramente puro ato discursivo, mas um gesto existencial, onde o eu é superado em direção a um universo maior. Então, essa insônia bethbraitiana serviu como uma espécie de farol para me aproximar dos demais poemas: fique alerta para não se queimar.

Porque o livro inteiro é tomado por uma febre, que não está no título acidentalmente: os versos fortes (a mão da mãe morta afaga os mesmos medos / com alfinete nas unhas e o dedo ainda em riste – do poema Língua Febril) trazem uma temperatura elevada, como se as palavras, de tão quentes, quisessem passar ao estado de sublimação, como se a alta emoção contida, concentrada, pudesse sublimar alquimicamente a poesia e com ela o mundo ao redor.

Eros e Tanatos se sucedem como gêmeos siameses e díspares, como em Sétimo: as manchas das tuas mãos dançam sob o brilho da chuva / flores de kurosawa / sorvo teu suor inconfesso e me alegro entre teus dedos sorrateiros / teu colo alisa as pontas dos pedregulhos das ruas / da minha infância // teu ouro oceânico tuas asas de ópio / tua voz enrouquecida teus sons subterrâneos / a porta a chuva as chaves do inferno / meu sono triturado e a vigília no andar congelado / meu pai e eu / a última linha do sol persiste / tremo ao pensar que posso cavar sete palmos e injetar na planta do meu coração / uns poucos gramas / do teu / soro. E: e eu / me encolho de fome e pó / só resta a garganta – útero / no interior do deus do fogo e sua ira / o nome da morte / multiplicado nos espelhos do nunca / orgia que não temo ( do poema Orgia).

Ainda que se trate de uma coleta – como a autora mesmo fala ao final do livro em Estórias de Amor e Sorte, Patuás, onde indica a gênese do livro, o mesmo possui uma coesão admirável, como se todos os poemas tivessem sido concebidos para o mesmo fim, para o mesmo livro. A arquitetura da obra é admirável, e a febre e a mariposa unem os diferentes eixos da obra: amor, morte, dor, transcendência, sob o calor, o fogo e a delicadeza da mariposa, que nunca resiste à luz.

Peço desculpas à Beth Brait por tratar esse artigo de maneira tão pouco acadêmica: sua poesia me conduziu a esse caminho. Porque a luz dos poemas é resultado de uma incandescência poética, e essa incandescência não distingue mais vida e obra: tudo é uma coisa só. A lava dos poemas conduz-nos, com sua luz, a novos caminhos, mas só Beth sabe a trilha subterrânea por onde eles emergem e de onde eles surgem.

Uma poesia da incerteza? Toda poesia é da incerteza, se não o for, não é poesia, e aqui essa incerteza percorre os espaços do livro, como em Quase: tudo boia / outro pedaço de mim / nada dói / ou quase tudo // vivo tímida ou como que mole / esse desfalecimento na planta dos pés / uns soluços descontínuos no couro cabeludo / essa umidade nos tímpanos / marulhar de bacias d’água dentro da cabeça / ou é um suspiro por algum motivo / um túnel sem fim / acho que não deveria ter nascido / acho que não nasci.

Como se nasce? Como fazer emergir de si a chama que nos eleva a outro patamar da existência que não a mera e mecânica existência? Pois na interrogação de Beth Brait sobre o nascer aparece implícita a questão aristotélica entre viver e viver bem, entre aquilo que Walter Benjamin chamaria de Vida Nua – a mera existência biológica, em sua esfera de necessidades imediatas – e uma vida qualificada, por assim dizer, sublimada do traje da necessidade, uma vida onde a liberdade se manifesta na escolha, pelo que a dúvida do final do poema (acho que não nasci), remete, no fim das contas, à percepção de uma existência ainda incompleta, ou ao fato de não ter alcançado ainda a liberdade plena.

O que dá ao livro uma plena dimensão política: qualquer forma de plenitude existencial está diretamente vinculada ao exercício da liberdade, ao emergir das forças do ser que são liberadas pelo êxtase amoroso, pelo excesso, pela arte. É no excesso dionisíaco que natureza e cultura se reencontram e dão-se as mãos, e a liberdade incorpora a necessidade em suas bodas com o todo.

É para isso que o livro de Beth Brait Alvim nos convida: às bodas com a vida, sem rejeitar nada, sem negar nada, sublimando a existência  como sói acontecer com a alta temperatura poética, com essa densidade da palavra que toma conta de todo o livro.

Resta-nos contemplar e não deixar queimar-mos nossas asas em contato com a luz, segurar a vertigem que nos toma para que assim possamos debruçarmo-nos sobre os abismos – do alto e do baixo – sem cair.

Obrigado, Beth Brait, pela febre que nos presenteou.


Gledson Sousa (Brasil). Nascido em Juazeiro do Norte em 1972. Reside em São Paulo desde 1991. Formado em História, com especialização em História da Arte. Tem trabalhos publicados no site Triplov (www.triplov.com) e no blog A Esfera da Manhã, além de publicações em livros:

O Ovo – Meditações Sobre a Semântica do Mundo. São Paulo: Ed. Janos, 2004

A Iconografia Interior – Kandinsky e a Teosofia. Lisboa: Ed. Apenas Livros, 2014

O Livro das Novas Mutações ou O Oráculo da Natureza. Lisboa: Ed. Apenas Livros, 2014

Além de participação em obras coletivas: Presença do Feminino no Relato dos Viajantes, no livro Desigualdade no Feminino. Lisboa: Apenas Livros, 2009; Uma Espiritualidade Nietszcheana?, no livro A Religião que Anda no Ar. Lisboa: Apenas Livros, 2014. Poeta e ensaísta.


DÉCIMO ENCONTRO TRIPLOV