Com o Presidente Manuel de Arriaga no Farol da Ponta dos Capelinhos

A.M. GALOPIM DE CARVALHO


1ª Parte

(do livro em preparação “Conversas com os Primeiros Presidentes da República”)


Na imponência dos seus 20 metros de altura, planta octogonal em alvenaria, com cunhais e cornija em cantaria à vista, o Farol da Ponta dos Capelinhos, dando caminho à navegação desde 1 de Agosto de 1903, em que foi inaugurado, ao tempo do Rei D. Carlos, até 29 de Setembro de 1957, dia em que se “apagou”, na sequência da erupção vulcânica ocorrida no mar ali, mesmo, à sua frente.

Junto ao farol, desde então desactivado, foi inaugurado, em 2008, o Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelinhos, com propósitos pedagógicos e científicos, para o que dispõe de um conjunto de equipamentos visando dar destaque aquela erupção e à geologia do arquipélago, com noções de vulcanologia, exposição de rochas e minerais e elementos sobre a história dos faróis açorianos. Pode subir-se ao topo do farol e, foi aí, numa bela manhã de Maio, estando sozinho a olhar o que resta da ilha ali edificada há meio século, que me defrontei com a aparição do Dr. Manuel de Arriaga personagem que, de imediato, reconheci pela memória que tenho da sua imagem no histórico cartaz comemorativo da sua eleição, em 1911, como primeiro Presidente da República.

A área de erupção está classificada como paisagem protegida de elevado interesse geológico e biológico e integra a Rede Natura 2000.

À semelhança do que me acontecera com os nossos reis, este simpático gentleman, de barbicha branca a descer do queixo, vestido à melhor moda da aristocracia do seu tempo, olhando-me nos olhos, começou por dizer:

– Há mais de um século, precisamente, no dia 24 de agosto de 1911 tornei-me o primeiro presidente eleito da República Portuguesa, sucedendo na chefia do Estado ao Governo Provisório do Doutor Teófilo Braga. Foram tempos difíceis. Exerci aquelas funções, lembro bem, até o dia 29 de Maio de 1915.

– Data em que vos haveis demitido, tendo sido o mesmo Teófilo Braga, que completou o tempo restante do mandato.

– Nasci na freguesia da Matriz, na cidade da Horta, nesta bela ilha, a 16 de Dezembro de 1845. O acento no livro registou-me como Manuel José de Arriaga Brum da Silveira e Peyrelongue, um nome demasiado comprido e que ninguém conhece. Depois de concluir aqui os então estudos preparatórios, rumei a Coimbra, em 1860, onde cursei Direito.

– Diz a História que fostes aluno brilhante e que vos haveis distinguido como grande orador e cidadão destacado do republicanismo português, dirigente e um dos principais ideólogos do Partido Republicano Português.

– É verdade que tinha um discurso fácil, na ponta da língua, como se diz, e que tinha boa capacidade argumentativa. Em vida, para além das questões decorrentes da advocacia, que exerci, com escritório em Lisboa, todos os meus pensamentos estiveram virados para a política, como fervoroso republicano democrático, uma actividade que, certamente sabeis, era tida por subversiva. Interessei-me também por filosofia e literatura, uma paixão que mantive acesa até o fim dos meus dias, paixão que me abriu caminho à poesia.

– Sei que fostes um dos da notável “Geração de 70”, de Coimbra, e que haveis aderido ao positivismo filosófico.

– Sim, é verdade. Assimilei e fiz minhas as ideias de Auguste Comte (1798-1857), ideias que dominaram a Europa na segunda metade do século XIX e começo do XX.

– O positivismo, segundo estudei há muitos anos no Liceu, – acrescentei – defende que só o conhecimento científico pode atingir a verdade. Tem raízes, creio, no iluminismo, o movimento da elite intelectual europeia do século XVIII que, por seu turno, tem raízes no humanismo renascentista.

– E que, acentue-se, teve como expressão máxima a Revolução Francesa, no final do século XVIII. O positivismo tem, ainda, raízes no surgimento da sociedade industrial. É, por isso, uma doutrina filosófica, sociológica e política que valoriza a pessoa humana, emancipando-a face ao poder político e à Igreja. Antes de mudar de assunto deixa-me acrescentar que, como positivista que fui, nunca aceitei os conhecimentos ligados a crenças, superstições ou quaisquer outros que não pudessem ser comprovados cientificamente. Sempre acreditei que o progresso da humanidade dependia exclusivamente dos avanços científicos.

– Mas, afinal a que se deve esta vossa aparição neste local?

– Estive aqui aquando da erupção de 1957, que pôs fim à vida deste farol e ao nascimento dessa ilhota e isso despertou a minha curiosidade para este tipo de problemas.

– Não sou vulcanólogo, mas, como geólogo, posso tentar satisfazer essa vossa curiosidade, mas sempre ao nível das generalidades. Se quiserdes uma informação mais pormenorizada, sugiro que vos dirijais ao Prof, Victor Hugo Forjaz, meu excelente ex-aluno e hoje um vulcanólogo prestigiado. Antes, porém, gostava de conhecer a vossa versão sobre o que foi, em linha gerais, o essencial da vossa vida como político, em geral, e como primeiro Presidente da República de Portugal, em particular, ao fim de quase oito séculos de Monarquia.

– Muito antes da Implantação da República, mais precisamente, no dia 18 de Maio de 1871, fui um dos doze signatários do programa das conferências democráticas do Casino Lisbonense. Militei, convicta e activamente no republicanismo unitário e democrático. Ao mesmo tempo opus-me declaradamente ao anticlericalismo e ao jacobinismo que então marcavam a corrente dominante do republicanismo português. Fui homem casado e pai de quatro filhas e dois filhos. A fama de revolucionário fechou-me as portas do ensino superior…

– Uma delas, eu sei, porque foi lá que me licenciei. Foi a Escola Politécnica de Lisboa.

– Exacto. A outra foi o Curso Superior de Letras, instituição de ensino superior que antecedeu a actual Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Contentei-me com um lugar de professor de inglês no Liceu de Lisboa, cargo que mantive por largos anos.

– Em duas tentativas que fiz como candidato republicano a deputado às Cortes, uma em 1878 e outra em 1881, fui derrotado. Só no ano seguinte, numas eleições suplementares, consegui ser eleito deputado republicano pelo círculo da Madeira. Prestei juramento a 10 de Janeiro de 1883, fendo sido o segundo republicano a integrar o Parlamento português, juntando-me a José Elias Garcia, que ali tinha assento desde 1881. Todas as propostas que ali apresentei, uma das quais visava pôr fim ao juramento de fidelidade ao rei e à Carta Constitucional, a que estavam obrigados os parlamentares, foram recusadas, nem nunca consegui integrar qualquer comissão parlamentar. A força dos partidos do chamado rotativismo era muita. Candidatei-me a deputado, uma vez mais, em 1889, e voltei a não ser eleito.

– Mas haveis-vos distinguido pela pertinência das vossas intervenções e pela fineza do vosso trato e conduta, não obstante a vossa grande combatividade política. Todos vos reconheciam uma cultura superior e elevados dotes intelectuais, aliados a uma oratória brilhante e a um imaculado rigor ético.

– Durante os anos que ali me bati, renunciei ao meu vencimento como professor liceal, recebendo apenas o subsídio parlamentar a que tinham direito os deputados. Repare-se que era apenas um subsídio, não as mordomias dos deputados do presente.

– Mas a vossa reputação e o prestígio que haveis conquistado como parlamentar guindaram-vos ao Partido Republicano, a um patamar preponderante, que manteve por largos anos.

– Sim, de 1883 e 1892. Nesse tempo ajudei a estruturar o Partido Republicano Português, tendo sido, segundo reza a História, um dos principais autores do respectivo programa, apresentado ao público no dia 11 de Fevereiro de 1891.

– Sei, ainda, que fostes vereador republicano na Câmara de Lisboa.

– A reacção popular ao ultimato britânico de 1890 levou à dissolução do recém-eleito parlamento, dando-nos uma nova oportunidade, pelo que voltei à ribalta política.

– E fostes preso, por essa altura.

– Exacto, fui preso, ao liderar a grande manifestação do 11 de Fevereiro de 1890, em repúdio ao ultimato britânico e à cedência do governo português, e levado para bordo de um navio de guerra, onde fiquei retido até ser libertado por uma amnistia régia.

– Mas acabastes, finalmente, por entrar em força no Parlamento e na política.

– Sim, nas eleições de 1890. Fomos eleitos folgadamente como deputados eu, o coronel Elias Garcia, de engenharia militar, e o general Latino Coelho, do estado-maior da mesma arma.

– Latino Coelho, sabia eu, foi lente substituto da cadeira de Mineralogia e Geologia, da Escola Politécnica de Lisboa, em cujo edifício, depois de substituída pela Faculdade de Ciências de Lisboa, me licenciei em Ciências Geológicas.

– Essa vitória nas eleições de 1890 deveu-se à indignação popular contra o rei e, em especial, contra o Partido Regenerador, do centro-direita, e o Partido Progressista, do centro esquerda. Desta feita, apoiado por um grupo de seis republicanos, pude lutar pela soberania popular, com destaque para a dignificação dos camponeses e outras classes igualmente carenciadas. Pude, não só no Parlamento, como em frequentes comícios públicos de propaganda republicana, lutar pela liberdade de consciência, de expressão, de reunião e de associação, combatendo toda a solução política que não resultasse directamente da vontade dos cidadãos.

– Diz a História que, desencantado com a política, vos haveis dedicado à filosofia e à literatura, com destaque para a poesia.

– Isso é verdade, nessa fase da minha vida, ou seja, entre 1899 e 1907, publiquei dois livros de poesia e um de prosa.

– Consta ainda que, após a Implantação da República, fostes nomeado reitor da Universidade de Coimbra.

– Sim, quase duas semanas depois, a 17 de Outubro. E tive, como vice-reitor, Sidónio Pais, um nome sonante no republicanismo português.

– Sidónio Pais doutorou-se em Matemática nessa Universidade e foi aí professor de Cálculo Diferencial e Integral.

– Fui nomeado por António José de Almeida, que viu em mim a capacidade de

restabelecer a ordem na Universidade, onde os estudantes republicanos estavam a causar grandes desacatos, missão que consegui levar a bom termo.

– Mas também fostes Procurador-Geral da República.

– Precisamente, um mês depois. Mas reparo que estais muito informado sobre a minha pessoa.

– A explicação é simples. Sou republicano, socialista e laico e tenho grande curiosidade por este período da história de Portugal, na transição da monarquia para a República.

– No ano seguinte, em Abril, voltei a ser deputado, desta vez, para a Assembleia Nacional Constituinte.

– E, aí, uma vez mais, a vossa fama como orador notável, voltou a fazer-se sentir. Consta da história desse tempo que muitos dos vossos discursos foram decisivos para a afirmação da causa republicana.

– Tenho consciência e muito orgulho disso e é com grande satisfação que, não obstante as dificuldades que passais, as crises sociais que estalam aqui e ali, a república democrática e laica voltou ao nosso Portugal. Louvemos, por isso, os Capitães de Abril de 1974.

– E o culminar dessa vossa insistente luta foi a vossa eleição como Presidente da República.

– No dia 24 de Agosto de 1911, tinha eu já a idade de 71 anos. Não esqueci essa data, assim com não esqueci as dificuldades que então se viviam no Partido Republicano, dividido em facções cada vez mais extremadas. Não contei nesta eleição com o apoio dos “democráticos” do Doutor Afonso Costa, um prestigiado lente de Direito, da Universidade de Coimbra, mas tive-o, porém, da ala moderada dos republicanos.

– Fostes, assim, o primeiro Chefe do Estado eleito da República portuguesa.

– Um Chefe de Estado num período particularmente difícil, convenhamos. Por um lado, o Partido Republicano Português, que era o meu, desagregava-se em diferente facções. Os “afonsistas”, da ala radical deste meu partido, ganhavam hegemonia, dando aso à instabilidade política que se viveu e, por outro, os monárquicos liderados por Paiva Couceiro, não me deram descanso.

– Foi também aquele incidente, em que um grande número de oficiais de cavalaria marchou pela Calçada da Ajuda, a caminho do Palácio de Belém, onde, em sinal de repulsa, pretendiam entregar-vos as espadas, registado na História como Movimento das Espadas.

– Sim, recordo-me perfeitamente. Seguiu-se a queda do governo do professor Victor Hugo de Azevedo Coutinho.

– Um governo que ficou jocosamente conhecido por “os Miseráveis de Victor Hugo”.

– Na sequência, dei posse ao governo do general e engenheiro Joaquim Pimenta de Castro e disso me penitencio.

– Foi ele o responsável pela primeira ditadura do republicanismo português.

– Exacto. Fazer dele Presidente do Ministério, designação equivalente ao vosso Primeiro Ministro, foi uma decisão infeliz que feriu profundamente a minha credibilidade como democrata. Seguiu-se, de facto, um governo ditatorial, com dissolução inconstitucional do Congresso da República, o que deu aso à revolta de 14 de Maio de 1915, que o depôs e levou à minha destituição, acusado de trair os ideais republicanos democráticos que defendi toda a minha vida.

– Essa revolta foi sangrenta.

– Foi desencadeada pelos republicanos democráticos, com ao apoio da Marinha, tendo-se estimado em cerca de 200 o número de mortos.

– No meio desta conflitualidade toda, a História lembra-vos como um pacifista.

– E fui-o, de facto. Deixei o cargo no dia 26 desse mês e abandonei, definitivamente a política. Sei que sou lembrado como uma das figuras mais prestigiadas do republicanismo na oposição à Monarquia Constitucional, mas também tenho consciência do falhanço da minha acção política como Presidente da República, especialmente nos últimos meses do meu mandato.

– Fostes, então, substituído na Presidência da República pelo Professor Teófilo Braga.

– Um açoriano, como eu. O Professor Teófilo Braga fora nomeado Presidente do Governo Provisório da República, logo no dia a seguir à Revolução de 5 de Outubro de 1910, e teve, de facto, experiência como Chefe de Estado.

– A sua eleição como o segundo Presidente da República de Portugal justifica-se, pois, plenamente.

– O livro que publiquei em 1916, ou seja, no ano que se seguiu à minha destituição, intitulado “Na Primeira Presidência da República Portuguesa”, é, por assim dizer, um testamento da minha vida política.

– Irei procurar esse livro, pois que, depois de vos ouvir, a minha curiosidade pela História de Primeira República ficou bem maior.

– Deixai-me, porém, dizer que neste mundo imaterial que dizem ser o das almas, onde entrei no dia 5 de Março de 1917, em que os bens e os interesses terrenos deixaram de fazer sentido e em que tudo se sabe e nada se esconde, analiso, com todo o distanciamento, a incompreensão por parte dos meus correligionários e as críticas e recriminações de que fui alvo.

– Os vossos restos mortais estão hoje no Panteão Nacional da Igreja de Santa Engrácia.

– Estive sepultado estes anos todos em jazigo de família, no Cemitério dos Prazeres. Só muito depois, caído de podre, o Estado Novo e restaurada a Democracia, e por resolução, votada por unanimidade, na vossa Assembleia da República, em 2003 é que os meus restos mortais foram transladados para aí. A cerimónia solene teve lugar no dia 16 de Setembro do ano seguinte, com a presença do Presidente Jorge Sampaio, do Primeiro Ministro Santana Lopes e das mais altas individualidades do Estado.

– É do vosso conhecimento que sois patrono da Escola Secundária Manuel de Arriaga, na cidade da Horta, e que o vosso nome é recordado em centenas de nomes de ruas e praças de Portugal? E que, desde 2011, está patente ao público, na cidade da Horta, a Casa/Museu Manuel de Arriaga?

– Nós, as almas, sabemos tudo, entramos onde quisermos, de dia ou de noite. Ninguém nos vê. podemos observar tudo o que se esconde e arruma em cofres, arquivos, armários e gavetas, sem precisarmos de chaves nem de luzes acesas, mas não lemos o pensamento dos vivos nem adivinhamos o futuro. Todas estas possibilidades vivem e morrem connosco, nem temos capacidade de influenciar o mundo terreno porque, na realidade, não existimos.

– Mas estais a falar comigo?

– Não passo de uma aparição como aquela que se diz de Fátima aos pastorinhos. Só existo porque me estais a trazer ao presente. Sou um mero pensamento surgido na tua cabeça. Esta agradável e frutuosa conversa é uma ficção. Vou deixar-te e vou ao Observatório Vulcanológico e Geotérmico dos Açores, encontrar-me com esse vosso brilhante ex-aluno e distinto vulcanólogo.

Dizendo isto, numa expressão de muita bondade que o caracterizou em vida, a imagem do Dr. Manuel de Arriaga sumiu-se.