NATURAL?! O QUE É ISSO? ABERTO O COLÓQUIO De 2.11.2003 a 21.05 2004 INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL "NATURALISMO E CONHECIMENTO DA HERPETOLOGIA INSULAR" Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa) |
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ALESSANDRO ZIR - POR UMA INTELIGÊNCIA INUMANA E DESNATURALIZADA |
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resumo |
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Neste texto, pretendemos evidenciar o valor que podem ter certas teses, surgidas no âmbito de áreas como a Cibernética, o Cognitivismo e a Inteligência Artificial, para pensar a questão do comportamento inteligente e seus limites intrínsecos, no sentido de mostrar que essas teses forneceriam instrumentos a profissionais das chamadas áreas humanas, como psicólogos e filósofos, que os capacitariam a refletir sobre questões importantes a respeito do conhecimento sem necessidade de fazer referência a conceitos desgastados como o de 'natureza humana' e outros semelhantes. Para tanto, começamos o texto recordando o porquê do desgaste de tais conceitos. | |
desbancando um certo homem | |
Conforme já afirmava Michel Foucault em As Palavras e as Coisas, a idéia de que o homem é um objeto privilegiado, e de que por isso as ciências humanas (diferentemente de todas as demais ciências) seriam arredias a um tratamento formal, faz parte daquilo que ele denomina de "sono antropológico", tipicamente moderno, pois o homem enquanto esse objeto privilegiado não passaria de um pseudopersonagem da modernidade, uma figura rapidamente envelhecida nos seus "200 anos". Esse homem nada tem a ver com os homens concretos, os seres humanos, que já existiam, é claro, muito antes da modernidade. Esse homem surge quando, no início do século XIX, o quadro clássico da representação (que, desde meados do século XVII, tinha permitido a análise das representações, matematizáveis ou não, em identidades e diferenças e sua ordenação em quadro) se congela e se fragmenta, ao mesmo tempo em que algumas de suas figuras ganham densidade, "enrolando-se sobre si mesmas segundo as leis da vida, da produção, da linguagem" (Foucault 1995: 329) - o homem moderno surge no vão que essas coisas deixam ao tomarem vulto e torna-se a figura da finitude do saber. Trata-se de uma finitude redobrada, pois ela se aloja, por um lado, nos conteúdos da vida, da produção e da linguagem, enquanto esses constituiriam os limites do domínio do homem, e por outro lado, ela se aloja no homem como condição de possibilidade dos saberes que nos dizem o que são esses conteúdos. Aí, segundo Foucault, seja através de uma escatologia marxista, de uma fenomenologia do vivido, ou de outras formas de pensamento afins, "a reflexão buscará assentar filosoficamente a possibilidade do saber" (1995: 351). Nos capítulos finais de As Palavras e as Coisas, Foucault afirma que o risco de toda a reflexão moderna (das ciências humanas e inclusive da filosofia, convém especificar) seria adormecer numa antropologia: constituir o homem como algum tipo de unidade especial do lado da vida, do trabalho ou da linguagem, ou mesmo instituí-lo, ao lado de algum deles, numa promessa infinita. Por outro lado, também em As Palavras e as Coisas, Foucault nos chamava a atenção para o fato de que, no período moderno, separam-se as ciências da lógica e da matemática das demais ciências que utilizam inferências formais em regiões localizadas. A perda da unidade clássica do saber dará origem, segundo Foucault, não apenas a esforços de fundamentação dos métodos indutivos mas também a esforços de formalização de disciplinas específicas como a economia, a biologia e a lingüística. Consideramos como fazendo parte desses esforços modernos de formalização de disciplinas específicas inclusive os avanços alcançados no sentido de uma formalização mais ousada da própria matemática e da lógica bem como os resultados por vezes paradoxais que esses avanços trouxeram. Entre esses avanços, podemos incluir o Principia Mathematica de Bertrand Russell e Whitehead (publicado pela primeira vez em 1910), que se inspira nos trabalhos de George Boole (1815-1864) e também de Gotlob Frege (1848-1925) ainda do século XIX, e pretende deduzir a aritmética de princípios puramente lógicos - uma pretensão que, por outro lado, se revelou exagerada graças principalmente ao famoso trabalho do lógico austríaco Kurt Gödel, no início da década de 1930. Conforme outro pensador francês, Jean-Pierre Dupuy, isso que ele denomina de "a revolução lógica dos anos 1930", por sua vez, "iria abrir sulcos profundos e variados na história do pensamento", entre eles, a cibernética e o cognitivismo (1995: 43) - os quais surgem, efetivamente, com a emergência da possibilidade de automatização do pensamento, explorada, pela primeira vez, pelo matemático britânico Alan Turing, no início da década de 1940. O presente texto pretende mostrar que as hipóteses lançadas por pensadores como Turing, a resposta que ele dá, por exemplo, ao chamado problema da parada (halting problem), permitem uma reavaliação dos limites intrínsecos a qualquer comportamento inteligente (independente de qualquer distinção entre humano ou não-humano, natural ou artificial). Conseqüentemente, essas hipóteses de Turing (e de outros pensadores envolvidos com a cibernética e o cognitivismo) possibilitariam que, em diversas áreas, como a Psicologia ou a Filosofia, por exemplo, passássemos a refletir sobre questões importantes a respeito do conhecimento e seus limites sem necessidade de nos remetermos a nenhum humanismo. |
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máquinas pensantes e seus limites | |
Conforme afirma o matemático Douglas Hofstadter em seu livro Temas Metamágicos: questionando a essência da mente e a modelização, no final dos anos trinta, "a imagem de uma máquina passando de um estado para outro segundo um conjunto finito de regras" tornara-se uma idéia de suma importância para Alan Turing (Hofstadter, 1985: 485). Aquilo que fascinava Turing "era a idéia de que tais ações sem sentido poderiam também ser vistas como sentido. Por exemplo, uma máquina capaz de seguir regras poderia ser vista como fazendo jogadas de xadrez, outra como produzindo verdades matemáticas, outra como escrevendo poesia" (Hofstadter, 1985: 485). Seria possível, dessa forma, automatizar o pensamento? Criar uma máquina inteligente? Conforme a interpretação de Hofstadter, Turing "começa especificando a noção mais geral possível do que seja uma máquina", chegando àquilo que hoje em dia chamamos de máquina de Turing. O que uma máquina desse tipo pode fazer é passar de um estado a outro através de "um conjunto muito simples de regras de transição". Turing teria sido capaz de "mostrar que tais máquinas podem fazer qualquer coisa que se poderia razoavelmente esperar de qualquer máquina ou de qualquer ser humano seguindo regras bem definidas" (Hofstadter, 1985: 486). Mas uma máquina inteligente, além de poder se comportar seguindo regras, teria de ter "a habilidade de enxergar a si mesma", de "perceber algum padrão em suas próprias atividades, e estar apta a fazer isso em vários níveis de abstração" (Hofstadter, 1985: 532). Trata-se da habilidade de "observar atividades num nível completamente diferente" ao da ação desempenhada - quer dizer, no caso, por exemplo, atualmente, de um computador, que ele pudesse perceber "mudanças que ocorrem em um conjunto de dados estruturais" da sua memória, "filtrá-las" e gravar certos aspectos interessantes delas em "outros conjuntos de dados estruturais" (Hofstadter, 1985: 533). Isso parece implicar num regresso ao infinito, já que teríamos sempre de acrescentar mais um nível de dados estruturais (que devem observar o nível anterior, desde o mais básico). Poderíamos identificar cada nível com um número natural e formar "o conceito geral de 'todos os níveis vistos de uma vez só', associado ao conceito de 'todos os números naturais concebidos de uma vez só'" (convencionalmente chamado em matemática de w , ômega) (Hofstadter, 1985: 533). Essa estratégia, no entanto, não impediria o regresso ao infinito, porque o próprio nível w poderia entrar em loop, gerando outros níveis superiores como ' w + 1', ' w + 2', e também 2 w , 3 w e ainda mais além w 2 , w 3 etc. Uma máquina que pudesse "reconhecer padrões não antecipados em seu próprio comportamento" teria assim de ser " potencialmente infinita" e ao mesmo tempo poder lidar com o problema do regresso ao infinito (Hofstadter, 1985: 534). Nisso está implícito um problema clássico na teoria da computação, colocado e resolvido por Turing depois de ele ter formulado o conceito de 'maquina de Turing', a saber, o problema da parada (halting problem). Esse problema "é a questão a respeito de se existe algum programa de computador capaz de inspecionar outros programas de computador antes de eles funcionarem e predizer, de maneira confiável, se eles irão entrar em loops infinitos" (quer dizer, se eles irão entrar em processos nos quais não conseguirão atingir nunca um ponto de parada) (Hofstadter, 1985: 534-35). A resposta a essa questão é negativa. Conforme demonstrou Turing, a suposição de uma máquina "capaz de reconhecer proposições indecidíveis" "leva à autocontradição" (Hofstadter, 1985: 486), pelas seguintes razões: depois de formular o seu conceito de máquina, Turing foi "mais além e mostrou que um tipo muito complexo de máquina de Turing, chamado máquina de Turing universal, podia ser alimentada com um determinado número que codificasse a estrutura de qualquer outra máquina de Turing. [...] A máquina universal poderia então agir de forma indistinguível com relação àquela outra máquina." Uma máquina capaz de reconhecer proposições indecidíveis, "se existisse, seria muito semelhante a uma máquina de Turing universal, no sentido de que ela poderia aceitar o número descritivo de qualquer outra máquina e simulá-la". No entanto, quando alimentada com " seu próprio número descritivo", ela entraria "instantaneamente" num "loop vertiginoso" e pereceria (Hofstadter, 1985: 486). Ao contrário do que se poderia pensar, esse resultado negativo não implica (pelo menos para autores como Hofstadter e para o próprio Turing) na impossibilidade de automatização do pensamento: antes disso, ele leva a uma reavaliação dos limites do pensamento em geral. Num artigo muito famoso, que é posterior a essas demonstrações, Turing (1981 [1950]) argumenta que "embora esteja estabelecido que há limitações nas capacidades de qualquer máquina, foi somente sugerido, sem nenhum tipo de prova, que essas limitações não se aplicam [igualmente] ao intelecto humano" (Turing, 1981: 59). No mesmo artigo, Turing afirma também que "as máquinas me surpreendem com grande freqüência. Isso acontece principalmente porque eu não faço cálculos o suficiente para decidir o que esperar delas, ou melhor ainda porque, embora eu faça meus cálculos, eu os faço com certa pressa, de forma descuidada, assumindo riscos" (Turing, 1981 [1950]: 64). Hofstadter nos lembra hoje, depois dessa conversa já ter dado muito pano pra manga, que
Essa conclusão que Hofstadter extrai do trabalho de Turing indica que há uma limitação intrínseca ao próprio modo em que qualquer inteligência opera (seja ela a inteligência de uma barata, de um homem ou de um andróide do futuro): "Cada um de nós - mesmo os Mozarts entre nós - exibem um 'estilo cognitivo' que em essência define os hábitos em que freqüentemente somos apanhados" (Hofstadter, 1985, 537). Embora manifeste uma certa desconfiança com relação à extrapolação de certas conseqüências obtidas no âmbito da matemática para outros campos do saber (como por exemplo, a Psicologia), Hofstadter não deixa de afirmar que "os Teoremas limitativos da metamatemática e da teoria da computação sugerem que uma vez que a habilidade para se representar a própria estrutura tenha alcançado um certo ponto crítico" ao mesmo tempo torna-se claro que "nunca se pode representar a si mesmo totalmente". Os seres inteligentes podem dispor das coisas do mundo de inúmeras maneiras, e fazem isso seguindo certas regras e alterando seus próprios estados, no entanto, não é possível que eles tenham controle total da sua atividade, eles não podem ser conscientes de todos os padrões nela implicados. A inteligência inumana e desnaturalizada poderia, quem sabe, agora outra vez se reconhecer na própria experiência inicial, antes da prova da existência de Deus, do cogito cartesiano, que, conforme nos lembra Derrida, "não escapa à loucura porque estaria para além do seu alcance", mas porque, em seu momento específico, essa experiência vale inclusive se sou louco (insensato) - há um "sentido do cogito " que "escapa à alternativa de uma loucura [completa] e de uma razão [completamente] determinada" (Derrida, 1967: 85-86). E isso vale, como concordaria Descartes, para baratas, homens ou andróides, na medida em que eles venham a ter algum tipo de autoconsciência. |
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BIBLIOGRAFIA | |
DERRIDA, J. "Cogito et Histoire de la Folie" in L'écriture et la différence . Paris: Éditions du Seuil, 1967, p. 85-6. DESCARTES, R. Meditações . São Paulo: Abril Cultural, 1973. DUPUY, J.-P. Nas Origens das Ciências Cognitivas . São Paulo: Editora da Unesp, 1995. FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas . São Paulo: Martins Fontes, 1995 HOFSTADTER, D. R. Metamagical Themas: questing for the essence of mind and pattern . New York: Basic Books, 1985. TURING, A. M. "Computing Machinery and Intelligence". In_____HOFSTADTER, D. R.; DENNET, D. C. (orgs). The Mind's I . Toronto: Bantam Books, 1982. p. 53-67. |
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ALESSANDRO ZIR - Bacharel em Filosofia (UFRGS/Brasil), Bacharel em Comunicação Social (PUCRS/Brasil) e Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS/Brasil). Membro do Grupo Interdisciplinar em Filosofia e História das Ciências do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da UFRGS e tradutor. E-mail: azir@zaz.com.br |
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