NATURAL?! O QUE É ISSO? ABERTO O COLÓQUIO De 2.11.2003 a 21.05 2004 INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL "NATURALISMO E CONHECIMENTO DA HERPETOLOGIA INSULAR" Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa) |
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NATUREZA E ARTIFÍCIO NA HISTÓRIA DA ARTE E DA LITERATURA: |
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Rodrigo Petronio |
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Para os caminhos do pensamento, o passado continua passado, |
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A NATUREZA: UMA FICÇÃO | ||
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Em uma passagem de seu Della Pittura , de 1437, Ceninno Ceninni nos dá uma interpretação preciosa ao definir qual é o objeto primordial da representação artística: a natureza. Quando estamos prestes a corroborar todas as especulações do século XIX e crer que, com a abordagem positiva da história, atinge-se aquele cume racional representado pelo saber Absoluto e aquela centralidade do Espírito prescrita e prevista por Hegel, centralidade esta que legitima todas as propostas de um realismo ou de um naturalismo avant la lettre , eis que deparamos com a definição de natureza feita por Ceninni alguns passos à frente: se o artífice quiser representar uma montanha, pode muito bem empilhar algumas pedras em sua oficina, cobri-las com musgo, adorná-las com alguns ramos e gravetos, e terá, então, a sua montanha, pronta para ser representada. Por causa de contingências históricas de caráter vário, esse dado básico a beirar o truísmo, ou seja, a consciência de que a arte é um conjunto de artifícios, construções, falsificações, prescrições e desempenhos, em suma, de que a ela é um construto operado mediante alguns sistemas de regras e mediações formais racionalmente organizadas, acabou sendo de tal modo naturalizado e alijado do horizonte de discussões de críticos e historiadores que já vai um esforço hercúleo só o fato de propô-lo novamente como algo que urge ser discutido. Creio que boa parte da culpa, se é que podemos falar assim, por esse ocultamento, deve-se a uma retração da investigação artística e histórica do nível metafísico, entendida esta palavra como ciência das origens e não como sucedâneo inócuo de debates políticos e religiosos mofados, para o nível metodológico, embotando a reflexão sobre a filosofia da Forma no que ela tem de mais radical e reduzindo-a a pálidas proposições circunscritas a finalidades imediatas e burocráticas. Os motivos desse eclipse são diversos e difíceis de serem mapeados assim tão facilmente. Mesmo assim, façamos um retrospecto breve. Os estudos de história se encontram em um impasse. E isso já faz algumas décadas, não é de agora. Depois da Escola dos Annales, que ressaltou a importância dos dados empíricos e numéricos da história e seus aspectos infra-estruturais, percebemos uma virada interessante com o advento da Nova História, que arejou o debate e ajudou a rever orientações inoperantes ou até mesmo graves contradições presentes na tradição do historicismo. Este teve seus andaimes dinamitados pela primeira vez, a meu ver, pelas proposições decisivas de Nietzsche sobre a utilidade da história para a vida, reflexões estas, diga-se, dispersas em toda a sua obra, mas concentradas topicamente em um dos aforismos de Além do Bem e do Mal , e pelo paradoxo, ao que tudo indica insolúvel, levantado por ele: quanto maior é nosso conhecimento do passado, maior e mais elástica tem que ser o nosso padrão de racionalidade para poder compreendê-lo e, mais que isso, absorvê-lo. A conquista dos territórios submersos no tempo só se dá se abrirmos mão de nossa radicação presente, e a descoberta da veracidade de Homero, levada a cabo, primeiro por Vico, depois por Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf , é, simultaneamente, uma evolução da pesquisa filológica e uma involução do pensamento, se é que podemos falar assim, às suas próprias raízes míticas, raízes estas que ele por tantos séculos tentou evitar. Essa mesma zona de questionamentos será iluminada um pouco mais tarde por Walter Benjamin, ao dizer que toda obra de civilização pressupõe um ato de barbárie, definição que será ratificada pelos fatos no decorrer do século XX e que tem sua melhor alegoria visual no anjo de Paul Klee, que voa contra o vento do futuro tendo às suas costas nada mais que ruínas. A essa altura, porém, a obra polêmica de Karl Popper, Miséria do Historicismo , já era amplamente conhecida, bem como o duro golpe perpetrado por Thomas Kuhn contra a historiografia tradicional, cumulativa, evolucionista e quantitativa, no que diz respeito às revoluções operadas no campo científico. Da Nova História emergiu boa parte das famosas correntes da micro-história ou da história do cotidiano. A morte, o medo, as roupas, a vida privada, as festas populares, até os talheres ganharam a sua história particular, em um movimento de valorização de aspectos prosaicos da sociedade que, a despeito de seu status, guardavam, no entanto, elementos importantes para a compreensão de seu todo. Com isso tencionou-se também uma ruptura epistemológica, fundamentada numa crítica das abordagens superestruturais que relegavam sempre às grandes causas e aos nobres andaimes ideológicos o motor primeiro de todo o movimento das civilizações dentro do tempo, desde o seu aspecto mais chão ao seu topo mais ilustre. Essa tendência abriu também uma ótima vertente no que diz respeito à concepção mesma da prática do historiador e desmanchou os limites rígidos de fixação dos textos historiográficos, chegando até a rever alguns dos postulados deste saber que infelizmente já haviam se cristalizado, como a cisão eticamente necessária entre a história e a ficção. Nesse sentido, como já assinalou Peter Burke, é não só cabível como louvável repensar a história em sua dimensão narrativa e ficcional, pois assim, cientes das suas limitações fundamentais, como a impossibilidade de recuperar o passado tal e qual este se deu ou, pior, estipulando parâmetros de manipulação dos dados empíricos sem atentar para a repercussão ideológica que o trabalho textual destes mesmos dados desencadeia no presente, podemos ao menos gerar o antídoto que nos imuniza de positivar nossa construção como mais verdadeira, maior de todas as ciladas para o pensamento (1). Há também uma linha da História Social que se concentrou no estudo dos suportes materiais de época, vendo neles elementos estruturantes da percepção, das formas, da representação e dos valores relativos à arte. Um dos seus maiores expoentes é Roger Chartier, com estudos notáveis sobre o impacto da imprensa e do livro na organização social e intelectual, bem como sobre as diversas tipologias de texto que cada tecnologia proporciona. No entanto, a despeito dessas contribuições, a prática histórica, no tocante à literatura e à arte, continua cristalizada em relação a alguns pontos. É forte a presença do positivismo, espécie de corrente seminal de todo o pensamento brasileiro, em abordagens que, por mais sofisticadas, muitas vezes não ultrapassam a constatação de algumas dualidades óbvias: a literatura e a sociedade, a literatura e a realidade, a literatura e a estrutura econômica, a literatura e a vida do autor, e por aí a fora, sendo que a própria polarização desses elementos pressupõe uma disjunção primeira que não é facilmente defensável do ponto de vista da figuração artística, tomada em um sentido mais profundo, ou, quando muito, apenas serve como guia de leitura aos dois últimos séculos de produção, podendo-se enfeixar nesse diapasão toda a arte que, consciente ou não, tenha um caráter de tese ou formule alguma análise premeditada de algumas destas abstrações que esta corrente de idéias insiste em propor como naturais e auto-evidentes. Há também o predomínio de vertentes idealistas, por vezes inspiradas em Croce, sobretudo no seu conceito de expressão poética, mas, em sua maioria, bebidas diretamente em Hegel, que perfilam sua interpretação a partir de uma visão formativa onde o componente da nacionalidade não só é evidente, como central, e onde a literatura é lida em chave dialética e filtrada como elemento privilegiado para se compreender a perfecção da Idéia e as diversas etapas que o trabalho do negativo opera no real, correspondendo, cada uma dessas etapas, a uma fase de desenvolvimento do Espírito, espelhado na dimensão da descoberta cultural e nacional originárias. A formação dessa consciência de si, como era de se esperar, é flagrada no Romantismo, que deteria o cetro daquele tipo de arte que, nas palavras de Hegel, sinaliza o intrínseco absoluto da consciência do artista em sua pureza auto-incidente, no nível individual, assim como espelha o ápice do projeto de construção do ideal de nação, do ponto de vista coletivo. E há uma terceira corrente que, embora das mais fortes, não passa de uma derivação materialista desta última: a vertente marxista. Basta substituirmos o que Hegel chama de Espírito por Capital e tirarmos o cristianismo, que ele considera a suprema religião, motor mesmo do processo civilizatório pelo concurso da qual atingiremos a superação da própria necessidade de religião, e o substituirmos pela imanência pura de uma história cristianizada por meio de um arcabouço ideológico filantrópico e laico. No mais, mantenhamos a oscilação pendular da consciência servil à consciência senhorial, e seu impulso ao equilíbrio, à condição de transcendência transcendida e de excentricidade reabsorvida pela síntese dialética em chave material, ou seja, o em si reincorporado pelo para si em uma superação da alienação que fundamenta todos os entes, e teremos a literatura entendida como representação aquilatada da realidade econômica e social. Mais: como aquela que aponta para a superação das lacunas e dos vazios impostos por essa mesma realidade ao seu intérprete e ao povo que a vive. Nessas três versões, por mais diversas que possam ser, sejam elas inspiradas em Comte, Hegel ou Marx, resta sempre uma pedra fundamental que as une e que obsta, a meu ver, uma compreensão aprofundada do fenômeno artístico: a positividade. Toda e qualquer forma de se acercar de um objeto querendo fazer dele o trampolim para galgar uma dimensão transcendental que se movimenta e se manifesta no tempo e nas diversas etapas da história geral das civilizações (Hegel), uma superestrutura radicada na imanência dos processos de alienação e mais-valia (Marx) ou uma superação do estágio da divindade e das crenças religiosas rumo a uma religião civil e ao advento do império da ciência e da técnica (Comte), ou seja, qualquer abordagem que pressuponha uma exterioridade anterior à figuração, transformando aquela no elemento eidético desta, acaba obnubilando sua especificidade de artifício em troca de uma hipotética substância primeira, para falar com Aristóteles, que seria, a um só tempo, o impulso e o fim último do percurso de sentido das obras. No entanto, não se trata de uma visão essencialista, a não ser em uma definição corriqueira. Creio que não seja esse o termo mais adequado, já que devemos ao idealismo a virtude de ter esvaziado o homem de uma essência preconcebida, instaurando-o no continuum de um processo de nadificação ( Nachtung ), a partir do qual somos vistos como seres moldados pela nossa ação ( tuum ), e não como seres cuja estrutura ontológica fosse previamente dada, no que se rompe aqui, felizmente, com toda a tradição secular do inatismo. No espectro literário, com ele a literatura ingressa como peça fundamental da construção deliberada da história e da nossa liberdade de escolhas, o que é uma grande conquista. As ressonâncias destas idéias nas filosofias existenciais subseqüentes, sobretudo na obra de Sartre, são notórias e decisivas. Da perspectiva da crítica e da abordagem literária como um todo, é difícil reputarmos exclusivamente ao idealismo componentes responsáveis pela configuração dessas exterioridades que obliteram a compreensão do objeto estético, a não ser a positividade de base que o caracteriza e que consiste na confutação dos movimentos da História hipoteticamente internalizados nos movimentos da obra de arte e da consciência do artista. Ao fim e ao cabo, e por mais que Michel Foucault já tenha nos advertido quanto à impossibilidade de uma exterioridade discursiva, todo o problema se dá na concepção de uma dimensão fora do itinerário de representação e de um real preexistente às suas possíveis modalidades de figurações. Não me detenho a analisar esses aspectos marcantes da nossa tradição intelectual, pois não cabe averiguá-los aqui. O que importa é saber de sua existência e pensar como dirimir os equívocos e preencher os hiatos que tais abordagens nos legaram, principalmente tendo em vista serem hegemônicas, e que não há leituras mais ou menos certas de uma obra ou período, mas tão-só mais ou menos dominantes, no sentido político e no sentido teórico do termo. Essas abordagens, podemos dizer essa tendência generalizada de querer transformar as obras em ritos de passagens para a aferição e a investigação de superestruturas que seriam seus supostos fundamentos, se por um lado contribuíram para minar a possibilidade de compreensão puramente artificial dos recursos poéticos e ficcionais, por outro nos afastaram das raízes metafísicas e ontológicas que são, em sua maioria, concebidas como as causas formais dessas mesmas obras, sobretudo no que concerne ao interregno que vai do século XV ao XVII. Não é preciso ir muito longe nessa constatação. Basta ler a preceptiva das épocas e as obras. Chegamos assim a um impasse. E ele consiste na incapacidade de pensar questões essenciais da figuração, impasse gerado paradoxalmente pela evolução da aparelhagem de análise, que se contradiz com uma conseqüente involução da abertura possível no interior da formulação dos postulados produzidos por essa análise. Haveria aqui o vaticínio de Nietzsche em tom de sarcasmo? Não nos cabe aqui atestar essa hipótese. Colocando as coisas ao rés-do-chão, trata-se do predomínio de um tipo de pensamento sistêmico e sistemático, talvez por causa do próprio acabamento mais bem talhado e, arriscaria dizer, melhor envernizado, que ele é capaz de dar à história e, conseqüentemente, ao público letrado que, em tese, a consome e, por sua vez, também está inserido em uma sociedade de consumo e sendo movido pelos seus valores, ainda que o neguem. Em suma, para lembrar Oswald de Andrade, venceram o sistema da Babilônia e os garçons de costeleta. |
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(1) BURKE, Peter (org). A Escrita da História . São Paulo, Editora UNESP, 1992. Cf. Prefácio. | ||
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