NATURAL?! O QUE É ISSO?
ABERTO O COLÓQUIO
De 2.11.2003 a 21.05 2004
INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL
"NATURALISMO E CONHECIMENTO
DA HERPETOLOGIA INSULAR"
Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa)


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Sobre espécies endémicas
e outras introduzidas nos Açores (4)
LUÍS M. ARRUDA
Contribuição de Francisco de Arruda Furtado

A investigação de Furtado tinha por objectivo encontrar a origem das espécies ocorrendo no arquipélago dos Açores. Como está referido em carta datada de 13-06-1881, dirigida por Furtado a Charles Darwin: «Mon but est de comparer avec la fane continentale americaine et européenne, afin de jètter quelque lumière sur l'origine des espèces açoréennes» (cf. Arruda, 2002). Para tanto, dedicou-se ao estudo dos moluscos terrestres, por serem considerados mais próprios aos estudos zoogeográficos do que as aranhas, de que se ocupara durante algum tempo, e que julgara, pela sua suposta maior facilidade de transporte, servirem pouco ao esclarecimento daquele objectivo. A este propósito Furtado refere em carta de 15-11-1880 a Eugène Simon: «Mon esprit s'est même détourné un peu de l'étude de ces animaux, sans contredit vraiment intéressants, mais dont les faits de distribution geographique ne parlem si haut que ceux qui ont égard aux mollusques terrestres, et comme la question de 1'ori gine des espèces, m'a fortement saisi je me suis jeté dans 1'étude de ces dernieux (surtout l'anatomie interne), étude que d'ailleur est plus en harmonie avec mon goôt (sic), [...].» ( cf. Arruda, 2002).

No que toca à malacofauna dos Açores, Furtado (1881a), pondo em dúvida a hipótese da dispersão das espécies por icebergs, no período pós-Würm, for mulada por Darwin, em 1878, entendia que a maior parte das espécies devia ter alcançado o arquipélago, segundo os meios naturais de dispersão ( v. g. aves e ventos), que outras teriam resultado de modificações causadas pelas condições do solo, ainda outras por hibridação, e que uma pequena parte, teria sido introduzida pelo homem, durante as escalas feitas nestas ilhas. Assim, segundo a teoria de Woodward (1851), algumas espécies de caracóis haviam sido introduzidas por marinheiros portugueses, que as usavam a bordo como alimento fresco, e algumas outras, originárias da Madeira, teriam sido introduzidas com a cana-do-açúcar e com o lastro dos navios .

Todavia, a origem das espécies introduzidas poderia ser mais longínqua, como sugeria a distribuição geográfica de duas espécies de lesma [Viquesnelia atlantica e V. dussumieri], conforme Furtado explica em carta de 30-03-1882 a G. Nevill, do museu indiano em Calcutá: «L'Inde, comme vous savez, a été un lieu de communications portugaises directes quelques fois avec les Açores; aussi est-il permis de supposer que quelques espèces malacologi ques indiennes seraient distribuées sur nos lies dans des bois des construc tions, qu'on important pour les églises et pour des meubles, tonneaux, &; [...]». Mais tarde viria a verificar-se ser incorrecta a colocação, por Morelet (1860), de V. atlantica (=Phenacolimax (Plutonia) atlantica) naquele género e por conseguinte sem suporte a hipótese elaborada por Furtado ( cf. Arruda, 2002) .

Como seguidor da Teoria Evolucionista, Furtado (1881a) entendia que «uma vez introduzida uma espécie nas nossas ilhas, ainda que depois de alguma grande luta pela vida, capaz de produzir uma endemia, as condições vitais eminentemente próprias (humidade, vegetação abundante, húmus, folhagens) estabeleceram seguros meios de propagação». Mais, as diferenças encontradas nas populações açorianas quando comparadas com aquelas da mesma espé cie habitando o continente, não são «questões anómalas, individuais e principalmente de idade» mas «modificações fixadas na espécie pelas leis da hereditariedade».

Assim, observando o número e a disposição das caneluras das maxilas em exemplares de algumas espécies de caracóis , reconheceu que o meio açoriano determinava uma alteração em relação ao tipo existente na Europa Central, sem distinção de idades, nomeadamente a menor espessura e solidez da concha, facto já notado por Morelet (1860), atribuindo-o à escas sez de cálcio no solo e à benignidade do clima que, tornava desnecessário ao animal uma concha resistente. Com o tempo, a modificação teria sido fixada nos seus «aparelhos secretores», apropriando-os definitivamente à natureza espe­ cial das suas necessidades (Furtado, 1880).

Também tendo verificado que o número de endemismos açorianos rela tivamente à área era elevado e que isso estava em desacordo com a previsão teórica, rejeitando a possibilidade de haver espécies introduzidas apenas em algumas ilhas, entendia, recorrendo à Teoria Evolucionista, que formas diversas, consideradas anteriormente como espécies, não seriam mais do que estados diversos de modificação de uma mesma espécie. A propósito escreveu: «As introduções das espécies que julgamos transformadas, devidas, como é uni camente provável, às migrações das aves, não foram feitas todas numa mesma época, mas sim lentamente, decorrendo muitos e muitos anos da chegada de um germen à do outro, e portanto não custa admitir que o que foi primiti­ vamente a mesma espécie, esteja hoje em duas ilhas diferentes e até numa mesma ilha, podendo ser considerado como uma ou mais espécies perfeita­ mente distintas. A transformação que não pode atribuir-se à desigualdade do clima, atribui-se neste caso à desigualdade do tempo. Há apenas diversos graus de modificação de uma mesma espécie. Alentando a hipótese, muitas das actuais espécies, derivadas de uma introdução mais antiga, terão já afectado a forma de outras cuja introdução foi mais moderna, e estas, por seu turno, virão a ter todos os caracteres que vemos nas primeiras» (Furtado, 1881a).

É assim que explica como em certas espécies de caracóis, encontradas apenas em S. Miguel (H. caldeirarum [=Leptaxis cal­ deirarum ]), na Terceira ( H. terceirana [=L. terceirana ]) e no Faial (H. drouetiana [=L. drouetiana ]) « a seme lhança é muitíssimo acusada, e o facto de não viverem associados, mas cada um na sua ilha, depõe muito a favor da sua unidade específica, fazendo atri buir cada uma das suas pequenas diferenças a modificações determinadas lentamente em cada ilha».

«Supor que nesta estreita afinidade não está implicada uma mesma espécie primordial, manifestando apenas diversos graus de modificação segundo o tempo, é julgar consciente uma dispersão puramente acidental, e querer admitir que as aves escolheram de propósito espécies afins, para irem colo car em cada uma daquelas ilhas» (Furtado 1881a).

Furtado estava informado das formulações de Alfred Russel Wal lace e Charles Darwin, em 1858, sobre a evolução e a biogeografia da fauna e da flora das ilhas, acompanhava as perspectivas abertas pela teoria de Dar win explicativa da evolução, e usava o método experimental. Então as ilhas já eram tidas como (a) continentais quando resultam da rotura de uma porção de continente e onde os animais e plantas são, com raras excepções, os mesmos que os do continente vizinho; e (b) oceânicas quando são formadas por uma erupção vulcânica, como as dos Açores, e estão sempre rodeadas de mar.

Neste contexto, para Furtado (1881b), «ao contrário do que se dá nas ilhas continentais, as ilhas oceânicas têm um todo de espécies peculiares que se não encontram em outros pontos do globo, nem nos continentes próximos. [...] Ora, como não se pode acreditar que mão oculta esteja à espera que uma ilha surja das ondas para fazer de lodo alguns caracóis mais ou menos transparentes e pintados, os transformistas não podem ver nas espécies parti culares às ilhas oceânicas senão espécies emigradas ou trazidas acidentalmente dos continentes pelas aves de arribada e nos troncos que as ondas arrojam às praias e que se transformaram mais ou menos rapidamente em virtude do clima insular, e veem na particularidade actual dessas formas insulares, do mesmo modo que nas creações dependentes, uma base fortíssima da teoria que abra çaram».

Também era entendido por Furtado que a evolução acontecia por selecção natural. Assim, do conjunto de indivíduos que constituíam uma população de uma dada espécie, aqueles que possuíam determinadas características contribuíam em maior percentagem para as gerações seguintes do que aqueles outros que possuíam outras características; pela herança de tais características a composição da população ia-se alterando. Mais, segundo a teoria da selecção natural a contribuição dos descendentes para a compo sição das gerações sucessivas não acontecia inteiramente ao acaso porque estava correlacionada com a variabilidade populacional. Dizia-se então que os indivíduos melhor ajustados ao ambiente eram seleccionados por um pro cesso natural.

A selecção natural era então tida como o factor principal na regulação da estrutura morfológica das populações ao longo do tempo, eliminando certas variações e fazendo predominar outras, originando, deste modo, altera ções evolutivas diferentemente direccionadas.

Estes conceitos, ter-lhe-ão servido para explicar a produção de endemias nas ilhas e ainda a harmonia que entendia existir entre estas espécies «quando ela [a harmonia], como nos Açores, é mais estreita de ilha para ilha, do que do arquipélago para os continentes próximos [...]» (Furtado 1881a).

As convicções evolucionistas de Furtado não se fundavam apenas nas suas leituras mas formavam-se também no estudo que fazia dos molus cos dos Açores que lhe proporcionava novos factos e ideias a suscitarem novas hipóteses, enfim, o método experimental a fornecer elementos convincentes da transformação das espécies. A propósito escreveu a Teófilo Braga, em carta datada de 13-11-1882: «formo [...] um fundo atraente de trabalhos práticos o que é indispensável, e dos mais ilustrativos na teoria de Darwin» (cf. Arruda, 2002) . E numa carta, com data de 2-2-1882, a A. G. Wetherby: «pour arriver moi-même à quelque conclusion [sobre a origem das espécies malacológicas características dos Açores], il me faut une étude comparative de la coquille, comme fil con­ ducteur pour arriver à découvrir les espèces dans lesquelles il sera permis de supposer les relations qui pourront nous mettre en évidence la filiation spé cifique probable. Il me faut donc posséder les espèces continentales (améri­ caines et européennes) qui sont communes aux Açores et les espèces des deux continents qui sont comparables aux espèces endémiques de I'archipel que j'habite» ( cf. Arruda, 2002) .